Interesse Público

Queremos mesmo avaliação em políticas públicas

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  • é professora da Universidade Federal de Goiás visiting fellow no Human Rights Program da Harvard Law School pós-doutora em administração pela Ebape-FGV doutora em Direito pela Universidade Gama Filho procuradora do município do Rio de Janeiro aposentada e membro do Instituto de Direito Administrativo do Estado do Rio.

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21 de novembro de 2024, 8h00

O jornal O Globo de anteontem dava conta de que o número excepcionalmente alto de “famílias unipessoais” — mais de 16% em 2/3 dos municípios em todo o país — poderia indicar a existência de fraudes no Programa Bolsa Família, com o benefício sendo conferido a pessoas que em verdade, integrariam um mesmo núcleo familiar, já contemplado com a referida prestação.

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A inconsistência fica ainda mais evidente quando se tem a comparação entre os dados cadastrais específicos do Programa, e aqueles originários do IBGE quanto à existência de famílias unipessoais. Noticia-se um conjunto de medidas destinadas a corrigir a superinclusão de beneficiários — isso só depois da desproporção nos números se revelar efetivamente aberrante.

O evento noticiado suscita, todavia, uma reflexão quanto à nossa verdadeira relação com a ideia de avaliação de políticas públicas; atividade hoje impositiva por força da Emenda Constitucional 109/2021, que incluindo parágrafo 16 ao artigo 37 CF, formulou a referida exigência, subordinada, todavia, à cláusula sempre postergatória “na forma da lei”.

Avaliação, nos modelos clássicos do ciclo de políticas públicas, expressa estágio final do referido percurso, onde se empreenderia à análise dos resultados alcançados. Este seria, em alguma medida, o ponto alto do ciclo, eis que ali se concentraria em tese o maior potencial de aprendizado com todo o conjunto de eventos e medidas já havidos.

‘Avaliação ex ante

O termo foi se revestindo de outros significados, para aplicar-se a vários momentos do ciclo de políticas públicas — inclusive para o estágio classicamente identificado como formulação, que hoje é por muitos alcunhado de “avaliação ex ante”.

Noves fora a pouca contribuição dessa generalização do termo “avaliação” na compreensão do complexo processo que se tem quando da concepção e execução de políticas públicas; fato é que não me parece haja um efetivo convencimento e comprometimento de agentes públicos em geral, para com a relevância do estágio final, que sigo chamando de avaliação (acresço o ex post como delicadeza aos afeitos a essa terminologia).

A análise detalhada do que se tenha passado ao longo de todo o ciclo de construção e execução de uma determinada política pública é o estágio mais revelador de toda a atuação da Administração no enfrentamento daquele específico problema público. Muito mais do que explicitar se resultados projetados foram alcançados segundo uma métrica pré-estabelecida no momento da formulação; a avaliação, caso bem executada, revela todo o contexto de relacionamento entre o problema público original, e a intervenção desenvolvida pela Administração. E afinal, esse é o ponto principal — entender quais os efeitos reais da estratégia eleita e executada pela Administração sobre o problema público.

Pode resultar da avaliação — ou mesmo de estágios anteriores a ela — a percepção de que o diagnóstico do problema público se revelou insuficiente ou inadequado de origem; ou ainda se a dinâmica que é própria das relações sociais determinou o afastamento dessa diagnose inicial, que teria sido correta ab initio, mas se descaracterizou com o curso do tempo.

Isso pode, por sua vez, apontar deficiências na tradução adequada da realidade social como ponto de partida para a agenda e a identificação do problema público em toda a sua extensão e complexidade. Esse descolamento da realidade pode estar associado a um distanciamento das instâncias formuladoras da estratégia de ação pública em relação aos destinatários das políticas públicas — ocorrência que, uma vez confirmada, exige pronta correção.

Também é da avaliação que pode decorrer a identificação de externalidade, não cogitadas, ou mesmo não existentes na origem. Em hipóteses que tais, cabe investigar se a estrutura encarregada da formulação e implementação de políticas públicas dispõe de mecanismos que permitam o monitoramento de sua execução real time, de modo que a correção de rumos possa se verificar com a brevidade possível — e não quando as evidências de desviam ganham proporções como as indicadas na notícia de jornal que dá origem a esse ensaio-provocação.

Finalmente, a avaliação pode evidenciar externalidades positivas, que podem dizer respeito diretamente ao programa sob avaliação, ou ainda a outros, a cargo igualmente da Administração Pública, ainda que por outras estruturas institucionais. Esse potencial de aprendizado e otimização de resultados contribui para um esforço de potencialização dos recursos (sempre escassos).

Esses são os argumentos em tese, favoráveis ao esforço de avaliação ex post — mas não se pode desconsiderar as razões de cultura, que militam contra essa atividade em particular.

Na perspectiva ainda predominantemente binária do Direito, a avaliação de políticas públicas é vista como atividade da qual resultará um juízo favorável ou desfavorável à Administração; e quiçá, junto com ele, responsabilização dos agentes públicos envolvidos na iniciativa. Se as projeções de resultado não se verificaram, o imaginário (equívoco) ainda dominante entre profissionais do Direito, cominará vários atributos indesejáveis como os de ineficiência, inefetividade — e todos os demais que pretendem expressar desvalor. A compreensão é totalmente equívoca; o eventual não atendimento dos marcadores iniciais é apenas um dos muitos componentes a serem considerados num processo mais profundo de avaliação de políticas públicas.

Na visão do gestor — seja ele uma figura originária do ambiente da política, seja ele um técnico de carreira —; a conclusão “adversa” em sede de avaliação expressa um juízo de fracasso. A política pública “não deu certo” por ausência de conhecimento, pouca vontade política, ou ainda por outras razões menos publicáveis.

Evidentemente, ninguém deseja se ver associado a esse tipo de ocorrência. Assim, a previsão constitucional de um imperativo de avaliação de políticas públicas “com a divulgação do objeto a ser avaliado e dos resultados alcançados” tende a encontrar significativa resistência nas estruturas administrativas, pelo que de exposição que elas trazem para os agentes públicos envolvidos.

Não se pode olvidar ainda, que muitas vezes as relações estabelecidas entre estruturas administrativas são, não de cooperação, como seria de se supor; mas relações adversariais. Recursos públicos de toda ordem são escassos, e a disputa pelos poucos meios disponíveis leva a esse tipo de relacionamento pelo menos competitivo, onde a publicização dos resultados da ação administrativa de um adversário pode ser o incentivo necessário para uma conquista de espaço político, ou mesmo de recursos financeiros.

Um sentimento equivocado de autopreservação militará contra a obrigatoriedade da avaliação, em seu sentido mais amplo. Se o dever de divulgação não existe, essa mesma publicização poderá se verificar a partir de critérios seletivos de conveniência política.

Provoco o leitor com a indicação de um sintoma curioso de como a avaliação (ex post, repito, para que não haja equívoco na compreensão da tese) não desperta o investimento de investigação que seria necessário, especialmente para a adequada compreensão dos seus eventuais efeitos jurídicos.

Refiro-me à predileção que se verifica, dentre os pioneiros que buscam empreender à associação entre Direito e políticas públicas, pela etapa agora identificada como avaliação ex ante — reitero de novo minha profunda resistência para com uma expressão que sugere confundir o fim com o início…

Defender a importância e atributos da formulação de políticas públicas, com a investigação do problema público em pauta, e o estudo de alternativas de ação, é proposta que navega por mares já mais conhecidos pelos juristas. Planejar a projetar resultados são atividades minimamente já influenciadas pelo Direito, desde os tempos do velho Decreto-Lei 200.

O código é conhecido, os conceitos povoam o imaginário do advogado. Já a ênfase na avaliação mesmo; na etapa final desse processo complexo, com múltiplos stakeholders, sujeito a todo tipo de externalidade e contingência exige uma resiliência para incorporar no juízo de valor quanto à ação da Administração Pública, elementos de distintas naturezas, que podem estar (ou não) sob controle dela. Esse cenário de volatilidade nos componentes de aferição de resultado é repudiado à toda força pelo Direito — e talvez seja essa a razão (inconsciente) da preferência pela avaliação ex ante.

O que se vê, é que seja sob a perspectiva de agentes políticos; seja de estudiosos de diversos campos, a retórica é da hipervalorização da avaliação em políticas públicas. A prática, todavia, da sua realização e em especial, divulgação de resultados, não expressa o mesmo entusiasmo. Isso porque, no secreto do quarto de cada qual, avaliação de políticas públicas se apresenta como um sujeito incômodo.

Evidentemente, dessas considerações não pode decorrer a compreensão de que essa possa ser uma atividade a ser abandonada ou secundarizada. É preciso, todavia, ter clareza de que as resistências são muitas, e de diversas ordens, para que se possa investir em mecanismos de incentivo ao incremento dos esforços de avaliação.

Atores importantes nessa reversão de cultura e no estímulo à avaliação em todo o seu potencial, são as instituições de controle, que precisam naturalizar a ideia de que o não alcance de metas e resultados não traduza, inexoravelmente, um juízo de irregularidade a ser apurada com responsabilização dos envolvidos.

A dinâmica da vida sobre a qual incidem as políticas públicas é muito mais complexa do que o código binário do válido x inválido; lícito x ilícito. Só com uma visão mais afinada com a complexidade do enfrentamento de um problema público que se poderá extrair de cada iniciativa da Administração, todo o potencial de aprendizado que ela possa oferecer.

Autores

  • é professora da Universidade Federal de Goiás, visiting fellow no Human Rights Program da Harvard Law School, pós-doutora em Administração pela Ebape-FGV, doutora em Direito pela Universidade Gama Filho, procuradora do município do Rio de Janeiro aposentada e membro do Instituto de Direito Administrativo do Estado do Rio.

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