O seguro D&O visto pelo STJ: comentários ao REsp nº 2.149.053-SP
21 de novembro de 2024, 8h00
Em 24/9/2024, o Superior Tribunal de Justiça julgou o REsp nº 2.149.053-SP, em acórdão relatado pela ministra Nancy Andrighi, por meio de votação unânime havida no âmbito da 3ª Turma.
Algumas questões interessantes foram suscitadas pelas partes e enfrentadas pelo acórdão, destacando-se as seguintes: (i) uma decisão estrangeira pode ser utilizada como prova sem que tenha havido a sua homologação perante o STJ?; (ii) a conduta dolosa de um segurado, declarada por sentença proferida em ação penal ainda não transitada em julgado, seria oponível aos demais segurados?
Admissibilidade de decisões estrangeiras como prova
A propósito da primeira questão, as partes discutiram se sentença proferida em ordenamento jurídico estrangeiro poderia ser utilizada como meio de prova no direito brasileiro, independentemente de sua homologação pelo STJ. Quanto à segunda indagação, ela se afigura da maior importância nos contratos de seguro D&O, pois remete à cláusula chamada severability ou innocent director clause, dispositivo que implica na impossibilidade de que a conduta dolosa de um administrador produza efeitos para os demais administradores.
Respeitando os limites dessa coluna, reproduzimos abaixo os itens da ementa que, diretamente, atentaram às duas questões acima ressaltadas:
“A sentença estrangeira pode ser admitida apenas como fato jurídico, de forma que não constituirá título executivo extrajudicial, tampouco terá a autoridade da coisa julgada, podendo ser livremente apreciada pelo Juiz, para dela extrair as consequências que serão reguladas pela norma nacional aplicável. Tal hipótese dispensa a homologação pelo STJ, prevista no art. 961 do CPC.
O art. 762 do Código Civil determina expressamente que será nulo o contrato para garantia de risco proveniente de ato doloso do segurado, do beneficiário, ou de representante de um ou de outro.
É entendimento da Terceira Turma que o seguro de D&O somente possui cobertura para (i) atos culposos de diretores, administradores e conselheiros (ii) praticados no exercício de suas funções (atos de gestão). Atos fraudulentos e desonestos de favorecimento pessoal e práticas dolosas lesivas à companhia e ao mercado de capitais não estão abrangidos na garantia securitária.
Sendo a empresa quem firmou o contrato de seguro D&O e estando devidamente comprovado o cometimento doloso de atos criminosos que não podem ser abrangidos pela cobertura securitária, o referido contrato de seguro é nulo, não podendo ser aproveitado em favor de quaisquer dos segurados.
Na espécie, a convicção firmada pelo julgador para afastar o direito à indenização securitária não decorreu da decisão criminal que condenou um dos ex-administradores da empresa por corrupção ativa em transação comercial internacional, mas sim de um amplo conjunto probatório que revela um esquema de corrupção engendrado pela recorrente.” (Grifou-se).
A primeira dúvida revela-se de mais fácil solução. A considerar que não se pretendia a execução de sentença proferida no exterior no Brasil, mas, tão somente, a sua utilização como prova de fatos jurídicos nela revelados, realmente não há que se falar em homologação do decisum pelo STJ para que, a partir disto, produzam-se efeitos no país.
Caso se pretendesse a execução daquela sentença estrangeira em território nacional, seria, de fato, necessária a aplicação do art. 961 do CPC, circunstância que não corresponde à pretensão deduzida pelas partes no caso concreto.
Aplicação da cláusula severability nos seguros D&O
Já a segunda questão apresenta uma densidade jurídica maior e é plenamente aderente aos efeitos jurídicos essencialmente tutelados pelos seguros D&O. A Corte Superior debruçou-se sobre um tema difícil, qual seja, a conduta dolosa de um administrador (segurado) seria oponível aos demais administradores? Considerando que a conduta dolosa provoca a nulidade do contrato, segundo os termos previstos no artigo 762 do Código Civil, esses efeitos derivados da conduta de um administrador seriam transferíveis aos demais, a ponto de tornar nula a apólice como um todo?
Consoante apontado na introdução, a resposta a essa indagação remete a uma cláusula bastante comum nesses contratos, chamada no exterior de severability ou innocent directors clause (no vernáculo, cláusulas dos administradores inocentes). O comando por ela proposto é no sentido de que a conduta dolosa de um administrador não é oponível aos demais, ou seja, a nulidade, in concreto, deveria limitar os seus efeitos nulificantes àquele segurado em particular, preservando-se o contrato para os demais administradores, desde que, por óbvio, eles fossem inocentes. Veja-se, a propósito, a redação extraída de clausulado comumente adotado no mercado brasileiro:
“Sem prejuízo das exclusões previstas nos demais dispositivos desta apólice, a seguradora ficará isenta de responsabilidade e não terá qualquer obrigação de pagamento de indenização com relação a qual(is)quer reclamação(ões) decorrente(s) de, ou de qualquer modo relacionada(s) a:
– Fatos geradores que envolvam a prática por ação ou omissão de ilícitos dolosos ou de culpa grave equiparável ao dolo, de qualquer natureza ou tipificação; bem como fatos geradores relacionados à percepção de vantagens ou benefícios pessoais indevidos, de qualquer natureza, pecuniários ou não, por qualquer segurado. […]
– Esta exclusão aplica-se separadamente a cada segurado, de tal modo que não prejudicará a cobertura de outros segurados que, comprovadamente: não tenham incorrido na exclusão como coautores ou partícipes do ato; que não tenham dela se beneficiado; ou ainda que, cientes, adotaram as medidas razoáveis visando a evitá-la.” (Grifou-se).” [1]
Importante refletir sobre a incidência dessa cláusula tanto na fase pré-contratual, por ocasião do cumprimento do dever de prestar informações atinentes ao risco à seguradora, quanto na fase contratual, uma vez concluído o contrato.
Declaração inicial do risco e sua peculiaridade no seguro D&O
O dever de declaração inicial do risco nos seguros D&O caracteriza-se por uma forma peculiar, quando comparado à generalidade dos contratos de seguros. Isto porque o comprador dos seguros D&O é, via de regra, a sociedade em que atuam os administradores, pessoas físicas que figuram como as principais destinatárias da apólice que será contratada.
Cabe à sociedade, na qualidade de compradora da apólice — tomadora, no jargão securitário — prestar as informações relacionadas aos riscos à seguradora, o que decorre, inclusive, de uma dificuldade prática marcante, sobretudo em grandes sociedades, caracterizadas por dezenas, às vezes centenas de administradores, espalhados em suas diretorias, conselhos fiscais e de administração, auditorias etc.
Se, para fins de cumprimento do dever de declaração inicial do risco cada um dos administradores tivesse que prestar informações personalíssimas, a conclusão dos contratos tornar-se-ia praticamente inviável. Dessa maneira, à tomadora são delegados os poderes para, em nome da pluralidade de administradores contemplados, prestar as referidas informações. Explica-se, assim, que a aplicabilidade da cláusula severability à fase pré-contratual detém essa característica peculiar.
Concluído o contrato e passando à sua execução, o exame de eventual conduta dolosa por parte de cada um dos administradores deverá ser realizado individualmente, por mais que as suas atribuições emanem de órgão colegiados.
Problematizando o ora afirmado, tome-se como exemplo o conselho de administração, órgão obrigatoriamente colegiado que, nos termos do artigo 138, § 1º c/c artigo 140 da Lei nº 6.404/1976, deverá ser composto por, no mínimo, três membros.
Se, hipoteticamente, o conselheiro A agir de maneira dolosa, provocando a aprovação de contas reconhecidamente fraudulentas, a sua conduta dolosa não será automaticamente oponível aos demais conselheiros, B e C, no exemplo em questão, que, para os fins da apólice D&O, permanecerão cobertos.
É que em prol da ampla defesa e do contraditório, além da presunção de inocência, todas garantias constitucionalmente asseguradas (artigo 5º, incisos LV e LVII da CF), não se pode afirmar, antecipadamente, que a simples composição de um órgão colegiado seria o quanto basta para, de forma automática, imputar a conduta dolosa de A aos conselheiros B e C. A conduta de cada qual deverá ser examinada individualmente. [2]
O STJ, ao julgar o REsp objeto desses comentários, iluminou essa questão sob um ângulo diferente, motivado por um arranjo que, segundo constou no acórdão, partiu da estrutura engendrada pela própria sociedade — a tomadora da apólice. Na própria ementa, veja-se:
“Sendo a empresa quem firmou o contrato de seguro D&O e estando devidamente comprovado o cometimento doloso de atos criminosos que não podem ser abrangidos pela cobertura securitária, o referido contrato de seguro é nulo, não podendo ser aproveitado em favor de quaisquer dos segurados.
Na espécie, a convicção firmada pelo julgador para afastar o direito à indenização securitária não decorreu da decisão criminal que condenou um dos ex-administradores da empresa por corrupção ativa em transação comercial internacional, mas sim de um amplo conjunto probatório que revela um esquema de corrupção engendrado pela recorrente.” (Grifou-se).
Do voto, as seguintes passagens são esclarecedoras:
“A má-fé da autora também se denota através da concordância tácita com toda a rede deflagrada desde os administradores do alto escalão, eis que implicou em auferir lucros com tais operações escusas, bem como diante da confissão de insuficientes instrumentos de fiscalização e de auditoria contábil, conforme consta do acordo de não persecução penal firmado em território estadunidense.
Desse modo, a conduta da autora facilitou a atuação de seus prepostos no sentido de permitir o amplo desenvolvimento da rede internacional de corrupção, conforme confessado perante a SEC, agravando sensivelmente o risco da ré, nos termos do artigo 768 do Código Civil. […] Além do acordo de não persecução penal firmado com a autoridade estrangeira, em pesquisa realizada, denotei que a autora firmou junto ao Ministério Público Federal e a Comissão de Valores Mobiliários termo de ajustamento de conduta a fim de evitar o prosseguimento de investigações em face da autora, reconhecendo a prática dos atos dolosos anteriormente confessados perante a SEC […]
Portanto, foram diversos os elementos que fundamentaram a decisão do julgador, a partir de investigações realizadas por instituições brasileiras e norte-americanas, no sentido de haver um esquema internacional de corrupção do qual a recorrente estava ciente e se beneficiava – entendimento este que não pode ser alterado por esta Corte Superior em respeito à Súmula 07/STJ.
Dessarte, restou configurada a existência de ato doloso, elemento por si só suficiente para dirimir qualquer tentativa de recebimento da indenização securitária pela recorrente (ES) ou por qualquer dos seus ex-administradores porque torna nulo o contrato de seguro D&O.” (Grifou-se).
Importante notar, portanto, que o acórdão do STJ não se chocou com a regra estabelecida pela cláusula severability, considerando que não aplicou os efeitos da conduta dolosa de um determinado administrador a outro. O problema decorreu, na origem, de uma grave falha nos sistemas de controle concebidos pela própria tomadora, a permitir a consecução das reiteradas condutas ilegais.
Relação entre contratos de indenidade e seguros D&O
A essa altura de seu voto, a ministra Nancy Andrighi estabeleceu um interessante paralelo entre os contratos de indenidade e os contratos de seguro D&O, atentando para o fato de que nos contratos de indenidade a sociedade não deve indenizar as condutas dos administradores derivadas de dolo ou culpa grave, com fincas no parecer de orientação nº. 38, da Comissão de Valores Mobiliários. [3] Tendo em vista que a culpa grave e o dolo não são indenizáveis no âmbito dos contratos de indenidade, tampouco o seriam nos contratos de seguro D&O:
“O art. 762 do Código Civil determina expressamente que será nulo o contrato para garantia de risco proveniente de ato doloso do segurado, do beneficiário, ou de representante de um ou de outro.
No mesmo sentido, o Parecer de Orientação 38, de 25.09.2018, publicado pela CVM, prevê que o contrato de seguro de responsabilidade civil de administradores equipara-se aos contratos de indenidade, de modo que “não são passíveis de indenização, entre outras, as despesas decorrentes de atos dos administradores praticados com má-fé, dolo, culpa grave ou mediante fraude”. (Grifou-se).
Em síntese, embora a tomadora não figure como segurada nas apólices D&O, a sua participação reveste-se de grande importância, considerando o protagonismo por ela exercido no meio empresarial.
Conclusão
O julgamento do STJ no REsp nº 2.149.053-SP afigura-se um marco no entendimento sobre seguros D&O no Brasil, especialmente no que tange à aplicação da cláusula severability e ao impacto das condutas dolosas nos contratos.
A decisão evidencia que, embora a cobertura securitária busque proteger administradores inocentes, a falha nos sistemas de controle e a conivência institucional podem comprometer a validade do contrato como um todo. Esse cenário reforça a necessidade de rigor na implementação de governança corporativa e na estruturação das apólices, assegurando que os contratos atendam às exigências legais, sociais e do mercado.
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[1] Nesse mesmo sentido, confira-se a definição publicada pelo IRMI: “severability of interests clause. A severability of interests clause is a policy provision clarifying that, except with respect to the coverage limits, insurance applies to each insured as though a separate policy were issued to each.” (Fonte. International Risk Management Institute. Fonte. https://www.irmi.com/term/insurance-definitions/severability-of-interests-clause, visitado em 16/11/2024).
[2] “Dessa forma, percebe-se que a Lei das S.A. segue o princípio da responsabilidade por culpa própria, pelo
qual diretores e conselheiros não são responsáveis por atos ilícitos de outros administradores (artigos 158, § 1º, primeira parte). Não se pode esquecer, nessa linha, que, quando responsabilizado por decisão tomada por órgão colegiado, a culpa verificada é do próprio administrador, na medida em que é parte do órgão colegiado. Não há que se falar, nessa hipótese, de culpa solidária”. (BRIGAGÃO, Pedro. A administração de companhias e a business judgment rule. São Paulo: Quartier Latin, 2017. p. 99). De maneira ainda mais incisiva, Mariano Yzquierdo Tolsada afirma: “Las obligaciones plurales no pueden ser por naturaleza mancomunadas o solidarias, sino que son los particulares o la ley quienes les atribuyen uno u otro carácter; y ello hasta tal punto de que – como indica Guilarte Zapatero – ni siquiera la obligación plural indivisible tiene en nuestro Derecho el carácter de solidaria”. (YZQUIERDO TOLSADA, Mariano. La responsabilidad civil de las sociedades profesionales y de sus miembros. In Revista de Responsabilidad Civil y Seguros. ISSN 1696-0394, nº. 71. 2009, p. 32).
[3] O parecer de orientação CVM nº. 38 pode ser verificado em https://www.gov.br/cvm/pt-br/Treinamento/legislacao/pareceres-de-orientacao/copy3_of_portaria-conjunta-mf-cvm-no-92-de-21-de-marco-de-2018 , visitado em 16/11/2024.
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