Mandato-tampão em assembleia legislativa: burla da vedação à recondução
21 de novembro de 2024, 20h57
O diretório nacional do Partido Social Democrático (PSD) ingressou com a Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 7.738 (24/10) sustentando a necessidade de a Suprema Corte, por meio da técnica de interpretação conforme, traçar os parâmetros do que pode ou não ser considerado mandato-tampão nos termos do Regimento Interno da Casa Legislativa de Roraima, de modo a afastar o cômputo das reconduções vedadas à mesa diretora do Parlamento.
A situação peculiar avistada, em forma de ilustração, reside no fato de a presidência “X” ter assumido o mandato para o biênio 2021-2022, com início em 29 de janeiro de 2021, em razão de uma cautelar concedida pelo STF. Ou seja, houve uma “sucessão”, pois quem estava eleito para o biênio 2021-2022 era a presidência “Y”.
Após isso, mais de um ano de exercício de mandato pela presidência eleita “X”, o STF revogou essa liminar e restabeleceu o mandato da presidência “Y”. Passados apenas dois dias úteis do reestabelecimento do mandato, a Presidência “Y” é cassada pelo Parlamento e, por consequência, foram realizadas novas eleições, que concederam à Presidência “X” o mandato novamente, prosseguindo-se até o fim deste biênio.
Nos outros dois biênios subsequentes (2023-2024 e 2025-2026), foi eleita a mesma presidência “X”. Para facilitar a compreensão da aplicação da norma, elaborei a seguinte tabela:
A defesa que se tem feito, a partir da norma regimental, é de que a hipótese acima — três mandatos consecutivos — não estaria contemplada na vedação estabelecida pelo Supremo, considerando que o primeiro biênio deveria ser considerado como mandato-tampão.[1] Desse cenário, notadamente, podem surgir hipóteses variadas e similares, de modo que os delineamentos lançados a seguir, fornecerão as balizas conceituais e metodológicas suficientes ao alcance e sentido da norma.
Avanço na defesa do princípio republicano
A interpretação constitucional das normas regimentais das assembleias legislativas passou a ser tema recorrente nas ações levadas ao conhecimento do Supremo Tribunal Federal, possibilitando-se o estabelecimento de parâmetros mínimos na distribuição de poder político. Essa agenda republicana garantiu a consolidação do entendimento pela impossibilidade de mais de uma recondução à mesa diretora ao mesmo cargo (ADI 6.524) e, mais recentemente, a compreensão pela prevalência da realização de eleições contemporâneas, de modo que sejam efetivadas a partir do mês de outubro do ano que antecede ao início do mandato do novo biênio (ADIs 7.350; 7.734; 7.737; 7.713).
Apesar desse cenário jurisprudencial, tem-se observado arranjos regimentais que podem, ocasionalmente, burlar o postulado republicano, a depender do panorama hermenêutico que for empregado ao que se chama de “mandato-tampão”, fragilizando-se a alternância de poder.
Precedente do ex-deputado Rodrigo Maia
As reflexões sobre o assunto ganham relevância ao debate jurídico, porque um dos poucos casos levados ao STF (MS 34.574-DF) tomou como premissa o período restante ao fim do biênio-mandato. Na oportunidade (caso Rodrigo Maia), verificou-se a configuração do mandato-tampão em razão do período suplementar do exercício do mandato, que era ínfimo em ralação à íntegra do biênio (período entre 14/07/2016 a 02/02/2017).
Além disso, na ADI 6.524/DF, o STF excluiu genericamente do cômputo das reconduções o exercício de mandato-tampão, mas sem deixar qualquer lastro conceitual acerca do tema, resumindo-se, em algumas passagens, a caracterizar o caso nas hipóteses de se “completar o mandato”.
Aparentemente, não se teria muita dificuldade para encaixar a lógica meramente “suplementar” no caso do ex-deputado Rodrigo Maia ou a pensarmos, abstratamente, sobre o que poderia ser um mandato-residual, considerando que as legislaturas (quatro anos) são divididas em dois biênios e, em cada biênio, um mandato.
Não obstante, algumas normas regimentais, a exemplo da que chamou a atenção da agremiação política nacional, evidenciam risco interpretativo a subverter toda a construção racional acerca do princípio republicano, quando alojadas em hipóteses locais a desconsiderar a jurisprudência da Suprema Corte que veda reconduções, sem o devido amparo conceitual mínimo a se adequar à teleologia das normas constitucionais.
A interpretação normativa pode transparecer simplicidade resolutiva, mas nossas reflexões, inicialmente, nos rementem ao seguinte questionamento: o que configura um mandato como tampão?
Interpretação constitucional do contexto apresentado
A interpretação conforme à Constituição é uma técnica hermenêutica amplamente discutida tanto na doutrina quanto na jurisprudência, especialmente no direito constitucional. Seu objetivo é interpretar normas infraconstitucionais de maneira a garantir sua compatibilidade com a Constituição, evitando contradições e inconstitucionalidades.
A subsunção interpretativa do que possa ser considerado mandato-tampão, em nosso entender, e para evitar casuísmos interpretativos, deve passar por determinados filtros.
Duração significativa
A duração significativa do exercício do mandato é uma das premissas. Daí que um mandato tampão está associado a uma transição temporária e breve, diferentemente dos casos em que se assumam a gestão por quase todo o período do biênio. Hipóteses similares a contextualizada devem ser interpretadas como mandato pleno, e não apenas como uma solução provisória.
Vacância real
Outra premissa é a plena responsabilidade e exercício das funções. Durante o exercício do mandato, a presidência não estaria apenas “tampando” a vacância, mas assumindo todas as prerrogativas, decisões estratégicas e funções inerentes ao cargo de maneira integral. Isso o diferenciaria de um mandato tampão, que tende a ser um governo mais “de passagem” e menos envolvido em grandes decisões ou mudanças estruturais.
Em termos de continuidade administrativa e de legitimidade institucional, o intervalo de ausência mínima não impactaria significativamente no exercício pleno do mandato, reforçando a ideia de que a gestão desempenhara o cargo como titular legítimo durante lapso temporal considerável do biênio, de modo a possibilitar a criação, desenvolvimento e execução das políticas públicas estruturais, incapazes de serem realizadas em período residual.
Provisoriedade e interinidade
Uma das premissas mais importantes — e que se evidencia na contextualização — é a falta de caráter interino ou provisório. No caso de um mandato tampão, o mandatário interino geralmente está lá para manter a mera continuidade institucional, mas sem implementar grandes projetos ou mudanças. Quando se exerce quase integralmente o tempo de um mandato, a pessoa assume também o planejamento estratégico e a gestão a longo prazo.
Apesar de ser claro que um mandato residual se traduz também da sucessão, esse fator, per si, não pode ser o único levado em consideração, já que a brevidade, a transitoriedade, a inexpressividade e a interinidade são essenciais à caracterização do mandato-suplementar, mandato-residual ou mandato-suplementar. Essa é sua essência.
Conclusão
O aspecto temporal é elementar à interpretação constitucional do objeto proposto e, se assim não o fosse, poderíamos cogitar hipóteses interpretativas antirrepublicanas, de modo que determinado agente político poderia exercer o mandato por quase todo biênio e alegar, em razão do simples fator sucessório, a ocorrência do mandato-tampão a burlar a vedação à recondução. Nesse ponto, inexiste tratamento diferenciado em relação ao mandato regular.
Portanto, parece-nos inevitável um avanço interpretativo pela Suprema Corte, a fim de atribuir interpretação conforme à Constituição a determinadas normas regimentais, estabelecendo que não se configura mandato-tampão a afastar o cômputo das reconduções vedadas pela Suprema Corte, quando há exercício considerável do cargo no biênio (mais de um ano e seis meses), já que a temporalidade, a transitoriedade, a inexpressividade e a interinidade são essenciais à caracterização do mandato-tampão e à sua essencialidade de simplesmente “completar o mandato”.
[1] O mandato exercido em caráter tampão ou residual por membro da Mesa Diretora não será computado para fins de elegibilidade nos pleitos subsequentes, admitida a reeleição ou recondução para o mesmo cargo. (Art. 12, § 5º do Regimento Interno da Assembleia Legislativa do Estado de Roraima).
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