Senso Incomum

E surgem novos livros para a cura milagrosa da ignorância jurídica

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21 de novembro de 2024, 8h00

O que impacta e o que não impacta: já existe jus pagode para concursos

Spacca

Há poucos dias lancei o livro pela Editora Contra Corrente “Ensino Jurídico e(m) Crise — Ensaio contra a Simplificação. Não virou meme e não viralizou nas redes sociais. Afinal, por que impactaria escrever contra a simplificação do direito — que é essa coqueluche anti epistemológica que apaixona a comunidade jurídica? Por que alguém se arrisca a escrever contra a agnotologia jurídica?

O que gera meme e impacta é alguém lançar livro para concurso com músicas que servem para decoreba (ver aqui). Pergunta o autor: Já pensou em estudar ouvindo música? “Aprenda modalidades de licitação cantando” (em ritmo de pagode). Alguém já havia pensado nisso? Passar em concursos virou coisa fácil. Parênteses: o que possibilita isso tudo é o modelo de concursos públicos. Que é tão culpado quanto quem vende esse tipo de simplificação. Run to the Hils — eis a música para explicar a venda de mil músicas para concurso.

Outra coisa que “pega” é um manual desenhado-ilustrado, em que a propaganda mostra os livros tradicionais sendo descartados (num estalar de dedos — literalmente) e em seu lugar propõe um direito tão simplificado que qualquer pessoa entende (sic)… (para quem duvida, veja aqui). Incrível. Ou crível. Algo como uma funerária que fez uma peça publicitária que dizia: uma funerária que nem parece funerária. Algo como “venha morrer conosco”. Pois é.

Einstein e a simplificação da teoria da relatividade

Como na anedota sobre Einstein. Contou a teoria da relatividade e ninguém entendeu. Pediram para simplificar. Ele o fez. Ninguém entendeu. Depois da décima vez, um gaiato finalmente entendeu. E Einstein respondeu: pois você não entendeu. Pela simples razão de que isso que acabei de contar não é mais a minha teoria.

Entendam como quiser a anedota sobre Einstein.

Isso tudo vem na esteira do que venho criticando há décadas. NO novo livro Ensaio Contra a Simplificação mostro isso mais detidamente. Há mais de 25 anos denuncio que isso criaria o caos e a ignorância — eis a agnotologia. Um deliberado processo de ignorantização da malta jurídica.

Direito mastigado e Direito sem as partes chatas: viva a Lei Seca

Há livros que prometem um Direito sem as partes chatas ou partes difíceis; outros são os resumos dos resumos; outros mastigam o direito. Desenham. Há direito com sushi. Há plastificações para ler na praia e piscina. Há treinamento de “Lei Seca”. Ou seja: existe mesmo, como já denunciei, uma agnotologia jurídica.

Um grupo de Whatsapp me mandou um desses memes. Mas quando meu livro que denuncia isso tudo foi lançado não recebi meme sobre.

Só o bizarro vence.

E o direito se aproxima das igrejas na TV ou as igrejas na TV se aproximam dos coaches jurídicos?

Vendo um padre fazer propaganda de Ora Pro Nobis (ou um remédio para enxergar melhor !!!) antes da reza do terço e um pastor evangélico “curando” joelhos de senhoras fragilizadas pela artrose (nem falo da cura do Covid-19), não parece haver muita diferença com a cena de um dos vídeos vendendo livro ilustrado, quando livros de direito são derrubados e em seu lugar entra o “ora pro nobis jurídico” (placebo epistemológico, por assim dizer).

Cura milagrosa da ignorância jurídica — eis o lema.

E depois nos queixamos da resposta aos embargos?

Depois nos queixamos quando nossos embargos de declaração nem são examinados, são rejeitados, são chutados para escanteio. Ficamos brabinhos quando é aplicada multa no processo penal por analogia in malam partem. O dispositivo mais descumprido do processo é o artigo 489 do CPC (e o art. 315 do CPP) que determina fundamentação. E a comunidade jurídica se preocupa com questões periféricas.

Simbolizando, aplica-se a ponderação pegando um princípio em cada mão e fazendo um “balanceamento”. Afinal, simplificamos tanto Alexy que ele sumiu do mapa. A ponderação ficou tão simplificada que ela já não é.

Os Deuses devem ter enlouquecido

E assim a nave vai. Rumo ao abismo. Afinal, a terra jurídica é plana. Como no filme Os Deuses Devem Estar Loucos, um nativo foi encarregado de carregar as sofisticações para fora do mundo. Está correndo até hoje.

Efetivamente, há uma produção deliberada da ignorância jurídica. Isso está em tudo. Em todos os lugares. Mas no direito isso pega mais fácil.

POST SCRIPTUM: De há muito chove na serra — era uma coceira e hoje gangrenou

Já estou avisando há tempos. Canso de lembrar Zepeda e a história de que há muito chove na serra. Há décadas. Escrevi dezenas de artigos e livros alertando contra esse processo de ignorantização do direito. Contra a agnotologia.

Me chama(ra)m de alarmista. Diziam — e dizem: ah, não implica com isso; o resumo é para ajudar; qual é o problema de escrever simplificações? E hoje piorou, por causa da IA (ignorância artificial).

Pois é. Era uma coceirinha e hoje é uma gangrena. Do resumo ao esqueminha e à sinopse (que não dá sinapse)… ao resumo da sinopse ao palavrão (por todos, vejam o Seja F…em Direito) ao ChatGPT… e ao desenho. E ao livro com mais de mil músicas. Mais o livro “Manual” tão fácil que qualquer um entende — nem precisa ser do direito… Qualquer um “entende”.

Daqui a pouco será o quê? Será o resumo do desenho? Onde vamos parar? Emburrecemos? Não respondam.

Por isso a importância da agnotologia jurídica que lancei há semanas: para estudar o processo deliberado de “ignorantização” da malta.

Ora Pro Nobis Juris.

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