Opinião

Autoria de inteligência artificial e o curioso caso do Projeto de Lei 303/2024

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21 de novembro de 2024, 15h18

O rápido avanço da inteligência artificial está transformando indústrias, incluindo inovação e propriedade intelectual. À medida que sistemas de IA geram obras criativas e invenções de forma autônoma ou com mínima intervenção humana, desafiam as leis tradicionais de PI.

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No centro desse debate está a questão da autoria e invenção em criações geradas por IA. Estruturas tradicionais de PI partem do princípio de um criador humano por trás de cada invenção ou obra criativa. Essa abordagem centrada no humano gera problemas complexos quando um sistema de IA cria algo novo sem envolvimento humano direto. Este artigo explora o cenário jurídico brasileiro sobre a autoria de invenções geradas por IA e destaca as respostas legislativas para esse desafio emergente.

No Brasil, o principal projeto atualmente em tramitação sobre IA é o Projeto de Lei  2338/23, que dispõe sobre o uso da inteligência artificial. O objetivo é estabelecer princípios fundamentais para o desenvolvimento e uso da IA, promover a inovação garantindo padrões éticos e criar um ambiente regulatório que equilibre o avanço tecnológico com a proteção dos direitos individuais, incluindo privacidade e proteção de dados.

O projeto enfatiza a transparência nos algoritmos de IA, a responsabilidade pelas decisões tomadas por IA e incentiva o investimento em pesquisa e desenvolvimento para aumentar a competitividade global do Brasil. Em 30 de novembro de 2021, o projeto foi encaminhado ao Senado e aguarda discussão e votação.

Sistema de IA como inventor

Especificamente em relação à IA e à propriedade intelectual, em 20 de fevereiro de 2024, foi apresentado ao Congresso o PL 303/2024, propondo reconhecer um sistema de IA como inventor. Esse projeto propõe alterar a Lei de Propriedade Industrial (Lei nº 9.279/1996), adicionando ao artigo 6º a seguinte disposição: “No caso de invenções geradas autonomamente por um sistema de inteligência artificial, a patente poderá ser solicitada em nome do sistema de inteligência artificial que criou a invenção, podendo este ser considerado o inventor e titular dos direitos inerentes à invenção“.

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O autor da proposta mencionou o caso da IA Dabus, desenvolvida por Stephen Thaler, que apresentou pedidos de patente no Brasil e em outros países, listando a IA como inventora. Embora suas solicitações tenham sido negadas, o caso gerou discussões globais sobre o reconhecimento da IA como inventora.

O deputado responsável pelo projeto argumenta que a alteração da Lei de Propriedade Industrial é necessária para “adequar a legislação brasileira à realidade das inovações tecnológicas, especialmente quanto a invenções geradas autonomamente por sistemas de IA”. Ele acredita que reconhecer sistemas de IA como inventores e titulares de invenções patenteáveis pode acelerar a inovação, impulsionar o crescimento econômico e criar oportunidades de emprego.

No entanto, o projeto não explica como um sistema de IA teria personalidade jurídica para adquirir direitos de patente, uma questão fundamental apontada pelo relator do projeto. Embora o estabelecimento de um sistema de IA como inventor já seja debatível (visto que a condição humana é presumidamente inerente ao desenvolvimento de direitos de propriedade industrial), reconhecer um sistema de IA como titular dos direitos de patente inerentes à invenção é um passo além.

INPI rejeita hipótese de sistema de IA ser inventor

É importante observar que o Instituto Nacional da Propriedade Industrial (INPI) rejeita expressamente a indicação de um sistema de IA como inventor em pedidos de patente no Brasil, com base no Parecer Jurídico nº 24/2022, onde essa questão foi diretamente analisada.

Em um relatório emitido em 7 de outubro, o relator destacou críticas significativas à proposta original, sugerindo ajustes. Primeiro, a ausência de personalidade jurídica nos sistemas de IA é um grande obstáculo, pois a legislação atual permite apenas que pessoas naturais ou jurídicas detenham direitos de patente. A atribuição de direitos a entidades não humanas exigiria uma redefinição fundamental de personalidade jurídica, um grande desafio não abordado no projeto.

Segundo, há ambiguidade na titularidade dos direitos. Se um sistema de IA é considerado inventor, surgem dúvidas sobre quem detém os direitos de propriedade intelectual: o desenvolvedor da IA, o operador do sistema ou a entidade que fornece dados para o treinamento da IA? Além disso, atribuir autoria a máquinas levanta preocupações sobre a diluição do conceito de criatividade e inovação humanas, impactando o valor atribuído ao trabalho intelectual.

Terceiro, é necessário definir novos critérios para avaliar a inventividade, a novidade e a aplicabilidade industrial das criações geradas por IA, considerando que podem seguir padrões diferentes dos estabelecidos para invenções humanas. Essas mudanças poderiam influenciar não apenas o sistema de propriedade intelectual, mas também o mercado de inovação como um todo, alterando o equilíbrio entre a proteção de invenções humanas e geradas por IA.

Impacto da inteligência artificial

Para abordar essas questões e equilibrar o impacto da IA na inovação, o relatório propôs as seguintes mudanças:

  1. Mesmo quando uma invenção ou modelo de utilidade for desenvolvido com assistência parcial ou total de sistemas de IA, a titularidade da patente será atribuída ao autor humano ou a uma entidade.

  2. Os prazos de proteção para invenções ou modelos utilitários desenvolvidos com assistência de IA devem ser modificados. Especificamente, o artigo 40 da Lei nº 9.279/1996 estabeleceria que patentes de invenção desenvolvidas com assistência predominante de IA terão validade de cinco anos, enquanto as desenvolvidas inteiramente de forma autônoma pela IA terão validade de três anos a partir da data de depósito.

E para modelos de utilidade, esses prazos seriam reduzidos para três e um ano, respectivamente, dependendo do grau de participação da IA no processo inventivo. O artigo 35 também deveria ser alterado para incluir, entre os requisitos técnicos, a classificação do grau de assistência de IA na aplicação da patente.

O PL 303/2024 será atribuído a um novo relator, já que o inicial deixou a Comissão de Ciência, Tecnologia e Inovação.

Globalmente, prevalece a visão de que apenas pessoas naturais podem ser reconhecidas como inventoras sob a lei de patentes. Os casos da Dabus geraram debate, mas, em grande parte, reforçaram a necessidade de inventores humanos.

Em 2019, o USPTO indeferiu pedidos de patente listando Dabus como inventor, afirmando que apenas pessoas naturais podem ser nomeadas. Os tribunais dos EUA mantiveram essa decisão, afirmando que o inventor deve ser humano sob a lei atual. Em março de 2023, o Escritório de Direitos Autorais dos EUA esclareceu que obras geradas inteiramente por IA não são elegíveis para proteção autoral, a menos que um autor humano exerça controle criativo.

Decisão na Europa

O Escritório Europeu de Patentes também indeferiu pedidos relacionados à Dabus, enfatizando que o inventor deve ser um humano com capacidade jurídica.

Em 2023, o INPI emitiu decisão final de indeferimento sobre o pedido de patente da Dabus devido à impossibilidade de designar uma IA como inventora em uma patente no Brasil, com base no artigo 6 da Lei de PI, assim como nas disposições da Convenção de Paris e do Acordo Trips. No Brasil, o inventor de uma patente deve ser um indivíduo com capacidade de ter direitos e personalidade jurídica.

O Tribunal Federal de Justiça da Alemanha (11 de junho de 2024) decidiu que a pessoa natural que influenciou significativamente a IA deve ser identificada como inventora, reforçando que, embora invenções geradas por IA possam ser patenteadas, a inventividade é reservada aos humanos.

A interseção entre IA e Lei de PI é uma fronteira dinâmica que desafia conceitos tradicionais. À medida que sistemas de IA se tornam mais sofisticados, capazes de gerar invenções com mínima intervenção humana, sistemas jurídicos em todo o mundo enfrentam o desafio de equilibrar a promoção da inovação com os princípios de PI. Adaptar-se a essa nova realidade pode exigir reavaliações das leis, elaboração de novas legislações e cooperação internacional para enfrentar os desafios únicos que a IA apresenta na PI.

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