Academias de ginástica e responsabilidade civil: 'Era Fitness' chega aos tribunais
21 de novembro de 2024, 17h25
Com a ironia que lhe é peculiar, Luis Fernando Verissimo reflete que os 15 primeiros dias de um novo ano se constituem em uma espécie de eterna segunda-feira [1], pois as ruas de todos os cantos estão cheias de novos renovados, pessoas verdadeiramente decididas a serem a sua melhor versão no ano que acaba de se iniciar: vão às academias, convertem-se a uma nova religião, perdoam seus devedores etc. Após estes 15 dias, arremata o escritor: tudo volta a ser como era antes.
Se toda brincadeira guarda um pouco de verdade só mesmo checando para se saber, mas fato é que alguns dados revelados por pesquisas recentes sobre saúde e uso de academias de ginástica em diversos países possuem algumas contas que não fecham por simples verificação (e dão razão a Verissimo).
Os Estados Unidos, por exemplo, são o país que mais possuem unidades de academias de ginástica (41.190) e igualmente o que têm o maior percentual de pessoas obesas (não se desconhece que há inúmeros fatores que contribuem para a obesidade além da variável do sedentarismo e também que quem não frequenta academia pode fazer atividade física ao ar livre, v.g.).
O Brasil, de sua vez, é o segundo país quando o assunto é número de academias (29.525 unidades), perdendo neste quesito tão somente para os Estados Unidos — dito acima — e ficando à frente de países como México (12.871 unidades), Alemanha (9.669 unidades) e Argentina (7.910 unidades) [2].
Também é o segundo se a discussão descamba para a frequência de pessoas de determinado estado que frequentam academias — o percentual é de 21% e deixa o país atrás apenas da Índia (24%). A título de curiosidade, o país que menos frequenta academias é a França (apenas 4%).
Seja como for, se por um lado existe a constatação de que a frequência com que brasileiras e brasileiros fazem uso de academias de ginástica só aumenta no que se tem denominado de Era Fitness ou Mundo Fitness [3]; de outro, e como nem tudo são flores e harmonia, os problemas daí decorrentes têm, em grande conta, desaguado para o mar nem sempre calmo do Judiciário.
Responsabilidade civil objetiva de academias por defeito ou falha na prestação de serviços
Antes de se avançar ao estudo da jurisprudência sobre casos ocorridos em academias de ginástica, é importante registrar que, via de regra, é hipótese didática de relação jurídica de consumo aquela em que figura, de uma banda, o consumidor (aluno que se matricula na academia por meio de pagamento) e, de outra, unidade que efetivamente presta serviços de ginástica mediante remuneração, entendendo-se como fornecedor tudo que lhe diga respeito ou esteja sob seu guarda-chuva (personal trainers, materiais, segurança, apoio etc.).
Posta a relação jurídica de consumo [4], uma vez verificada falha ou defeito na prestação de serviços por parte do fornecedor recai sobre este o dever jurídico secundário, isto é, de reparação, o qual se dá, pela sistemática do Código de defesa do Consumidor [5], via responsabilidade civil objetiva.
Acerca desta categorização anota Bruno Miragem que responsabilidade objetiva “é aquela em que a obrigação de indenizar se constitui independentemente da demonstração de culpa do agente. (…) Justifica-se pela impossibilidade prática, ou mesmo a inutilidade da investigação acerca da presença de culpa como critério para definir a responsabilidade. ”
Colocadas rapidamente, até por questões de formatação, as bases da responsabilidade civil objetiva no campo de incidência do Código de Defesa do Consumidor, e sempre fazendo a ressalva do saudoso ministro Paulo de Tarso Sanseverino de que “a melhor das teorias não vale um bom caso concreto [6]”, avança-se por reproduzir a jurisprudência de tribunais estaduais em casos envolvendo academias de ginástica, de um lado; e consumidor/aluno que remunera para usar dos serviços ofertados, de outro.
Apenas um recorte: veja-se que a discussão aqui contorna tão somente o âmbito de incidência de responsabilidade civil objetiva de academias em relação a danos percebidos por alunos em decorrência de falha ou defeito na prestação de serviço. Ou seja, estão de fora do escopo deste artigo questões, por exemplo, relacionadas ao dever de academias pagarem direitos autorais por músicas que são tocadas em seus ambientes de ginástica [7]; livre [8] ou pago acesso de personal trainers a academias de ginástica [9]; quantidade mínima de personal trainers por academia [10] ou ainda dever de academias possuírem isolamento acústico adequado para não causar poluição sonora aos vizinhos [11]. Igualmente, mas este será objeto de artigo nesta coluna, a responsabilidade civil de influencers fitness (considerados assim aqueles com mais de 100 mil seguidores) pela qualidade científica de seus posts [12].
Pesquisa jurisprudencial
Para esta amostragem, extraiu-se do portal Jusbrasil, por meio de pesquisa dos termos entre aspas responsabilidade civil e academias de ginástica, apenas acórdãos de tribunais estaduais publicadas no último ano. Foram 218 resultados obtidos [13] e aqui serão reproduzidos dez deles (novamente por questões de formatação), considerados por este autor como mais representativos da matéria (por falhas qualitativas pede-se escusas: os meninos são todos sãos e os pecados são todos meus, diria Gilberto Gil):
Tribunal de Justiça/Número do processo | Objeto de lide (ementa no rodapé) | Data de publicação da decisão | Condenação |
1. TJPR. 2º grau. Número: 0007930-21.2022.8.16.0182 | Queda em esteira de academia de ginástica com ausência de instrutor para supervisão adequada dos alunos no local e para tomar medidas de socorro imediata. | 24.11.2023 | R$ 2.500,00 – Dano estético
R$ 2.500,00 – Dano moral
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2. TJAM. 2º grau. Número: 0605926-19.2023.8.04.0001 | Academia de ginástica realizou cobrança de mensalidades mesmo após cancelamento dos serviços | 27.3.2024 | danos materiais e morais (não foram divulgados valores no acórdão).
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3. TJSP. 2º grau. Número: 10042245720208260003 | Aluno vítima de agressão física por instrutor na academia de ginástica em que se exercitava. Responsabilidade solidária da academia.
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29.4.2024 | R$ 3.000,00 |
4. TJSP. 2º grau. Número: 10065026020228260100 | Furto de cartões bancários e de agenda com anotações pessoais, inclusive senhas bancárias, guardados em armário de vestiário de academia de ginástica.
tribunal entendeu que houve culpa concorrente pois as senhas estavam juntamente com os cartões. |
30.8.2024 | Culpa concorrente. Valores não informados no acórdão. |
5. TJAM. 2º grau. Número: 1522720208044701 | Educador físico contratado da academia comercializou substancias anabolizantes sem devida prescrição médica para cliente. | 5.7.2023 | DANOS MATERIAIS E
R$ 10.000,00 DE dano moral |
6. TJSP. 2º Grau. Número: 10000509120248260123 | Alteração unilateral de plano contratado por aluno, o que a impediu de entrar em unidade que estava anteriormente dentro do escopo contratual. | 21.6.2023. | DANO MORAL DE R$ 2.000,00 |
7. TJSP. 2º grau. Número: 10140424520218260020. | Furto de veículo dentro de estacionamento sob responsabilidade da academia.
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14.6.2024 | dano material no valor da tabela fipe do veículo e
R$ 12.000,00 de danos morais. |
8. TJES. Processo 5001387-96.2021.8.08.0044. | Descarga elétrica em alunos que faziam uso de esteira. | 10.6.2024 | R$ 3.000,00 de dano moral. |
9. TJMG. 2º grau. Número: 5030276-39.2023.8.13.0145 | Queda de consumidor em piso molhado na academia sem qualquer aviso. pinos no tornozelo, cirurgias. | 10.10.2024 | danos materiais e R$ 25.000,00 a título de dano moral. |
10. TJRS. 2º grau. 50024636220238210097. | falha no dever de segurança digital do consumidor. Responsabilidade da academia pelos dados do consumidor/aluno. Academia permitiu que extraíssem os dados do consumidor e fizessem contratações por meio de seus dados bancários. | 13.3.2023 | R$ 3.000,00 DE DANO MORAL. |
(Ligeiras) conclusões
Pelo que se viu acima, arremata-se com duas conclusões ordinárias e necessárias (porque o óbvio, ainda que ululante, precisa ser dito e redito, rodriguinamente falando):
1 Compete à academia de ginástica, quando da contratação, supervisionar seus profissionais de saúde que prestam serviços aos contratantes já que há confiança dos consumidores quanto aos contratados pela própria academia;
2 A responsabilidade civil da academia de ginástica é objetiva, sendo excluída tão somente quando comprovada a inexistência de defeito ou vício na prestação de serviço ou ainda culpa exclusiva da vítima.
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[1] VERISSIMO, Fernando. Orgias. São Paulo: Objetiva, 2005, p. 5.
[2] Brasileiros estão em 2º no ranking mundial dos que mais vão a academias. Disponível em: <https://www.em.com.br/app/noticia/saude-e-bem-viver/2023/01/18/interna_bem_viver,1446196/brasileiros-estao-em-2-no-ranking-mundial-dos-que-mais-vao-a->academias.shtml#:~:text=Quando%20se%20trata%20da%20quantidade,terceiro%20e%20quarto%20lugar%2C%20respectivamente.>. Acesso: 9 nov. 2024.
[3] Mundo fitness é fake nas redes sociais (…). Disponível em: < https://www1.folha.uol.com.br/poder/2024/11/mundo-fitness-e-fake-nas-redes-sociais-afirma-bruno-gualano-na-casafolha.shtml>. Acesso: 10 nov. 2024.
[4] STJ. “Unidade de academia de ginástica é fornecedora dos serviços de musculação, submetida ao CDC, com responsabilidade objetiva”. AgInt no AREsp: 1903083 DF 2021/0154163-7, Relator: JOÃO OTÁVIO DE NORONHA, Data de Julgamento: 03/04/2023, T4 – QUARTA TURMA, Data de Publicação: DJe 11/04/2023.
[5] CDC. Defeito do serviço: Art. 14. O fornecedor de serviços responde, independentemente da existência de culpa, pela reparação dos danos causados aos consumidores por defeitos relativos à prestação dos serviços, bem como por informações insuficientes ou inadequadas sobre sua fruição e riscos. Falha no serviço:
[6] In: Jornada Jurídica de Saúde Suplementar. Disponível em: <https://youtu.be/mUXhL7ZjjxQ>. Acesso: 15 nov. 2024.
[7] AGRAVO REGIMENTAL NOS EMBARGOS DE DECLARAÇÃO NO RECURSO ESPECIAL. DIREITO AUTORAL. COBRANÇA. ECAD. ACADEMIA DE GINÁSTICA. LUCRO INDIRETO. 1. A orientação desta Corte é no sentido de que o pagamento dos direitos autorais ao ECAD é devido sempre que ocorrer a execução pública de obras musicais, apresentando-se irrelevante a demonstração de finalidade lucrativa. 2. Agravo regimental não provido. (STJ – AgRg nos EDcl no REsp: 1502857 PB 2014/0326839-7, Relator: Ministro RICARDO VILLAS BÔAS CUEVA, Data de Julgamento: 15/12/2015, T3 – TERCEIRA TURMA, Data de Publicação: DJe 04/02/2016).
[8] Audiência pública vai debater livre acesso de personal trainers a academias. Disponível em: <https://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2024/06/05/audiencia-publica-vai-debater-livre-acesso-de-personal-trainers-a-academias>. Acesso: 15 nov. 2024.
[9] Liminar proíbe que academia cobre taxa de personal trainer. Disponível em: <https://www.tjdft.jus.br/institucional/imprensa/noticias/2022/junho/liminar-proibe-que-academia-cobre-taxa-a-personal-trainer>. Acesso: 15 nov. 2024.
[10] Comissão aprova limite para taxa cobrada por academias a personal trainer. Disponível em: <https://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2024/07/03/comissao-aprova-limite-para-taxa-cobrada-por-academias-a-personal-trainer>. Acesso: 15 nov. 2024.
[11] APELAÇÃO CÍVEL. AÇÃO DE OBRIGAÇÃO DE FAZER CUMULADA COM INDENIZATÓRIA. DIREITO DE VIZINHANÇA. ALEGAÇÃO DE BARULHO EXCESSIVO PRODUZIDO POR ACADEMIA DE GINÁSTICA DO CONDOMÍNIO. PERTURBAÇÃO DO SOSSEGO. SENTENÇA DE PROCEDÊNCIA. IRRESIGNAÇÃO DO CONDOMÍNIO RÉU. LAUDO PERICIAL CONCLUSIVO NO SENTIDO DE QUE A ACADEMIA NÃO POSSUI ISOLAMENTO ACÚSTICO ADEQUADO E QUE O IMÓVEL DA AUTORA SOFRE A AÇÃO DIRETA DA POLUIÇÃO SONORA CAUSADA PELA UTILIZAÇÃO DOS EQUIPAMENTOS. Insurge-se o condomínio réu contra sentença que julgou procedente o pedido autoral para condená-lo a realizar obra de acústica na academia visando a adequá-la ao padrão mínimo de ruído, delimitado no laudo pericial, bem como a compensar a autora o valor de R$ 8.000,00 a título de dano moral. Do exame do conjunto probatório e das alegações das partes, resta incontroverso que a academia de ginástica do condomínio localiza-se no bloco da unidade residencial da autora. A prova técnica realizada concluiu que a aludida academia não possui isolamento acústico adequado, de modo que o imóvel da autora sofre a ação direta da poluição sonora causada pela utilização dos equipamentos de ginástica no local. Interferência prejudicial ao sossego dos vizinhos. Patente abalo na esfera psíquica da parte autora diante da exposição diária a ruídos excessivos dentro da própria residência, incompatíveis com a vida condominial. Desídia do apelante em buscar a resolução administrativa da questão, apesar das diversas reclamações. Verba compensatória que deve ser mantida, posto que arbitrada em observância aos princípios da razoabilidade e da proporcionalidade diante das peculiaridades do caso concreto. Súmula 343 do TJRJ. DESPROVIMENTO DO RECURSO. (TJ-RJ – APELAÇÃO: 0066865-43.2013.8.19.0002 202300147806, Relator: Des(a). FABIO UCHOA PINTO DE MIRANDA MONTENEGRO, Data de Julgamento: 21/11/2023, VIGESIMA PRIMEIRA CAMARA DE DIREITO PRIVADO (ANTIG, Data de Publicação: 22/11/2023)
[12] O fetiche do mundo fitness. Um spoiler: “Pesquisadores da Universidade Federal de Juiz de Fora avaliaram a qualificação dos maiores influencers fitness brasileiros –definidos como aqueles com mais de 100 mil seguidores no Instagram– e a qualidade científica de seus posts.
Encontraram que (a) 1 em cada 4 influencers não tem nenhuma credencial acadêmica; (b) quanto pior a sua formação, maior o número de seus seguidores; e (c) o número de seguidores não mantém correlação significante com a qualidade dos posts. Trocando em miúdos, influencers fitness não são boa influência. Alguma surpresa?” Disponível em: <https://www1.folha.uol.com.br/colunas/bruno-gualano/2024/11/o-fetiche-do-mundo-fitness.shtml#:~:text=O%20chamado%20mundo%20fitness%20%E2%80%93ind%C3%BAstria,%2C%20suplementos%2C%20equipamentos%2C%20servi%C3%A7os.>. Acesso: 15 nov. 2024.
[13] Acaso tenha interesse em se aprofundar em todos os acórdãos obtidos com a pesquisa, favor acessar o link: https://www.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/busca?q=responsabilidade+civil+academias+de+gin%C3%A1stica&l=365dias&tribunal=tj&jurisType=acordao
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