Estupro de vulnerável: necessidade de um tipo penal intermediário no artigo 217-A do Código Penal
21 de novembro de 2024, 16h17
O Brasil tem apresentado recordes em números de crimes sexuais: em 2023, registrou o maior número de estupros e estupro de vulnerável da história [1]. Diante desse aumento, surgem também preocupações de cunho técnico, notadamente quanto à proporcionalidade da pena imposta em contrapartida ao fato praticado, sem deixar de lado a proteção integral que deve ser conferida à vítima.
No presente texto trataremos, especificamente, da (des)proporcionalidade da pena do crime de estupro de vulnerável.
Previsto no artigo 217-A do Código Penal, o estupro de vulnerável preceitua a reprimenda mínima de oito anos de reclusão àquele indivíduo que praticar conjunção carnal ou outro ato libidinoso com menor de 14 anos, incorrendo na mesma pena quem pratica tais atos contra aquele(a) que, por enfermidade ou deficiência mental, não tiver o necessário discernimento para a prática do ato ou que não puder oferecer resistência, por qualquer que seja o motivo.
Da leitura do dispositivo, verifica-se que há uma equiparação entre a prática da conjunção carnal — que consiste na relação sexual caracterizada pela introdução do pênis na vagina, dispensando-se penetração completa ou ejaculação [2] — e do ato libidinoso — que é qualquer prática diversa que tenda a excitar ou satisfazer a lascívia do agente.
Significa que, aos olhos do legislador, ambos os atos são punidos da mesma forma e com idêntico rigor, o que tem se mostrado bastante problemático na prática em termos de atendimento do princípio da proporcionalidade da pena. Afinal, um sujeito que “apenas” passou as mãos em qualquer região não púbere do corpo de uma vítima menor de 14 anos poderá receber a mesma reprimenda que o sujeito que com ela manteve conjunção carnal.
Quando se diz “apenas”, não quer se afirmar que a conduta de tocar o corpo alheio sem consentimento e com intenção lasciva não seja grave. Certamente o é. A questão é que o desvalor de uma ação consistente em forçar a penetração vaginal ou anal parece ganhar relevo quando comparada com condutas que não suplantam a esfera do “passar a mão”.
Presunção de vulnerabilidade de menor de 14 anos
Para tornar a questão ainda mais complexa, relembremos que a presunção de vulnerabilidade do menor de 14 anos é absoluta, conforme preceitua a Súmula 593 do Superior Tribunal de Justiça [3]. Isso inviabiliza eventual desclassificação do estupro de vulnerável para crimes menos graves, como o de importunação sexual, salvo raríssimas exceções [4].
Há, ainda, um outro complicador: a pena mínima cominada ao delito de estupro de vulnerável é de oito anos. Ocorre que, na prática, dificilmente não incidirão na dosimetria da pena circunstâncias judiciais negativas, agravantes ou causas de aumento de pena, já que, como se sabe, grande parte destes crimes ocorre em relações domésticas ou de intimidade e afeto. Isso vai implicar a imposição de regime fechado para quase todos os casos em que há condenação pelo delito do artigo 217-A, CP.
Será mesmo razoável que um sujeito que manteve relações sexuais, com penetração vaginal, contra determinada vítima receba o mesmo regime de cumprimento de pena do que o sujeito que tocou a perna de uma vítima por cima da roupa e lhe deu um abraço, por exemplo?
A discussão ganha maiores dimensões no tocante ao standard probatório no espectro desses crimes, que, por serem praticados na clandestinidade em sua grande maioria, são submetidos a um rebaixamento do padrão de prova, a pretexto de não gerar impunidade. Como afirma Matida[5], “tudo se torna mais complexo do que o rotineiro em se tratando de crimes de gênero”. Por isso, há uma valoração muito mais ampla da palavra da vítima e, por conseguinte, um conflito com a presunção de inocência e com as presunções epistêmicas do processo penal [6].
Prática sem vestígios
Uma dificuldade muito frequente diz respeito àqueles casos em que a suposta prática não deixa vestígios, sendo impossível a realização de exame de corpo de delito. Isso pode acontecer pela falta de resistência da vítima, porque o próprio modus operandi não foi fisicamente violento ou porque o tipo de conduta praticada não deixa vestígios, como no caso de toques superficiais ou orais.
André Szesz destaca que o depoimento da vítima, de fato, merece uma atenção especial. Contudo, isso não pode significar uma presunção de veracidade absoluta. A uma porque isso significaria a inversão do ônus da prova, que, no processo penal brasileiro, está claramente colocado sobre a acusação. A duas “porque isso facilitaria o êxito de denunciações caluniosas, sobretudo considerando a dificuldade, e eventual impossibilidade, da prova negativa de um fato”.
Isso sem contar o problema das falsas memórias nos casos de estupro de vulnerável e dos depoimentos colhidos ou valorados de forma metodologicamente equivocada, da mentira que pode derivar de alienação parental, de imaturidade e da ausência de compreensão das consequências de uma acusação desse porte [7].
Não se questiona a gravidade dos danos envolvidos nesses crimes. Falta, porém, uma análise racional da extensão do dano em vítimas de atos libidinosos menos invasivos do que a conjunção carnal. Se a distinção do desvalor da ação é claramente aferível, bastando que se comparem condutas, é preciso avançar para que se possa distinguir, também, os diferentes graus de desvalor de resultado (e, portanto, de ofensa ao bem jurídico). E essa distinção deve ser contemplada pela norma penal.
Diante disso, torna-se fundamental ponderar os princípios da presunção de inocência e da proporcionalidade da pena em cotejo ao próprio estigma gerado pelo processo penal, preservando, ao mesmo tempo, a proteção integral da vítima e a valoração de sua palavra.
Proporcionalidade da sanção
Para além da questão probatória e principiológica, urge a necessidade de se atender ao critério de proporcionalidade da sanção atribuída ao tipo frente ao ato efetivamente praticado.
Tanto figura como desproporcional a imposição da mesma sanção ao cometimento do ato de conjunção carnal e práticas libidinosas que alguns tribunais passaram a utilizar a figura da tentativa (artigo 14, II, CP) em casos envolvendo o segundo, a fim de alcançar a proporcionalidade da pena [8], o que foi rechaçado pelo Superior Tribunal de Justiça [9].
A mesma discussão já surgiu em momento pretérito quando se falava sobre o abismo entre o crime de estupro e a contravenção de importunação ofensiva ao pudor, na qual o julgador deveria optar por um ou por outro, a depender do caso concreto, sem uma alternativa intermediária. A criação do artigo 215-A solucionou parte desse dilema ao oferecer uma punição mais proporcional para atos de menor gravidade.
Do mesmo modo, entende-se que há extensa discrepância entre a prática da conjunção carnal e de ato libidinoso previstas no tipo em análise, em especial ao se considerar que, em termos probatórios, há uma tendência de maior facilidade na demonstração do primeiro do que quando houver um beijo lascivo ou um toque sexual, por exemplo, além de ter afetação e repercussões distintas ao bem jurídico tutelado.
Ajuste de legislação, e não novas normas penais
A questão posta não é a de propor a criação de novas normas penais, mas, sim, ajustar a legislação vigente para adequar a sanção aos diferentes tipos de condutas abarcados pelo artigo 217-A. Criar um tipo penal intermediário, ou trabalhar com um método de qualificadoras do delito, poderia conferir maior proporcionalidade e racionalidade ao sistema punitivo, permitindo uma resposta penal mais ajustada à gravidade do ato e do seu resultado, preservando, ao mesmo tempo, a vítima.
Assim, a implementação de um parágrafo dirigindo-se especificamente aos atos libidinosos diversos da conjunção carnal, contendo uma redução da pena, ou a transformação da conjunção carnal em forma qualificada de estupro de vulnerável, apenada de forma mais severa, reservando-se o caput a atos libidinosos menos graves, com pena mais branda, parecem soluções oportunas, congruentes e necessárias diante de uma perspectiva sancionatória que se pretenda proporcional.
Diante da complexidade e da variedade de condutas abrangidas pelo artigo 217-A, do Código Penal, urge a necessidade de adaptação da legislação para uma resposta punitiva que seja mais justa e proporcional, na medida em que uma norma intermediária permitiria a atribuição de uma sanção que refletisse de forma adequada a gravidade de cada ato, garantindo, assim, a compatibilização entre a proteção integral da vítima e a preservação dos direitos fundamentais do imputado.
_______________________
Referências
MARCÃO, Renato; GENTIL, Plínio. Crimes contra a dignidade sexual. 3. ed. São Paulo: Saraiva Educação, 2018, e-Book.
MATIDA, Janaína Roland. A determinação dos fatos nos crimes de gênero: entre compromissos epistêmicos e o respeito à presunção de inocência. In Violência de Gênero: temas polêmicos e atuais. André Nicolitt e Cristiane Brandão Augusto (orgs). São Paulo: D´Plácido. 2019, p. 87-110.
SZESZ, André. O standard de prova para condenação por crimes sexuais: é viável e eficaz a flexibilização da exigência de corroboração probatória em crimes dessa espécie com o objetivo de redução da impunidade? Revista Brasileira de Direito Processual Penal. Porto Alegre, v. 8, n. 2, p. 1007-1041, mai.-ago. 2022.
[1] Foram registrados 20.124 casos de estupro no ano de 2023, 0,5% a mais que o ano anterior. Já os casos de estupro de vulnerável representam 64.237 em 2023, 2,2% a mais que 2022. Disponível em: https://forumseguranca.org.br/wp-content/uploads/2024/07/anuario-2024.pdf.
[2] MARCÃO, Renato; GENTIL, Plínio. Crimes contra a dignidade sexual. 3. ed. São Paulo: Saraiva Educação, 2018, e-Book, p. 70.
[3] O crime de estupro de vulnerável se configura com a conjunção carnal ou prática de ato libidinoso com menor de 14 anos, sendo irrelevante eventual consentimento da vítima para a prática do ato, sua experiência sexual anterior ou existência de relacionamento amoroso com o agente.
[4] SZESZ, André. O standard de prova para condenação por crimes sexuais: é viável e eficaz a flexibilização da exigência de corroboração probatória em crimes dessa espécie com o objetivo de redução da impunidade? Revista Brasileira de Direito Processual Penal. Porto Alegre, v. 8, n. 2, p. 1007-1041, mai.-ago. 2022.
[5] MATIDA, Janaína Roland. A determinação dos fatos nos crimes de gênero: entre compromissos epistêmicos e o respeito à presunção de inocência. In Violência de Gênero: temas polêmicos e atuais. André Nicolitt e Cristiane Brandão Augusto (orgs). São Paulo: D´Plácido. 2019, p. 87-110.
[6] SZESZ, André. O standard de provas… p. 1027.
[7] SZESZ, André. O standard de provas… p. 1027.
[8] Vide, por exemplo, Apelações criminais n° 0003358-44.2019.8.16.0047, n° 0003847-65.2021.8.16.0159, 0004007-97.2017.8.16.0105, 0000632-97.2020.8.16.0068, todas TJPR e Apelação criminal 1500193-25.2020.8.26.0103, do TJSP.
[9] AGRAVO REGIMENTAL NO AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL. ESTUPRO DE VULNERÁVEL. ASBSOLVIÇÃO. IMPOSSIBILIDADE. CONDENAÇÃO FUNDAMENTADA EM ELEMENTOS DOS AUTOS. ALTERAÇÃO DA CONCLUSÃO DAS INSTÂNCIAS DE ORIGEM. INCIDÊNCIA DA SÚMULA N. 7/STJ. RECONHECIMENTO DA TENTATIVA. INVIABILIDADE. CRIME CONSUMADO PELA PRÁTICA DE ATOS LIBIDIONOSOS DIVERSOS DA CONJUNÇÃO CARNAL, AINDA QUE SUPERFICIAIS. DESCLASSIFICAÇÃO. VIOLÊNCIA PRESUMIDA. RECURSO IMPROVIDO. […] Ademais, inviável o reconhecimento da tentativa, tendo em vista que “o agravante passou a sua mão sobre a genitália da vítima, à época contando 12 anos de idade, conduta que, por si só, configura o crime previsto no art. 217-A do Código Penal – CP (estupro de vulnerável), não se admitindo a tentativa” (AgRg no AREsp n. 2.321.236/SP, relator Ministro Joel Ilan Paciornik, Quinta Turma, julgado em 5/12/2023, DJe de 12/12/2023). 4. De mais a mais, “conforme tese firmada pela Terceira Seção desta Corte, no julgamento do Recurso Especial Repetitivo n. 1.954.997/SC, relator Ministro Ribeiro Dantas, julgado em 8/6/2022, DJe de 1/7/2022, Tema 1121, “[p]resente o dolo específico de satisfazer à lascívia, própria ou de terceiro, a prática de ato libidinoso com menor de 14 anos configura o crime de estupro de vulnerável (art. 217-A do CP), independentemente da ligeireza ou da superficialidade da conduta, não sendo possível a desclassificação para o delito de importunação sexual (art. 215-A do CP)” (AgRg no AREsp n. 2.321.236/SP, relator Ministro Joel Ilan Paciornik, Quinta Turma, julgado em 5/12/2023, DJe de 12/12/2023). 5. Agravo regimental improvido. (AgRg no AREsp n. 2.583.252/SP, relator Ministro Antonio Saldanha Palheiro, Sexta Turma, julgado em 22/10/2024, DJe de 28/10/2024.)
Encontrou um erro? Avise nossa equipe!