Argentina: os poderes do presidente no coração das trevas
20 de novembro de 2024, 8h00
Em 1852, Juan Bautista Alberdi, em sua obra “Bases y puntos de partida para la organización política de la República de Argentina”, propôs um “presidente forte” para a Argentina. A Constituição Federal acolheu essa ideia em 1853 e na reforma de 1994 (desconsideremos, claro, as ditaduras militares do século 20).
Há 30 anos, a última reforma constitucional aumentou enorme e desproporcionalmente os poderes do “presidente forte”, e criou novo animal político e constitucional: o monopresidente. Uma pessoa na qual converge uma soma de poderes públicos com imensas atribuições: administrativas, jurisdicionais, legislativas (inclusive iniciativa legal e constituinte), sem contar aqueles poderes não regulamentados que são exercidos discricionariamente. Assim, o monopresidente é um homem submerso e atado à mesmidade de sua única pessoa. Um sujeito que buscará a unidade na ação, e com máxima energia, contra tudo o que a ele se opuser.
Qual foi o erro capital da reforma constitucional de 1994?
A habilitação constitucional para que o presidente “legisle”, seja pela via dos “decretos por razões de necessidade e urgência” (DNUs), seja pela via da “legislação delegada” (LD). Até 1994, a melhor doutrina (por exemplo: Germán Bidart Campos e Segundo V. Linares Quintana) sustentava que essas duas vias não deveriam ter lugar em nosso Direito Constitucional. A razão? Porque isso deterioraria a separação de funções, ao procriar uma concentração incontrolável de poder no órgão presidencial. Ademais, porque assim se desnaturariam a racionalidade no processo de governo e o controle do poder, ao instituir-se uma patética prevalência do poder executivo.
Essa habilitação para legislar pela via dos decretos por razões de necessidade e urgência e pela via das leis delegadas substitui uma criação dialógica e colegiada do Direito no Congresso, pela imposição autocrática de uma pessoa que se convoca a si mesma, o presidente.
Em 1899, Joseph Conrad publicou “O Coração das Trevas” (Heart of Darkness). Narra uma travessia na qual se vislumbra o descenso da alma humana em direção ao horror. Sem mediação. Particularmente os decretos por razões de necessidade e urgência provocam semelhante descenso: horrorizam a separação dos poderes e sua forma republicana e, assim acessam o coração das trevas. Os poderes do Estado, especialmente o poder presidencial, enredam-se numa trama assustadora.
Leiamos o artigo 99, inciso 3º, segundo a redação estabelecida pela reforma de 1994, que a propósito é péssima. Ali se determina que “Sob pena de nulidade absoluta e insanável, não poderá em nenhuma hipótese, o Poder Executivo, expedir disposições de caráter legislativo. Somente quando circunstâncias excepcionais impossibilitem seguir os procedimentos ordinários previstos nesta Constituição para a promulgação das leis, e quando não se tratar de normas sobre matéria penal, tributária, eleitoral ou própria ao regime político-partidário, poderá baixar decretos por razões de necessidade e urgência, que serão decididos em acordo geral de ministros que os referendarão, juntamente com o chefe de gabinete de ministros.
O chefe de gabinete de ministros submeterá, pessoalmente e dentro de dez dias, a medida à consideração da Comissão Bicameral Permanente, cuja composição deverá respeitar a proporcionalidade das representações políticas de cada Câmara. Essa comissão submeterá seu relatório, no prazo de dez dias, ao plenário de cada Câmara, que o considerará de imediato para deliberação expressa. Lei especial aprovada por maioria absoluta da totalidade dos membros de cada Câmara regulará o procedimento e o escopo da intervenção do Congresso”.
A partir de sua entrada em vigor, o Poder Executivo optou por editar os DNUs segundo sua pura discricionariedade, em conduta francamente abusiva, oportunista e vedada pela Constituição. Desde a sanção do artigo 99, inciso 3º, em agosto de 1994 até os dias de hoje, registram-se mais de 900 DNUs, segundo informa o Observatório de Decretos (decretos.com.ar), dirigido por Leandro E. Ferreyra.
No mesmo período, foram promulgadas cerca de 3.000 leis (formais e materiais). Uma comparação horripilante, que evidencia a decapitação das competências do palco da democracia, a saber, o Congresso. A atividade legislativa do presidente, originalmente proibida, se revela mais importante – a julgar pelo conteúdo, projeção e consequências — do que o mister do Congresso.
Com a permissão contida no artigo 99, inciso 3º da Constituição, o país ingressou no coração das trevas; e adentrou mais profundamente com a promulgação daquela “lei especial” mencionada na parte final do dispositivo constitucional. Trata-se da Lei 26.122, de 2006. O controle político estabelecido por essa regra jurídica é tão ruim e defeituoso que, em 18 anos, ela só possibilitou a rejeição de um único DNU; falta um processo amplo, útil, suficiente e ágil.
As notáveis deficiências da Lei 26.122 devem ser corrigidas pelo Congresso. Atualmente, tramita grande número de projetos.
Sugiro uma reforma legislativa urgente e criteriosa, contemplando os seguintes aspectos.
Em relação à “rejeição” do DNU, a mudança legal deve determinar que a desaprovação de uma Câmara será suficiente; ou, em outras palavras, que será necessário que o DNU obtenha o respaldo de ambas as Câmaras do Congresso para respirar constitucionalmente. Hoje, a rejeição estabelecida pela Lei 26.122 é inconstitucional, pois exige rejeição tanto de Deputados quando de Senadores.
Em relação ao “prazo”. O tempo na Constituição é uma relação basilar, por isso, o DNU deve perder por completo sua eficácia jurídica no prazo de 90 dias corridos, contados de sua expedição, se o Congresso não providenciar, tempestivamente, sua convalidação bicameral.
A fixação de um prazo seria um mecanismo de contenção do monopresidente e repararia a inconstitucional ausência de prazo que macula a Lei 26.122. Postulo, assim, uma modificação que segue o mesmo modelo assumido pela Constituição do Brasil, de 1988, em especial com a Emenda Constitucional nº 32/2001. Igualmente, o DNU deveria caducar se o poder executivo não submeter o diploma ao Congresso em até dez dias em que fora emitido.
Em relação aos “efeitos”. Um DNU é substância tóxica para a construção e exercício do poder; consequentemente, sua rejeição, por decurso de prazo ou pela desaprovação de uma das Câmaras do Congresso, implicará na nulidade absoluta e insanável: um nada jurídico que remonta ao dia de sua infeliz criação. Nada que tenha existido, um verdadeiro inexistente mundano.
Em conclusão
O Congresso deve proceder à alteração da Lei 26.122 e tentar conter o monopresidente tibiamente. Os DNUs apenas estimulam o abuso do poder presidencial e comprometem, mortalmente, a distribuição das funções de governo, a responsabilidade e o controle do poder.
Na reforma da Lei 26.122, é necessário modificar elementos medulares sobre a “rejeição”, o “prazo” e os “efeitos” do DNU. Por último, no dia em que a Constituição for reformada, os DNUs (juntamente com a LD) deveriam ser erradicadas para sempre dos poderes do presidente, porquanto apenas geram mais hegemonia autocrática em detrimento da democracia republicana.
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[*] Transcrição da fala do professor Raúl Gustavo Ferreyra por oportunidade da Reunião Conjunta das Comissões de “Asuntos Constitucionales” e de “Peticiones, Poderes y Reglamento”, da Câmara dos Deputados do Congresso da Nação Argentina, havida em 30 de outubro de 2024 e destinada a debater o regime jurídico dos “decretos por razões de necessidade e urgência” (DNU).
Tradução do espanhol por: Gilmar Mendes (ministro do Supremo Tribunal Federal; doutor em Direito pela Universidade de Münster; doutor honoris causa pela Universidad de Buenos Aires; professor dos cursos de graduação e pós-graduação do IDP, onde dirige o Centro Hans Kelsen de Estudos sobre a Jurisdição Constitucional); Paulo Sávio Maia (coordenador-executivo do Centro Hans Kelsen de Estudos sobre a Jurisdição Constitucional; doutorando na Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo; mestre em Direito pela Universidade de Brasília; Advogado em Brasília). Os tradutores agradecem à Carolina Cyrillo (UFRJ/UBA) pela sempre atenta revisão.
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