Escritos de Mulher

Falsas confissões de crimes desafiam a Justiça e o senso comum

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20 de novembro de 2024, 8h00

A confissão é historicamente considerada no sistema penal como dotada de grande força persuasiva. Esta é uma convicção que o sistema de justiça tem o dever de relativizar, visto que a realidade das falsas confissões, amplamente documentada por estudos e casos concretos, tira o alicerce desta verdade simplista ou absoluta. É fundamental que os julgadores compreendam as circunstâncias em que uma confissão foi obtida, bem como as pressões e vulnerabilidades que podem levar uma pessoa inocente a admitir um crime que não cometeu. Não é razoável fechar os olhos aos riscos envolvidos no uso da confissão como prova determinante em processos criminais.

Spacca

Em voto recente, mas já memorável, o ministro Ribeiro Dantas, do Superior Tribunal de Justiça (STJ), deixa clara a necessidade de um exame mais criterioso das admissões de culpa. Ao submeter um recurso especial à 3ª Sessão para definição de teses repetitivas, o relator destaca o fenômeno das falsas confissões respaldado por dados sólidos, como os do Innocence Project de Nova York, que revelam que 29% dos 375 réus inocentados por exame de DNA nos Estados Unidos confessaram crimes que não cometeram.

Esses números indicam que, apesar da confiança cultural no poder da confissão, muitos fatores podem comprometer a veracidade dessas declarações. Coerção policial, vulnerabilidade mental, idade e condições físicas e socioeconômicas adversas, são algumas das razões que levam pessoas inocentes a confessarem falsamente.

A pressão exercida pela polícia em interrogatórios longos e exaustivos pode levar o suspeito a confessar simplesmente para encerrar seu tormento. Isso para não tocar em um tema muito mais trágico, que é a prática da tortura nos porões das forças de segurança, muitas vezes para dar respostas rápidas ao clamor popular pela elucidação de crimes. Nos Estados Unidos, a duração média de interrogatórios que resultam em falsas confissões é de 16 horas. Situações como essa minam a confiabilidade da confissão, uma vez que o interrogado está fragilizado física e psicologicamente.

A premiada minissérie “Olhos que Condenam” escancarou um dos maiores erros judiciários da história, conhecido como os “Cinco do Central Park”. Conta a história real de cinco adolescentes negros e latinos acusados injustamente de estuprar uma mulher em Nova York, em 1989. A série acompanha a coerção policial que levou às falsas confissões dos jovens, suas condenações e o impacto devastador em suas vidas e famílias. Após anos de prisão, os ex-adolescentes são libertados quando o verdadeiro culpado confessa o crime, e exames de DNA confirmam sua inocência. A série destaca as falhas do sistema de justiça e o impacto do racismo como fator determinante para a ocorrência do dramático erro judiciário.

Promessas

A confissão, não raro, é manipulada por promessas de alívio imediato ou punições mais brandas. A intimidação, aliada à falta de uma defesa diligente e eficaz, abala a capacidade de raciocínio. Por essas e outras, o Código de Processo Penal brasileiro é claro ao estabelecer que a confissão, por si só, não é suficiente para a condenação.

“O valor da confissão se aferirá pelos critérios adotados para os outros elementos de prova, e para a sua apreciação o juiz deverá confrontá-la com as demais provas do processo, verificando se entre esta e elas existe compatibilidade ou concordância”, diz o artigo 197 do CPP, mas em muitos casos essa regra é negligenciada, e o aparato punitivo se apoia exclusivamente na confissão para proferir sentenças condenatórias.

Um dos problemas críticos que cercam as falsas confissões é a percepção pública a respeito desse fenômeno complexo. Como destaca o irretocável voto, pesquisas mostram que 68% dos jurados acreditam que uma pessoa inocente dificilmente confessaria um crime que não cometeu, e até 81% dos acusados são considerados culpados mesmo quando a falsidade da confissão é comprovada. Essa visão contribui para a perpetuação de erros a partir da supervalorização da confissão pelos tribunais, ainda que tenham ficado restritas à fase policial.

O caso mais emblemático de condenação de inocentes por falsa confissão no Brasil talvez seja o dos irmãos Naves, de 1937, citado pelo ministro Ribeiro Dantas no referido voto. Os irmãos foram brutalmente torturados, assim como seus familiares, para que confessassem um crime que nunca cometeram, o de terem matado um primo para roubar seu dinheiro. A verdade só veio à tona 14 anos depois, quando o primo que havia fugido por estar endividado, reapareceu.

“Passadas oito décadas desde o julgamento dos irmãos Naves, e mesmo com as sucessivas reformas que transformaram o CPP em uma colcha de retalhos, não foram criados mecanismos objetivos de controle judicial da postura e das investigações da polícia, satisfazendo-se o Judiciário, hodiernamente, com os mesmos tipos de provas que subsidiariam uma condenação no Estado Novo, no Império ou na Inquisição”, pondera Ribeiro Dantas, referindo-se também ao “histórico de violência que acompanha nossas forças policiais desde seu nascimento”.

O acórdão prolatado no Agravo em Recurso Especial 2.123.334, de Minas Gerais, é tão rico em seus ensinamentos que merece cuidadosa leitura. Complementado pelo voto do ministro Rogério Schietti, o precedente acabou por aprovar teses a serem respeitadas daqui para frente em todos os graus de jurisdição:

i) a confissão extrajudicial somente será admissível no processo judicial se colhida formalmente e de maneira documentada, em estabelecimento público e oficial;
ii) tais garantias não podem ser renunciadas pelo interrogado e, se alguma delas não for cumprida, a prova será inadmissível;
iii) a inadmissibilidade permanece mesmo que a acusação tente introduzir a confissão extrajudicial no processo por outros meios de prova (como, por exemplo, o testemunho do policial que a colheu);
iv) ainda que admissível como meio de obtenção de prova, indicando caminhos para a investigação, a confissão extrajudicial não serve para embasar uma sentença condenatória, e
iv) a confissão judicial, ainda que lícita, somente poderá ser considerada para a condenação se encontrar sustento nas demais provas produzidas.

Não se trata de descartar por completo o peso de uma confissão como elemento importante para a definição da autoria delitiva, mas de recomendar cautela aos que dispensam a necessidade de outras provas por considerar a admissão de culpa, por si só, suficiente para condenar alguém à perda da liberdade.

Ela deve ser analisada sob o prisma das condições em que foi obtida, das vulnerabilidades do acusado e da existência de outras provas que a corroborem. Fugir dessa lógica, seja por pressa de agentes do estado ou pela pressão da opinião pública, é costear perigosamente os limites da Justiça, ampliando a chance de levar um inocente a cumprir pena por um crime que não cometeu.

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