Afinal, o que significa tokenizar um ativo?
20 de novembro de 2024, 11h14
Enquanto as cotações do Bitcoin registram novas marcas históricas, para a perplexidade de céticos e até mesmo de alguns entusiastas, os holofotes se voltam às telas de negociação e à busca por pontos de entrada por quem ficou de fora.
Diante da euforia, o interesse do público em geral se distancia de narrativas que têm legitimado a criptoeconomia, quais sejam, a evolução das infraestruturas de mercado financeiro com desintermediação e maior eficiência, a busca por interoperabilidade e compartilhamento seguro de dados entre sistemas dos mais diversos setores e, especialmente, a construção de uma internet na qual o valor gerado pelos usuários não seja totalmente capturado pelas grandes plataformas — o conceito de web3.
Contudo, a convergência entre o mercado financeiro tradicional e a criptoeconomia — viabilizando sua fusão com a “economia” pela internalização das novas tecnologias para uma genuína disrupção – depende da concretização destas narrativas em realidade. E, neste processo, o que chamamos de “tokenização” exerce um papel fundamental.
Mas, afinal, o que entendemos como “tokenização” e em que medida se trata de uma inovação realmente apta a transformar o mercado financeiro, dissipando a ideia de que estamos em uma mera bolha especulativa?
Uma solução em busca de um problema?
Tomemos como ponto de partida o modo pelo qual os sistemas de informação mantêm os dados sobre os ativos e sua titularidade. Tais sistemas são necessários para dar segurança jurídica aos negócios realizados em mercado, seja a captação de recursos pela emissão de títulos, a permuta de riscos pelas operações em mercados secundários, as cessões de crédito, a prestação de garantias e a execução de dívidas.
Os desafios tecnológicos e jurídicos em questão dizem respeito à prova da existência de um bem, de sua titularidade e de sua exigibilidade, isto é, se seu titular pode aliená-lo ou onerá-lo ou se está sujeito a algum tipo de ônus ou gravame. Há ineficiências no dia a dia do desconto de duplicatas, da negociação de precatórios e outros títulos de crédito, na compra e venda de imóveis, na constituição de lastros para certificados de recebíveis e no quotidiano de fundos de investimento em direitos creditórios, para citar alguns exemplos.
Some-se a isso o fato de que a ausência de títulos e contratos padronizados trava a circulação de ativos alternativos, desde participações em sociedades de capital fechado, passando por royalties de artistas, direitos econômicos de atletas, e créditos de carbono até obras de arte, joias ou outros colecionáveis que têm sido utilizados como investimentos, tais como vinhos e automóveis antigos.
Babel financeira local e global
As classes de ativos têm sistemas distintos e com níveis diferentes de garantia da existência de um mercado seguro, demandando, inclusive, leis específicas. Registros de imóveis, registradoras e centrais depositárias são exemplos de repositórios de dados e, ao mesmo tempo, entidades responsáveis por assegurar a validade das transações.
Ainda, dentre as engrenagens do mercado financeiro, encontramos prestadores de serviços diversos, tais como escrituradores, custodiantes, câmaras de compensação e instituições de pagamento. Igualmente, agentes fiduciários e administradores fiduciários prestam serviços essenciais para garantir a segurança de diversas operações.
Tamanha diversidade e complexidade de atores impõe custos relevantes — especialmente as taxas cobradas pelos intermediários — e a necessidade de conectar os diversos silos de dados para viabilizar a troca da titularidade dos ativos mediante sua entrega contra o respectivo pagamento.
Ao fim e ao cabo, o problema fundamental a ser resolvido é a liquidação de uma operação (entrega contra pagamento) em um mundo com dados fragmentados em sistemas que não conversam entre si. O ativo existe? Seu titular é quem realmente afirma sê-lo? Há algum obstáculo para a realização da operação? A resposta correta a essas perguntas aparentemente singelas é condição fundamental para o funcionamento do mercado financeiro, sua estabilidade e credibilidade.
Infelizmente, apesar de vivemos em um mercado global, tais perguntas são ainda mais incômodas quando pensamos em operações transfronteiriças. Se os sistemas dentro de um mesmo país já não conversam muito bem, as dificuldades em termos de comunicação global, agravadas pela pluralidade de sistemas jurídicos, parecem ser incompreensíveis diante dos avanços tecnológicos recentes em tantos outros setores.
O tempo e o custo necessários para transferências internacionais, a dificuldade de obtenção de informações sobre ativos em outros países e de sua utilização como garantia para operações ou mera compra e venda são exemplos de ineficiências reais que não têm sido devidamente endereçadas.
Uma representação digital muito especial
Um “token” nada mais é do que um envelope digital dentro do qual pode ser colocado qualquer ativo mencionado anteriormente. Tokenizar um ativo consiste em inseri-lo em um veículo que o levará para uma infraestrutura paralela à realidade formada por sistemas fragmentados e de interoperabilidade limitada, seja em nível local ou global. Juridicamente, um token pode ser compreendido como um contrato, no qual seu emissor garante ao titular os direitos emergentes do ativo tokenizado.
Se há garantia de que um ativo qualquer será tokenizado uma única vez, sua representação digital pode, então, circular em um ambiente virtual, potencialmente supranacional, no qual a existência do ativo, sua titularidade e a possibilidade de sua utilização podem ser verificados rapidamente, facilitando a liquidação de operações.
Com a tokenização, essa representação digital é criada em um ambiente no qual alguns ou todos os participantes podem dispor da cópia integral do registro de titularidade e histórico de transações, com transparência e rastreabilidade para todos os interessados. E isso só é possível pela utilização da criptografia para garantir a titularidade e a integridade dos dados e da existência de um registro distribuído que não pode ser facilmente adulterado, provê redundância e segurança para a realização de transações e, principalmente, viabiliza a interoperabilidade entre sistemas.
Esse ambiente descentralizado no qual os ativos são representados (tokenizados) só se tornou possível por conta das tecnologias que permitiram a criação do Bitcoin e do Ethereum. Esses sistemas permitiram responder às perguntas anteriormente mencionadas — O ativo existe? Seu titular é quem realmente afirma sê-lo? Há algum obstáculo para a realização da operação? — para um ativo digital incialmente sem valor. Com o tempo, a noção de tokenização expandiu essa possibilidade para qualquer ativo.
Tokenizar é expandir a noção de Pix para quaisquer ativos
Se uma empresa deseja ceder seus recebíveis, emitir títulos para se financiar ou dar bens em garantia, a complexidade da operação passa a ser concentrada no ato de criar uma representação digital fidedigna — a operação de tokenização em si. Depois disso, diligências adicionais tornam-se desnecessárias ou são bastante simplificadas, possibilitando o desenvolvimento de um mercado secundário.
Diante desse quadro, espera-se a redução de custos associados à formalização de operações com direitos creditórios e outros ativos alternativos e até mesmo com a emissão de títulos e valores mobiliários hoje realizadas em infraestruturas robustas, porém onerosas.
Cartórios e centrais depositárias não precisarão ser abolidos, mas o seu papel de garante do direito de propriedade poderá ser ressignificado e a maior eficiência poderá se traduzir em economia para os agentes econômicos — tal como a noção de web3 promete socializar parte do valor capturado pelas plataformas de big techs.
Em teoria, a noção de carteira digital hoje limitada a saldos em moeda fiduciária pode ser expandida para conter frações de títulos públicos, títulos de dívida privada, recebíveis de contratos privados, cotas de fundos, ações, imóveis e outras classes de ativos, independente do país em que foram emitidos, desde que haja confiança no processo de tokenização, isto é, da criação do vínculo entre o ativo no “mundo real” e sua representação virtual — por isso tem sido utilizada a expressão “tokenização de real wold assets (RWA)”. Assim, transações com ativos alternativos podem se tornar tão simples quanto a realização de um Pix.
A promessa da tokenização, portanto, é a simplificação de processos e redução de custos na originação de ativos, de um lado, e a maior facilidade para sua circulação pelo público em geral, de outro. O interesse por ativos alternativos e a liquidez de seu mercado secundário são fatores que não dependem da tecnologia, mas esta pode ser uma solução para o desenvolvimento de um mercado genuinamente global e com acesso democratizado a um catálogo cada vez mais diversificado de investimentos.
Encontrou um erro? Avise nossa equipe!