Lei nº 14.986/24 e os conteúdos curriculares: perspectivas de gênero
19 de novembro de 2024, 11h23
A Lei nº 14.986, de 25 de setembro de 2024, alteou a Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996, para incluir a obrigatoriedade de abordagens sobre as perspectivas femininas nos conteúdos curriculares do ensino fundamental e médio. Dispôs-se que nos estabelecimentos de ensino fundamental e médio, públicos e privados, é obrigatória a inclusão de abordagens fundamentadas nas experiências e nas perspectivas femininas nos conteúdos curriculares.
A lei dispõe também que as abordagens às quais se refere devem incluir diversos aspectos da história, da ciência, das artes e da cultura do Brasil e do mundo, a partir das experiências e das perspectivas femininas, de forma a resgatar as contribuições, as vivências e as conquistas femininas nas áreas científica, social, artística, cultural, econômica e política.
De igual modo, instituiu-se uma Semana da Valorizam de Mulheres que Fizerem a História, campanha a ser realizada na segunda semana do mês de março nas escolas de educação básica do País. Lembramo-nos, de imediato, dos textos de Mary Del Priore, notável historiadora. Recomendamos, entre outros, a leitura de “Histórias e Conversas de Mulher”, publicado pela Planeta, em 2013.
A história é uma construção do passado com os olhos do presente. Cada tempo tem sua história. Atenienses e espartanos de hoje talvez não sejam necessariamente atenienses e espartamos do tempo da guerra fria. E a alusão é mais realista do que se possa imaginar. De igual modo, o tema do gênero informa também os vários modos como a tradição constrói o passado.
Há um inegável patriarcalismo na concepção de nossas narrativas históricas. No entanto, e esse o objetivo do presente pequeno ensaio em forma de notas, há referências feministas que são necessárias. Não se trata tão somente de matéria de lei. A cultura é uma construção histórica e não uma determinação normativa.
Ao que consta, a Carlota Joaquina de Bourbon (1775-1830), com inteligência e apreço ao poder, entrou no jogo do poder dominado pelos homens; e pensamos que se deu muito bem. Maria Leopoldina de Áustria (1797-1826) esteve na linha de frente da vida política brasileira. Sua participação na política foi retratada pela pintora Georgina de Albuquerque (1885-1962) na imagem da reunião do Conselho de Estado, em 2 de setembro de 1822, que precedeu a declaração da Independência do Brasil.
Domitila de Castro Canto e Melo (1797-1867), a marquesa de Santos, foi expressiva articuladora política. A Princesa Isabel (1846-1921), neta de Leopoldina, experimentou a chefia de Estado, assumindo a regência por três vezes. Assinou a lei da abolição
No Brasil contemporâneo, Dilma Rousseff, nascida em 1947, foi eleita a primeira presidente do período republicano, posteriormente reeleita e derrubada através do processo de impeachment. O tema das pedaladas. Presidiu o Brasil de 2011 a 2016. Em sua juventude, vivenciou na pele o peso da ditadura militar brasileira.
Figuras femininas proeminentes marcaram a história do Brasil, como a indígena tupinambá Catharina Álvares Paraguaçu (1530-1583), esposa do português Diogo Álvares, o Caramuru (1475-1557); Maria Barbara, assassinada pela mão homicida que pretendia manchar sua castidade, preferiu a morte à desonra (Souza e Silva, 1862, p. 64). A castidade valia mais do que a própria vida. Ápice do controle da sexualidade feminina.
Mariana Crioula (1744-?) foi uma das líderes da insurreição quilombola de 1838. Era mucama de Francisca Elisa Xavier, esposa de Manuel Francisco, dono de fazendas na Vila de Paty dos Alferes, atualmente perto de Vassouras, no Estado do Rio de Janeiro. Resistiu heroicamente à Guarda Nacional cuja missão era capturar os fugitivos do engenho. Foi presa, julgada e depois solta.
Damiana da Cunha (1780-1831), neta do cacique Angrai-oxá cujos territórios ocupados estava o sul da capitania de Goiás, casou-se com um brasileiro e teve lugar de destaque entre pessoas importantes da província.
As senhoras pernambucanas de Tejucupapo, no século 17, também participaram da história do Brasil, entre elas a indígena Dona Clara Camarão e a nobre senhora pernambucana Dona Maria de Souza, que, ao lado dos homens, manejaram armas e repeliram os holandeses que se renderam, em 1654, na cidade do Recife.
Nessa semana assistimos todos, emocionados, “Eu estou aqui”, com o belíssimo protagonismo de Fernanda Torres, vivendo o dramático papel de Eunice Paiva, esposa de Rubens Paiva (1921-1971) covardemente desaparecido dos porões da ditadura, conforme oficialmente reconhecido em 40 anos depois de sua morte. Eunice Paiva comoveu, mesmerizou o cinema, provocou o choro, marcou.
A História do Brasil está recheada de importantes participações femininas, como as exemplificadas acima, entre tantas outras heroínas do nosso país. Referida lei faz jus ao protagonismo feminino. Ao integrarem as bases da educação nacional, passarão a ser visibilizadas e reconhecidas. Recontar a História do Brasil trazendo luz à experiência feminina em sua construção é um importante avanço para nossa sociedade.
No entanto, não nos esqueçamos do poema de Bertold Brecht, que perguntava quem construiu a Tebas das sete portas. Só constam o nome dos reis. Enfatizar o protagonismo feminino é também realçar a luta constante e interminável de heroínas anônimas.
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