Implementação das regras do Pilar 2: tendência necessária ou medida precipitada?
19 de novembro de 2024, 17h25
Na década de 1970, o economista norte-americano Milton Friedman consagrou a máxima “one of the great mistakes is to judge policies and programs by their intentions rather than their results” [1] nas críticas que tecia à postura intervencionista contraproducente adotada pelo governo Richard Nixon (1960-1974).
Todavia, passados muitos anos, a Teoria de Friedman parece descrever perfeitamente a atual conjuntura internacional. Isso porque, embora legítimos, os esforços incessantes da OCDE para estabelecer uma tributação mínima global têm refletido esse mesmo impasse: ao transformarem a alíquota mínima em uma meta rígida, acabam por gerar distorções e incentivar práticas que desnaturam seu objetivo original de justiça fiscal. A questão se torna ainda mais preocupante quando países adotam esses padrões internacionais sem considerar a complexidade da sua própria dinâmica tributária — um risco iminente no Brasil atual que o presente texto pretende examinar.
Nessa toada, a recente edição da Medida Provisória nº 1.262/24 [2] e da IN RFB nº 2.228/24 [3] — responsáveis pelo estabelecimento de diretrizes para diminuição do déficit fiscal vigente — merece especial atenção. Afinal, para alcançar o objetivo traçado, a principal ferramenta da qual os diplomas normativos lançam mão é a internalização do chamado Pilar 2 da OCDE [4] pelo sistema tributário brasileiro.
Dando um passo atrás, o Pilar 2 se refere a uma iniciativa que integra o projeto Beps 2.0 de reforma global da tributação corporativa, promovido pela OCDE e pelo G20 com a finalidade de fazer frente aos desafios fiscais associados à globalização e à solidificação da economia digital. Nessa perspectiva, a medida prevê uma tributação mínima global (GloBE), estabelecendo uma alíquota efetiva (ETR) de 15% à qual estariam sujeitas as grandes corporações multinacionais — com vistas a garantir um patamar tributário mínimo para todas as empresas envolvidas em operações internacionais, independentemente da jurisdição em que elas estejam estabelecidas. Isto é, claro, com a finalidade última de evitar a deflagração de uma guerra fiscal internacional marcada por intermináveis corridas de redução massiva de alíquotas e de concessão ampla de incentivos para atrair investimentos.
Em resumo, o Pilar 2 visa a assegurar que multinacionais com receitas globais acima de € 750 milhões paguem uma alíquota mínima de imposto sobre a renda gerada em cada jurisdição onde operam. Para garantir essa tributação, o framework institui um imposto complementar (Top-Up Tax) sobre lucros em jurisdições com uma alíquota efetiva (ETR) abaixo de 15%.
Diretrizes do Pilar 2
Entre as principais diretrizes do Pilar 2 estão a regra de inclusão de renda (Income Inclusion Rule-IIR) e a regra de pagamento de tributação reduzida (Undertaxed Profits Rules, UTPR). A IIR exige que a empresa controladora pague um imposto complementar para alcançar o nível de 15% quando subsidiárias estrangeiras são tributadas abaixo desse percentual.
A UTPR, por outro lado, se aplica quando a jurisdição da controladora não aplica a IIR ou não adere totalmente ao padrão GloBE. Nesses casos, a UTPR permite que países onde o grupo multinacional opera recusem certas deduções ou façam ajustes no imposto devido, garantindo que a alíquota mínima global de 15% seja atingida. Em essência, a UTPR funciona como uma regra de respaldo para evitar que a tributação mínima global seja contornada na hipótese de a IIR não seja aplicada pela jurisdição da controladora.
Como adiantado, esses parâmetros demonstram o compromisso dos países em adotar medidas concretas para proteger suas bases tributárias e minimizar a erosão de receitas fiscais (Beps) decorrente da mobilidade das multinacionais. Embora o cronograma de implementação varie entre jurisdições, muitas nações já estão avançadas na incorporação dessas regras em suas legislações. Desse modo, o movimento global busca promover uma estrutura tributária capaz de reduzir as disparidades de alíquotas que, historicamente, incentivaram a transferência de lucros para jurisdições com menor tributação.
Paralelamente no contexto brasileiro, o que as recém-editadas normas nacionais impõem é a instauração de um Qualified Domestic Minimum Top-up Tax (QDMTT), de modo que o país onde os lucros são gerados é dotado da prioridade para aplicar a tributação mínima sobre a renda, e, neste cenário, caso o Brasil não o faça, tal prerrogativa se estende a jurisdições correlatas — que passarão a ter competência para tributar os lucros auferidos em solo brasileiro.
Em termos práticos, a MP º 1.262/24 se encarrega de garantir o QDMTT através de um adicional da Contribuição Social Sobre o Lucro Líquido (CSLL). Dito de outra maneira, na hipótese de haver uma empresa sujeita ao seu escopo de aplicação tributada abaixo da ETR de 15%, a diferença será exigida na forma de um percentual adicional de CSLL, suficiente para que a tributação total alcance o patamar mínimo almejado, isto é, de 15%. Além disso, as novas normas estão alinhadas às diretrizes da OCDE, visto que o adicional de CSLL pago no Brasil poderá ser utilizado como compensação direta em relação ao imposto mínimo eventualmente cobrado por outras jurisdições (conhecido como Top-up Tax).
Tal estipulação, ao menos em um primeiro momento, pode soar estranha dada a alíquota nominal brasileira de 34% na tributação da renda corporativa. No entanto, diante de incentivos fiscais e de planejamentos tributários das mais variadas espécies, nos deparamos com uma realidade em que muitas vezes a ETR de 15% não é atingida.
Implementação do Pilar 2 no Brasil
Feitos estes esclarecimentos, resta indene de dúvidas o impacto dos novos diplomas na carga tributária suportada por multinacionais com atuação no Brasil, e, uma vez estabelecida esta premissa, podemos finalmente avançar ao que este texto de fato se propõe: a análise da implementação do Pilar 2 do Brasil.
Antes de tudo, é fundamental delinear o porquê da internalização das noções de tributação mínima global no Brasil ser alvo de tantas críticas, em que pesem os seus mais legítimos objetivos. Embora essa movimentação represente um inquestionável avanço diplomático e possa ser vista com bons olhos pela OCDE, é essencial reconhecer que a tributação impõe um custo significativo nas decisões de gestão corporativa, custo esse que pode gerar severa fuga de capital de um país, caso manipulado de maneira equivocada. Nessa perspectiva, é de suma relevância examinar como a recepção dessas diretrizes foi introduzida no sistema nacional, bem como os desafios e efeitos que ela poderá desencadear econômica e politicamente.
Nesse viés, um dos pontos que merece atenção é o instrumento escolhido para a inserção do Pilar 2 no Brasil: a medida provisória. Nada obstante sua eficácia legal, a medida provisória é um ato de natureza transitória e precária, reservado para situações de urgência e relevância — o que, neste caso, é questionável. Internacionalmente, embora haja uma tendência de adesão ao Pilar 2, muitos países ainda não possuem planos robustos para implementar essas regras ou não expressaram uma intenção clara de fazê-lo.
A escolha da medida provisória, portanto, levanta dúvidas sobre a real urgência dessa internalização, especialmente em um momento em que outros países estão abordando a questão de forma mais cautelosa. Vale ressaltar, ainda, que não se ignora a implicação óbvia da demora na adoção da tributação mínima, qual seja a perda potencial de arrecadação para outras jurisdições. Contudo, questiona-se se esse fator deve prevalecer sobre toda a dinâmica tributária preexistente.
Em adição a isso, a opção do Executivo brasileiro também pode ser interpretada como uma tentativa de contornar o processo legislativo e os prazos constitucionais para a eficácia de novas leis tributárias, tal qual a regra da anterioridade. Em um cenário em que países mantêm um cuidado meticuloso na adoção de diretrizes internacionais que possam impactar a autonomia fiscal, a utilização de uma medida provisória para implementar o Pilar 2 no Brasil parece infringir o processo legislativo por dois aspectos: primeiro, ao evitar o debate e a deliberação completa no Congresso; segundo, ao desconsiderar as normas constitucionais que asseguram previsibilidade e estabilidade na criação de leis tributárias.
Tributação mínima global no Brasil
À vista disso, já não é demais concluir que a utilização da medida provisória como meio para a inserção das diretrizes da tributação mínima global no Brasil foi, no mìnimo, precipitada — ao menos em termos formais. Como se isso não bastasse, os desafios não são menores quando voltamos o olhar para as implicações materiais.
Isso porque, apesar das recentes reformas no design das normas tributárias, o sistema brasileiro de tributação internacional ainda não acompanha integralmente os princípios da OCDE. Em virtude desse descompasso, importar um padrão tributário estranho e implementá-lo junto a um conjunto de normas que não observa seu racional culmina em um hibridismo tributário conjuntural que abre margem para um aumento expressivo de conflitos interpretativos — e consequentemente da litigância — e para uma elevação substancial dos custos de conformidade para as empresas que operam no país.
Ademais, o “atropelo” na implementação dos diplomas, deixa de lado um fator crucial em qualquer transição dessa espécie: novamente, a necessidade de adaptação da legislação doméstica e de reformas basilares na lógica da tributação nacional — o que notadamente pode vir a dificultar uma implementação eficiente do Pilar 2 na nação verde-amarela.
Para ilustrar esse cenário, basta retomar que as regras da OCDE, na prática, nem sempre se ajustam às bases de cálculo vigentes para o Imposto de Renda da Pessoa Jurídica (IRPJ) e a Contribuição Social sobre o Lucro Líquido (CSLL), de modo que, mesmo com uma carga nominal de 34%, a alíquota efetiva pode ser inferior aos 15% exigidos. À exemplo disso, vejamos os benefícios fiscais tangentes ao IRPJ e à CSLL, bem como as deduções admitidas na forma de distribuição de juros sobre o capital próprio, amortização do ágio e incentivos e subvenções ligados ao ICMS — todos elementos que depreciam a alíquota efetiva final, podendo conduzi-la a um patamar inferior ao de 15%.
Nesse contexto, a proposta da Receita Federal de transformar esses benefícios em créditos financeiros, conforme as diretrizes dos créditos tributários reembolsáveis qualificados (QRTCs) da OCDE, busca adaptar-se às normas globais. No entanto, essa abordagem é criticável, pois exige que os QRTCs sejam pagos em dinheiro ou equivalentes dentro de um prazo específico de quatro anos, sem permitir o uso direto para redução de tributos. Tal medida não apenas aumenta a complexidade e os custos de conformidade, mas também pode elevar a carga tributária para empresas que não se enquadram no Pilar 2, criando uma discrepância na aplicação dos incentivos e, em última análise, uma flagrante violação ao princípio constitucional da isonomia.
Adequação em outros países
Paralelamente, em outros países que já ajustaram suas políticas para se adequar às Regras GloBE de maneira mais gradual e madura, como Singapura [5], a solução foi a introdução de um Refundable Investment Credit (RIC) para substituir incentivos anteriores. Em contraste, a abordagem brasileira parece apressada, haja vista sacrificar a previsibilidade e se mostrar displicente frente aos potenciais desafios para a competitividade das empresas e para a economia nacional.
Por último, as novas regras do Pilar 2 representam um desafio significativo para o planejamento fiscal das empresas, especialmente no uso de estratégias como o ágio em fusões, que permite a redução das bases de cálculo do IRPJ e da CSLL. Esse mecanismo, embora vantajoso sob a ótica fiscal, não afeta o lucro contábil (GloBE Income) e pode levar a um aumento do imposto devido pela diferença no “top-up tax”. Além disso, empresas envolvidas em contenciosos tributários devem considerar o impacto do Pilar 2, pois decisões judiciais favoráveis podem alterar a alíquota efetiva e comprometer os benefícios fiscais obtidos.
Portanto, o Brasil enfrenta o desafio de alinhar-se às normas internacionais de tributação mínima sem comprometer sua competitividade fiscal. A introdução do Adicional da CSLL e dos QRTCs representa um esforço para combater a elisão fiscal e fortalecer o país no cenário global, mas exige uma análise cuidadosa sobre como essas medidas impactam a atração de investimentos. A MP nº 1.262/2024 e a IN RFB nº 2.228/24, ao estabelecerem uma alíquota mínima de 15%, tornam-se passos importantes na adaptação do sistema tributário às diretrizes da OCDE e do G20, embora possam não ter sido a forma mais indicada de fazê-la.
Nessa linha, como alertado por Milton Friedman, devemos ter a cautela de avaliar os resultados da política, e não apenas suas intenções. Assim, é essencial que o Brasil monitore a implementação dessas normas para evitar brechas de arbitragem e assegurar que os objetivos de justiça tributária não comprometam a eficiência de sua dinâmica fiscal. Para que o país realmente se beneficie da adesão às regras internacionais sem prejudicar suas empresas, é fundamental que as autoridades mantenham um equilíbrio entre alinhamento global e competitividade, através da promoção de uma política tributária que favoreça o desenvolvimento socioeconômico nacional.
[1] Friedman, M. (1975). There’s No Such Thing as a Free Lunch. Open Court
[2] Brasil. Medida Provisória nº 1.262, de 24 de outubro de 2024.
[3] Receita Federal do Brasil. Instrução Normativa RFB nº 2.228, de 24 de outubro de 2024.
[4] Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE). Base Erosion and Profit Shifting (BEPS) Action 15 – Multilateral Instrument.
[5] Singapura. Ministério das Finanças. Implementation of the Refundable Investment Credit (RIC) Policy. Singapura, 2022.
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