Opinião

Alternativas constitucionais ao problema da autonomia do DF em matéria de segurança pública

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  • é doutor em Direito pela Uerj com pós-doutorados em Direito pela UFRJ e pela UFPE professor da UFRJ e da Escola do Parlamento pesquisador e autor de livros e artigos nas áreas de federalismo e Teoria do Direito.

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18 de novembro de 2024, 18h26

Em janeiro do ano passado, publiquei nesta ConJur um texto sobre o porquê a autonomia federativa do Distrito Federal foi um erro dos constituintes, que emergiu com a tentativa (ainda que atabalhoada) de golpe de Estado no já “efemerídico” 8 de Janeiro.

Bruno Peres/Agência Brasil

Na ocasião apresentei algumas razões pelas quais compreendo que a opção dos constituintes em tratar o Distrito Federal como se um estado fosse em muitos momentos do texto constitucional foi equivocada. Ainda que o Distrito Federal seja a sede da União [1] e esta seja sua razão de existir dentro de uma federação (como normalmente federações tratam seu equivalente funcional), no Estado federal brasileiro (re)constituído em 1988, muito além de localizar fisicamente o exercício concentrado da cúpula dos entes federais, o Distrito Federal é um ente federativo parcialmente amalgamado de estado e município, ora fictamente tratado pela Constituição como um, ora como outro.

Ainda assim, ao se comparar suas características com demais entes subnacionais, aproxima-se mais de um município do que de um Estado, já que é menos autônomo que um (visto por exemplo que não contém todas as competências estaduais e em alguns casos a União pode legislar sobre instituições, além de ter seu Tribunal de Justiça pertencente à União).

No último dia 13 de novembro, um fanático bolsonarista oriundo de Santa Catarina, Francisco Wanderley Luiz (vulgo Tiu França), cometeu um atentado à sede do Supremo Tribunal Federal que resultou em sua morte após arremesso de artefatos explosivos a partir da Praça dos Três Poderes.

Não foi um ato isolado

Ainda que o finado terrorista possa ter agido sozinho para a execução do ato, ele faz parte de uma massa de cidadãos que sofrem de clara dissonância cognitiva que, segundo muitos portais de notícias, afetou seu comportamento nos últimos anos.

Segundo ainda noticiado pela imprensa, de acordo com o que foi revelado por sua ex-companheira (ainda a ser devidamente apurado nas investigações concernentes ao caso), o objetivo de Tiu França era atentar contra a vida do ministro Alexandre de Moraes, um destacado nêmesis do movimento golpista promovido por apoiadores do ex-presidente da República Jair Bolsonaro (que a depender do resultado das investigações, poderá também estar envolvido).

O que soa estarrecedor, além da situação em si, é como um cidadão portando explosivos (segundo relatos também amarrado ao corpo), provocou pelo menos duas explosões em frente à sede do STF, no coração do poder federal brasileiro. Evidentemente, em um aspecto maior, isso diz respeito ao problema da segurança pública — setor no qual o projeto democrático de 1988 ainda não conseguiu mostrar resultados notavelmente consideráveis. Mas em menor âmbito, o atentado remete ao mesmíssimo problema do 8 de Janeiro: a confusão constitucional a respeito da segurança pública no Distrito Federal. Quero neste espaço apresentar de modo sintético esta confusão e fazer algumas proposições a respeito dela.

Sobre a segurança pública em si, conforme ensina Claudio Pereira de Souza Neto [2], desde o final da Ditadura Militar, há duas concepções díspares no Brasil: a) Como combate. Esta visão a respeito da segurança pública entende que policiais são agentes belicosos que devem enfrentar por meio da força os inimigos internos, entendidos como aqueles criminosos que atentam ou possam atentar contra a ordem pública. O foco seria a repressão; b) Como serviço público. Nesta perspectiva, o objetivo não é enfrentar criminosos, mas sim proteger cidadãos. Portanto, a finalidade das atividades das policiais seria gerar coesão social, com foco na prevenção.

Proponho, nesse sentido, a seguinte reflexão: de quem é a competência (ou, em outro sentido, o ente responsável) pela segurança pública [3] em caráter ostensivo no espaço urbano, conforme o sistema de repartições de 1988? A resposta mais evidente à primeira vista é a de os Estados (assim como o Distrito Federal) são os entes competentes, por dois motivos:

a) A previsão do artigo 42 da Constituição (reconfiguração após a Emenda Constitucional 18/1998), segundo o qual as Polícias Militares são militares dos Estados (e também do Distrito Federal). O mesmo artigo em seu § 1º estabelece a competência para estes entes legislarem especificamente sobre as matérias de ingresso nas Polícias Militares, bem como outras disposições características como estabilidade, deveres, direitos, remuneração etc., conforme o artigo 142, § 3º, X. Além disso, a norma estabelece que se aplicam às Polícias Militares estaduais as disposições do artigo 14, § 8º; do artigo 40, § 9º; e do artigo 142, §§ 2º e 3º, além daquilo que vier a ser fixado em lei (que a Constituição não diz claramente de qual ente federativo é a competência)

b) O artigo 144, §6º do texto constitucional prescreve que as polícias militares (responsáveis pelo policiamento ostensivo e pela manutenção de ordem pública [4]) são subordinadas aos governadores de estado, bem como ao governador do Distrito Federal.

A Constituição estabelece nos incisos desdobrados do caput de seu artigo 144 os órgãos responsáveis pela segurança pública e os repartem nos parágrafos a seguir entre União (polícia federal, polícia rodoviária federal, polícia ferroviária federal e polícia penal federal) e estados e Distrito Federal (polícias civis, polícias militares, bombeiros militares, polícias penais).

Porém, dos órgãos da União, a polícia civil tem função de polícia judiciária (artigo 144, §1º), enquanto as polícias rodoviária e ferroviária tem função ostensiva, porém somente em rodoviárias e ferroviais federais, respectivamente (artigo 144, §§2º e 3º). A União, portanto, conforme determina a Constituição, não possui órgão destinado ao regular policiamento ostensivo urbano (polícias das forças armadas, como a Polícia do Exército, não possuem tal função). De fato, parece ser um contrassenso a União ter um órgão de policiamento ostensivo sendo que os Estados já o tem. A não ser por uma questão específica: a cidade que serve justamente à sede da União não tem uma polícia militar comandada pelo Executivo federal.

Diversamente do que era previsto no passado, em que o governador (ou prefeito a depender da época) do Distrito Federal era nomeado pelo presidente da República, a Constituição de 1988 acompanhou a tendência do que foi estabelecido na Emenda Constitucional nº 25/1985 e previu eleições diretas para governador do Distrito Federal, de modo que, ao menos neste aspecto de autogoverno, equiparou sua autonomia à dos estados. E isto foi, em meu entendimento, um erro.

No tecido governamental [5] de uma federação em que há um ente equivalente ao Distrito Federal (normalmente uma Cidade Autônoma como Washington, Buenos Aires e Moscou), há uma característica que diferencia este tipo de ente dos demais entes subnacionais: a finalidade de sediar fisicamente a União. Parte das instituições do Distrito Federal, bem como a competência de legislar sobre elas é da União. Porém, no quesito de autogoverno, o Distrito Federal tem autonomia em relação ao governo federal.

Logo, há o seguinte cenário anômalo: a razão de existência do Distrito Federal, como unidade política subnacional, é sediar a União [6], porém o gerenciamento geral do espaço urbano, em especial a segurança pública, não está em poder da União e sim de um governo autônomo.

Veja-se: distintamente dos 26 estados do Brasil e de todos os 5.569 municípios, cujo propósito de existência é a parcial autodeterminação política de suas populações, o propósito do Distrito Federal é ser a sede da União, como, aliás, é prescrito constitucionalmente: Brasília, núcleo do atual Distrito Federal, é a capital federal e territorialmente onde está a sede dos Três Poderes da República: o Palácio do Congresso Nacional, o Palácio do Planalto e o Palácio do Supremo Tribunal Federal. E, para a proteção do perímetro urbano no qual estão localizados, a União não tem competência para organizar o policiamento ostensivo, ficando à mercê do governo do Distrito Federal.

O governo do Distrito Federal (propositalmente ou não, dirão as investigações) falhou em proteger a União em 8 de janeiro de 2023 (cuja situação de golpismo na invasão dos palácios somente foi controlada a partir da decretação de intervenção federal pelo presidente Lula, o único modo constitucionalmente previsto de controlar diretamente as forças de segurança ostensiva do Distrito Federal) e falhou novamente, ao possibilitar que um cidadão se aproximasse com explosivos da sede do STF e cometesse o atentado de 13 de novembro de 2024.

Voltando ao estabelecimento constitucional de competência sobre policiamento ostensivo para fins de segurança pública em áreas que não sejam rodovias ou ferrovias federais, ainda que apresente um sistema de repartição complexo, porém na maior parte das vezes de indubitável entendimento, a Constituição não deixa nominado que a competência é privativa [7] dos estados, tampouco ser de única responsabilidade destes.

Veja-se: ao se realizar uma leitura da repartição de competências sobre polícia ostensiva como propósito de segurança pública (tema que não está previsto diretamente como atribuição competência administrativa privativa de União, de estados ou mesmo comum entre estes entes) à luz do que artigos esparsos sobre o tema no texto constitucional (artigo 21, XIV, XXII; artigo 32, §4º, artigo 42 e artigo 144), tem-se a seguinte conjectura:

  1. A União tem competência para executar funções de policiamento ostensivo em rodovias e ferrovias federais; no que não for estes espaços, a competência é dos Estados, uma vez que as polícias militares estão subordinadas ao Governador e seu corpo é formado por militares estaduais;

  2. A União tem competência para executar os serviços de polícia marítima, aeroportuária e de fronteiras, além da competência para policiamento ostensivo em áreas restritas (como no caso da atuação da Polícia do Exército em proximidades de quarteis ou da Polícia Legislativa no Congresso Nacional); em espaços que não estes, a competência para executar o policiamento ostensivo é dos Estados e do Distrito Federal;

  3. A União é competente para organizar e manter a Polícia Militar do Distrito Federal, além de assisti-lo financeiramente, por meio de fundo próprio, para a execução desta espécie de serviço público. Porém, não é competente para a execução em si, uma vez que na normalidade constitucional, não detém o comando sobre a Polícia Militar do Distrito Federal. O comandante é o Governador do Distrito Federal que, por sua vez, não é subordinado hierarquicamente ao Executivo federal.

Portanto, a União tem competência para policiamento ostensivo, mas não o policiamento ostensivo dentro da cidade que lhe sedia. Ainda que tenha algum efetivo para a proteção dos palácios, não tem o poder de elaborar e coordenar operações de defesa da ordem pública em maior escala. Assim, a União não tem como proteger ostensivamente sua sede em situações como a da turba golpista de 8 de janeiro de 2023. Do mesmo modo, a União dificilmente conseguiria impedir ataques como o cometido por Tiu França em 13 de novembro de 2024, caso fosse em maior escala e de modo mais bem planejado.

De modo acertado, a intervenção federal decretada no Distrito Federal na tarde do fatídico 8 de Janeiro (Decreto nº 11.377/2023) remediou no momento a violação e ameaça à ordem pública em Brasília, porém não resolveu o problema.

Mesmo o novo Sistema Brasileiro de Inteligência, instituído pelo Decreto nº 11.693/2023, com a finalidade de melhorar a integração das ações de planejamento e execução de atividades de inteligência a serviço do Executivo federal, entre as quais ações preventivas contra movimentações semelhantes às do 8 de janeiro, bem como de atentados terroristas (tais como o quase realizado no aeroporto de Brasília em dezembro de 2022 e o promovido por Tiu França), não estabelece obrigatoriamente dentre seus órgãos integrantes algum centro ou diretoria de inteligência da Polícia Militar do Distrito Federal, justamente porque ela não está subordinada ao presidente da República e sim ao governador.

Essa anomalia poderia ser resolvida de algumas formas por meio de emendas à Constituição. O meio mais evidente e radical seria justamente a modificação do artig 32, § 2º (e demais dispositivos que fossem correlatos ao assunto), devolvendo ao presidente da República a competência de nomear o governador do Distrito Federal, após a aprovação pelo Senado, assim como era antes da Emenda Constitucional nº 25/1985.

Reconheço, porém, que após mais de 35 anos de vigência, há algum sentido em preservar a qualidade de autogoverno, tendo a população do Distrito Federal adquirido a prática de escolha de seu governante, tal qual uma grande cidade escolhe seu prefeito (entendo inclusive que o Chefe de um Distrito Federal deveria ser em si um prefeito e não um governador). Esta alternativa seria constitucionalmente possível, porém talvez não seja a melhor saída.

Penso que a melhor forma de resolver essa anomalia, de modo mais preciso e menos radical, seja retirar o comando da Polícia Militar do Distrito Federal do governador e o transferir ao presidente da República. Na órbita federal, a força policial deveria integrar o Ministério da Justiça e Segurança Pública ou especificamente o Ministério da Segurança Pública, caso venha a ser recriado.

Assim, a alteração deveria se dar no artigo 144 § 6º (e dispositivos que forem necessários) naquilo que se referir à Polícia Militar ser subordinada ao governador do Distrito Federal. Talvez uma nova redação para o dispositivo pudesse ser:

“As polícias militares, os corpos de bombeiros militares, forças auxiliares e reserva do Exército subordinam-se, juntamente com as polícias civis e as polícias penais estaduais, aos Governadores dos Estados, exceto as do Distrito Federal e dos Territórios, que são subordinadas ao Presidente da República.”

Não haveria, neste caso, uma modificação do vínculo institucional: a Polícia Militar do Distrito Federal continuaria a ser distrital (e não federal), mas tão somente o comando das forças. Com tal alteração, a União passaria a ser competente e responsável pela segurança pública dentro da divisa do Distrito Federal, ente federativo que territorialmente a sedia.

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[1] “Qual é a diferença, então, entre Brasília e o Distrito Federal? Não há diferença exata estabelecida no Direito brasileiro. Em algumas fontes, Brasília e Distrito Federal são tidas como sinônimos, porém outras também identificam Brasília como o plano piloto, de modo a diferenciá-la do demais distritos residenciais que estão localizados no território do Distrito – as chamadas ‘cidades-satélites’” (LIZIERO, Leonam. Federalismo e Estado Federal: Teoria, História e Dogmática Constitucional. Rio de Janeiro: Sankoré, 2024, p. 552).

[2]  SOUZA NETO, Claudio Pereira de. Art. 144. In: CANOTILHO, J.J. Gomes; MENDES, Gilmar Ferreira; SARLET, Ingo Wolfgang; STRECK, Lenio Luiz; LEONCY, Léo Ferreira. Comentários à Constituição do Brasil. 2 ed. São Paulo; Coimbra: Saraiva; Almedina, 2018, posição 3013.

[3] De acordo com Moreira Neto, “o conjunto de processos políticos e jurídicos, destinados a garantir a ordem pública na convivência de homens em sociedade”. (MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Revisão doutrinária dos conceitos de ordem pública e segurança pública: uma análise sistêmica. Revista de Informação Legislativa, a. 25, n. 97, 1988, p. 152).

[4] Álvaro Lazzarini esclarece que ordem pública é “constituída por um mínimo de condições essenciais a uma vida social conveniente, formando-lhe o fundamento à segurança dos bens e das pessoas, à salubridade e à tranquilidade, revestindo, finalmente, aspectos econômicos (luta contra monopólios, açambarcamento e a carestia) e, ainda, estéticos (proteção de lugares e de monumentos)” (LAZZARINI, Álvaro. Limites do Poder de Polícia. Revista de Direito Administrativo, n. 198, p. 69-83, 1994, p. 71).

[5] TORRES, Alberto. A Organização Nacional. 4 ed. São Paulo: Editora Nacional; Brasília: Editora da UnB, 1982, p. 162.

[6] LIZIERO, Leonam. Federalismo e Estado Federal: Teoria, História e Dogmática Constitucional. Rio de Janeiro: Sankoré, 2024, p. 618.

[7] Utilizo sempre os termos “privativo” e “exclusivo” como sinônimo. Não há qualquer especificidade terminológica normativa de distinção entre estes termos. Neste sentido,  entendendo ter razão Fernanda Dias Menezes de Almeida: “o que não nos parece apropriado, no entanto, é extremar mediante o uso dos termos ‘privativo’ e ‘exclusivo’ competências próprias que podem e as que não podem ser delegadas, como se ‘privativo’ não exprimisse, tanto quanto ‘exclusivo’, a ideia de que é deferido a um titular com exclusão de outro”. (ALMEIDA, Fernanda Dias Menezes de. Competências na Constituição de 1988. 5 ed. São Paulo: Atlas, 2010, p. 63)

Autores

  • é doutor em Direito pela Uerj, com pós-doutorados em Direito pela UFRJ e pela UFPE, professor da UFRJ e da Escola do Parlamento, pesquisador e autor de livros e artigos nas áreas de federalismo e Teoria do Direito.

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