V13, o Julgamento dos Atentados de Paris, de Emmanuel Carrère
17 de novembro de 2024, 8h00
Como se define o valor de uma lágrima? Como se entende uma máquina de ódio? Pode-se compreender um enredo lendo-se apenas a última página de um livro? O que o Direito francês entende por “angústia de morte iminente”? O que está por trás de tantos atentados terroristas? É possível pensarmos que o Código Civil foi construído para que ricos pudessem lesar os pobres e que o Código Penal fora pensado para que os pobres não tomassem dos ricos? O que é, objetivamente, colocarmo-nos no lugar do outro, no contexto de tragédias incompreensíveis? A violenta presença colonial europeia na África e no Oriente Médio justificaria uma abstrata pretensão de vingança legítima? A dor de um pai de filho assassino pode ser assemelhada à dor de um filho assassinado?
Essas são algumas das inúmeras questões formuladas por Emmanuel Carrère nessa portentosa crônica forense que é V13, o Julgamento dos Atentados de Paris. O livro foi publicado no Brasil pela Editora Alfaguara, com belíssima tradução de Mariana Delfini. Foi em Paris que, numa sexta-feira (Vendredi em francês) 13 de novembro de 2015 (por isso o título V 13), que radicais islâmicos assassinaram brutalmente cerca de 130 pessoas, ferindo tantas outras. É o tema dos embargos culturais dessa semana.
Comecemos com o caso. Os mortos e feridos eram jovens que ouviam um concerto e dançavam no Bataclan (um espaço para shows), nas proximidades do estádio de futebol (onde jogavam França e Alemanha) e em vários bares localizados na chamada Esplanada da Região Norte. Em seguida aos tiros, os terroristas explodiram bombas que estavam amarradas nos próprios corpos. Com exceção de um deles, que mudou de ideia, todos morreram.
Os porquês do ódio
O livro é dividido em quatro partes. Carrière inicia narrando as tragédias vividas pelas famílias dos mortos e dos sobreviventes, sob a ótica deles. Enfatizou os traumas. Fixou uma 131ª vítima imaginária; isto é, que não morreu no local, mas que carrega pela vida toda os mais pesados sentimentos de culpa. Inclusive a culpa que sentem por terem sobrevivido. Um tema que foi explorado por Karl Jaspers, ainda que em outra época e contexto (nazismo e antissemitismo).
Carrière descreve o tribunal. Guardadas as proporções (de tempo, de tópico e do número de réus), o traço lembra as páginas iniciais de Eichmann em Jerusalém, nas linhas em que Hannah Arendt descreve a “Beth Hamishpath”, a Corte de Israel.
O autor colheu informações no tribunal em Paris, diariamente, ao longo de quase um ano. Avaliou juízes, promotores, defensores, advogados, testemunhas. Explicou arranjos institucionais peculiares ao Direito francês, a exemplo de um fundo destinado a indenizar as vítimas do terrorismo. Tudo muito bem francês.
Porque os autores da chacina se suicidaram na noite dos atentados, apenas os cúmplices eram julgados. Por definição, apenas cúmplices, todos acomodados em um ponto que mais parecia um aquário, segundo o autor. Haviam participado nos atentados. Uns mais, outros menos.
Todo mundo tem direito de defesa. Nesse ponto, Carrière lembra-nos o mais famoso advogado de terroristas, de todos os tempos, Jacques Vergès (1925-2013), o advogado do diabo, por excelência: o defensor dos indefensáveis. Vergès advogou para Klaus Barbie (o criminoso nazista), para Djamila Bouhired (terrorista argelina, com quem se casou), Pol Pot (líder do Khmer Vermelho), Anis Naccache (guerrilheiro libanês), Carlos, o Chacal (terrorista de tristíssima memória), entre tantos outros. É pelo cliente que se define o advogado? Na defesa dessa lista tristemente memorável, Vergès perguntava aos julgadores se haviam se olhado no espelho…
Um ponto central que Carrière debate é a diferença entre um criminoso e um criminoso terrorista. Um soldado aguerrido do Estado Islâmico enfrenta qualquer julgamento com o adjetivo terrorista pregado no substantivo masculino criminoso. Os réus tentam desapegar o adjetivo do substantivo, com isso buscando penas mais brandas. Não conseguiram.
“V13” é provavelmente a mais impressionante crônica forense que se tem para ler. O autor parece ser um discípulo fiel do suspeitíssimo filósofo Baruch Spinoza (1632-1677), para quem não podemos julgar, nem lamentar, e nem se indignar. À nossa condição humana compete apenas tentar compreender. V13 é um exercício moral de compreensão jurídica, que se revela em uma ousada tentativa de explicação dos porquês do ódio e das razões do desamor.
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