Teoria da Zona Livre de Ofensas e seus desdobramentos no Judiciário brasileiro
17 de novembro de 2024, 6h02
A Teoria da Zona Livre de Ofensas proclama que, em determinados ambientes comunicacionais, as pessoas que neles ingressam, seja de forma direta, indireta (por meio de um informante), ou que expressamente rejeitam a possibilidade de participar ativamente, aceitam implicitamente os padrões de interação estabelecidos, os quais podem incluir discursos mais intensos, ríspidos e até ofensivos.
Desenvolvida no Brasil pela doutora Karina Nunes Fritz [1], esta teoria discorre sobre os limites da liberdade de expressão, indicando que, em determinados contextos de comunicação, é possível estabelecer um “espaço de imunidade”, em que certos comentários, mesmo ofensivos, não geram consequências jurídicas, pois seus participantes aceitam previamente esse ambiente de comunicação.
Fritz apontou uma decisão do Tribunal de Justiça de Frankfurt am Main, sobre o caso de um genro que tentou impedir que sua sogra falasse mal dele no grupo de mensagens familiar, abrindo um importante precedente acerca da proteção da honra e a liberdade de expressão no âmbito familiar. Trata-se do processo Az. 16 W 54/18, em que o tribunal abordou a necessidade de um espaço livre de consequências jurídicas nas relações familiares, reconhecendo a importância de uma área onde os membros da família possam se expressar sem receio de danos jurídicos.
Ao julgar o recurso, o Tribunal de Justiça de Frankfurt am Main negou o pedido do genro e introduziu a ideia de uma “zona livre” de proteção para manifestações no círculo familiar, protegendo as relações de confiança e a liberdade de expressão de familiares próximos. Para o Tribunal, essa área de confiança é uma esfera de proteção constitucional onde a honra do indivíduo é relativizada, prevalecendo o direito à liberdade de expressão. Essa interpretação é fundamentada nos artigos 1.º e 2.º da Lei Fundamental da Alemanha,[2] que garantem uma esfera de comunicação confidencial dentro das relações pessoais.
A “zona livre” permite que, mesmo em discussões e expressões mais duras entre familiares próximos, não se imponham consequências jurídicas. A decisão destacou ainda que os comentários da sogra, embora direcionados contra o genro, ocorreram dentro de um grupo familiar restrito, não sendo configurados como ofensivos ao ponto de ultrapassarem os limites do aceitável na esfera íntima familiar.
Ingresso no WhatsApp pressupõe aceitação prévia do ambiente
Fazendo coro ao estudo de Fritz, Carlos Eduardo Elias de Oliveira aprofunda o exame da teoria, adaptando-a para as conversas realizadas em grupos de WhatsApp, conforme artigo publicado no Migalhas [3].
Para Oliveira, ao ingressar em um grupo de WhatsApp, os participantes aceitam implicitamente um ambiente de interação que pode incluir discordâncias, debates acalorados e até trocas de comentários que, fora desse contexto, poderiam ser considerados ofensivos. Essa aceitação prévia criaria uma espécie de “consentimento tácito”, que impede a formulação de alegações de danos morais causados por tais interações. Segundo o autor,
“Soa estranho dizer que as pessoas podem ofender as demais a depender do ambiente, mas isso é uma realidade que o Direito não pode ignorar. O juiz deverá ser extremamente cauteloso nessa análise, pois evidentemente não se pode tolerar casos abusivos, como os de violência contra pessoas vulneráveis. Para delimitar o espaço dessa zona livre, entendemos que deve ser feito um juízo de ‘bom senso’ (o que inevitavelmente gerará um certo grau de indeterminação) que leve em conta os seguintes parâmetros: (1) o grau de intimidade entre os membros do grupo; (2) o nível de formalidade adotado entre eles; e (3) a existência ou não de recusa externa de um dos membros a participar dessa “zona livre de ofensa”. Quanto maior o grau de intimidade entre os membros desse grupo e quanto maior a informalidade nesse ambiente, essa zona livre será maior. Cabe ao juiz a difícil tarefa de mapear o ambiente interpessoal para, no caso concreto, averiguar a extensão da ‘zona livre para ofensas’. Um mesmo ‘palavrão’ ou um ‘xingamento’ pode ser um ilícito civil em um ambiente muito formal e não ser ilícito algum em um ambiente extremamente informal”.
Aplicação da teoria
O Tribunal de Justiça do Distrito Federal e dos Territórios (TJDFT) tem adotado a Teoria da Zona Livre de Ofensas no âmbito civil e criminal. Cita-se, por exemplo, o Acórdão 1.698.683, autos: 0712332-57.2022.8.07.0020, 2ª Turma Recursal, DJe- 17/05/2023. Neste precedente, proferido no âmbito civil, abordou-se uma situação em que uma das partes, participante de um grupo de WhatsApp de contação de histórias, busca indenização por dano moral em razão de comentários ofensivos feitos por outra participante.
No caso analisado, a controvérsia se resume a avaliar se as atitudes e comentários da ré – embora considerados de “pouca cortesia” e denotando falta de educação – são suficientemente graves para configurar dano moral. O entendimento é de que, em um grupo restrito e informal, como o de contação de histórias com 34 participantes, há uma zona de tolerância maior para comunicações potencialmente ríspidas ou ofensivas, já que não se trata de um ambiente público.
Segundo o julgado, a ré não extrapolou os limites aceitáveis no contexto desse grupo, pois, embora os comentários fossem rudes, não houve repercussão negativa na imagem da autora nem violação dos atributos de sua personalidade. Além disso, a decisão pondera que participar de um grupo de WhatsApp é uma escolha, e o indivíduo pode decidir não continuar ali. Assim, palavras rudes, como chamar alguém de “ladrão de projeto“, não foram consideradas um excesso capaz de fundamentar uma indenização por dano moral, dado o contexto privado e flexível do grupo.
Concluindo, o julgado reafirma que o conceito de dano moral está ligado a uma ofensa direta aos direitos da personalidade (como honra e imagem) e que, em ambientes mais informais e privados, o julgamento sobre o que constitui dano moral deve ser mais restrito e contextualizado, conforme a zona de tolerância ou “Zona Livre de Ofensas”.
Já no Acórdão 1.797.032, autos: 0719138-45.2021.8.07.0020, 2ª Turma Recursal, DJe- 15/12/2023, proferido no âmbito criminal, analisou-se uma queixa-crime, em razão da alegada prática de injúria (artigo 140 do Código penal).
No caso, a apelante acusou o síndico, com quem tinha divergências administrativas, de utilizar palavras ofensivas (“trupe”, “medíocre”, “arrogante” e “prepotente”) em um grupo de WhatsApp dos moradores do condomínio, com o suposto intuito de ofendê-la.
O magistrado considerou que o ambiente do grupo de mensagens do condomínio é um espaço privado e informal, onde as interações podem conter excessos e expressões ríspidas. Aplicou a Teoria da Zona Livre de Ofensas, que reconhece uma maior tolerância para comentários potencialmente ofensivos em espaços fechados, como um grupo de WhatsApp restrito a moradores.
Conforme já repisado, a teoria, utilizada nesse contexto, defende que os participantes desses grupos informalmente aceitam o risco de uma linguagem mais direta e até negativa, em razão do ambiente propício a conflitos de opinião, especialmente em questões de administração condominial.
A decisão enfatiza que, para o crime de injúria, é necessário comprovar a intenção específica de ofender (animus injuriandi). Entretanto, o contexto apontado, o conteúdo das mensagens e o ambiente do grupo de WhatsApp indicaram que o síndico estava manifestando sua opinião, ainda que de maneira dura, sobre a postura da apelante, sem o dolo específico de injuriá-la. Assim, a conduta foi interpretada como desprovida da intenção penalmente relevante de ofensa à honra, sendo uma crítica decorrente de conflitos típicos da vida condominial.
Ao aplicar a Teoria da Zona Livre de Ofensas, o julgado concluiu que, em ambientes privados e informais, é necessário distinguir entre ofensas intencionais e opiniões, ainda que ríspidas e severamente negativas, especialmente quando não há evidências claras de animus injuriandi. Dessa forma, afastou a caracterização do crime de injúria, prestigiando a liberdade de expressão.
A hipótese de renúncia à chance de se defender de imediato
Defendemos, nada obstante, que ainda que a pessoa decida não integrar um grupo de WhatsApp, a obtenção de informações acerca do que ocorre nesse grupo por meio de terceiros configura verdadeira busca ativa de conteúdo, não podendo fundamentar um pedido de danos morais, e muito menos uma ação penal. A lógica é simples: a “zona livre de ofensas” ainda se aplica, porque a pessoa se expõe voluntariamente às informações de conteúdo potencialmente ofensivo ou indesejável, das quais poderia ela mesma ter se defendido, mas preferiu utilizar um porta-voz que não a defenderá, mas passará adiante o teor das mensagens.
Assim, os odiosos prints de conversas e os encaminhamentos de mensagens esbarrariam na teoria da zona livre de ofensas, pois a exposição decorre de uma escolha pessoal de se informar sobre o conteúdo do grupo. Defendemos ser possível, inclusive, cogitar que a responsabilidade penal e civil recaia sobre quem transmite as mensagens, pois ao agir dessa forma, essa pessoa está ofendendo aquele que optou por se manter alheio ao conteúdo do grupo.
Em algumas situações, para evitar prestar contas em um ambiente de diálogo como o WhatsApp, receber críticas sobre sua gestão ou responder a cobranças, certas pessoas — mesmo ocupando cargos que exigem transparência, como o de síndico — escolhem não participar do grupo. Em cargos desse tipo, a pessoa naturalmente se torna uma vitrine e estará sujeita a críticas e comentários. Posteriormente, não podem reclamar judicialmente por dano moral ou alegar terem sido vítimas de calúnia, injúria ou difamação, salvo se esses crimes de fato ocorreram com dolo específico dos responsáveis.
Assim, um síndico que decide, por livre escolha, não participar de um grupo do condomínio que administra, não pode alegar dano moral por ter sido chamado, por exemplo, de incompetente, palhaço, ridículo, ditador, entre outros termos. Isso porque ninguém inicia um diálogo com tais ofensas de imediato; há um contexto, uma conversa prévia. Caso estivesse presente, ele poderia, desde o início, justificar suas ações ou omissões, evitando que a discussão evoluísse para ataques pessoais.
A participação em grupos desse tipo representa, na verdade, uma oportunidade de responder a críticas ao seu trabalho. Trata-se de uma zona livre de ofensas, um ambiente democrático onde todos os participantes podem expor sua versão dos fatos e discutir propostas para o bem do coletivo.
Ao se escolher não participar de diálogos abertos, como grupos condominiais de WhatsApp, renuncia-se à chance de se defender de imediato e demonstrar que as ilações ali conjuradas não correspondem à realidade.
De acordo com os brocardos jurídicos, “o direito não socorre aos que dormem” e “a ninguém é dado comportar-se de forma contraditória”, quem escolhe permanecer fora de um ambiente comunicacional, mesmo que polarizado, mas aberto à sua participação, não pode depois bater às portas do Judiciário buscando indenização por dano moral, alegando ofensa da qual poderia ter se defendido prontamente. O Judiciário é (e deve mesmo ser) a última ratio.
Nesse contexto, essas pessoas assumem um consentimento tácito que limita a possibilidade de reivindicar danos morais, pois já concordam em tolerar um nível maior de liberdade de expressão do que seria aceitável em outras situações.
Considerações finais
As interações em redes sociais demandam cautela judicial ao delimitar o que deve ser tutelado pelo Direito e o que deve ficar a cargo da Moral e do bom senso. Afinal, ao permitir que ofensas permaneçam em uma zona regulada pela Moral, o Direito preserva sua função e evita a proliferação de processos judiciais em conflitos interpessoais e sociais que não afetam direitos fundamentais.
Dessa forma, a Teoria da Zona Livre de Ofensas oferece um interessante paradigma para o tratamento das interações em grupos de WhatsApp, ajustando os limites da liberdade de expressão aos contextos virtuais em que os indivíduos escolhem ou não participar. A responsabilidade civil, nesses ambientes, deve ser mitigada pela aceitação tácita de um ambiente de diálogo mais permissivo, onde se espera uma maior tolerância para opiniões divergentes e até para discursos potencialmente ofensivos.
[1] FRITZ, Karina Nunes. Dentro do círculo familiar há uma “zona livre” para ofensas. Disponível em: <https://www.migalhas.com.br/coluna/german-report/305037/dentro-do-circulo-familiar-ha-uma–zona-livre–para-ofensas>. Acesso em 11/11/2024.
[2] “Art. 1: A dignidade do homem é inviolável. Respeitá-la e protege-la é dever de todos os poderes estatais”. “Art. 2: “Todos têm direito ao livre desenvolvimento de sua personalidade, desde que não viole os direitos de outrem, a ordem constitucional ou os bons costumes”.
[3] OLIVEIRA, Carlos Eduardo Elias de. “Zona Livre para Ofensas” e as Redes Sociais. Disponível em: <https://www.migalhas.com.br/depeso/334928/zona-livre-para-ofensas–e-as-redes-sociais>. Acesso em 11/11/2024.
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