Os argumentos jurídicos climáticos perante a Corte Interamericana de Direitos Humanos
17 de novembro de 2024, 9h18
A Conferência das Partes (COP) da Convenção-Quadro das Nações Unidas que ocorre no Azerbeijão em 2024 e no Brasil em 2025 chama mais uma vez a atenção global para o cenário aparentemente catastrófico que atingirá o planeta se não houver uma significa redução de gases de efeito estufa.
O tema tem sido também litigado em cortes e tribunais internacionais, aos quais foram requisitadas opiniões consultivas para esclarecer pontos pouco consensuais do regime jurídico internacional climático. Desde que Colômbia e Chile solicitaram uma opinião consultiva à Corte Interamericana de Direitos Humanos (CtIDH), um grande debate se instaurou e, como analisado nesta ConJur, diferentes argumentos foram esgrimidos por diferentes atores, gerando amplo debate não apenas sobre a relação entre a proteção de direitos humanos e a emergência climática, como também sobre o futuro do próprio Sistema Interamericano de Direitos Humanos.
Neste ensaio, analiso os argumentos jurídicos avançados pelos participantes na Opinião Consultiva, fruto de um estudo maior conduzido pelo Grupo de Pesquisa em Cortes e Tribunais Internacionais da UFMG/CNPq. Argumento que, mesmo diante da pluralidade, um certo espírito uniforme parece mover as participações perante a Corte Interamericana, destacando-se a relação entre direitos humanos e proteção do clima.
Uma observação preliminar que deve ser feita é o fato de que houve uma participação desigual de diferentes organismos. Ao todo, 265 contribuições foram apresentadas à corte, sendo dez de Estados, dez de organismos de Estados, quatro de órgãos da Organização dos Estados Americanos, 14 de outros órgãos e organismos internacionais, 17 de comunidades — de forma direta ou em conjunto com organizações não-governamentais —, 81 de ONGs, 12 de ONGs em conjunto com a sociedade civil ou instituições acadêmicas, 71 de instituições acadêmicas, 45 da sociedade civil e uma de empresas.
Esse elevado índice de participação destaca, ainda, o fato de que a influência dos pronunciamentos da Corte Interamericana em um procedimento consultivo ultrapassa, de forma considerável, o seu valor jurídico direto limitado. Ainda que os pareceres da corte não sejam per se vinculantes aos Estados, isto não afasta a sua autoritatividade enquanto um pronunciamento convincente sobre o atual estado do direito internacional na região. Dessa forma, os pareceres consultivos são amplamente seguidos pelos Estados da região, dado o prestígio da corte enquanto intérprete do direito, e profusamente referenciados na prática posterior da corte — tanto consultiva quanto contenciosa. O interesse de participação dos mais variados atores nesse procedimento indica, portanto, um interesse em influenciar a determinação do direito internacional e a definição dos contornos específicos das obrigações estatais na arena incerta do direito das mudanças climáticas, apresentando os argumentos jurídicos que são entendidos como essenciais a serem considerados pela corte.
Participação estatal, o regime climático e o Acordo de Escazù
Nove dentre os 34 membros da Organização dos Estados Americanos participaram do procedimento consultivo envolvendo Direitos Humanos e Emergência Climática, configurando uma representatividade de aproximadamente 26% dos Estados da Organização. Considerando a participação estatal em outras opiniões consultivas perante a Corte Interamericana de Direitos Humanos, este número pode ser considerado relativamente significativo – mas certamente não alto. Em primeiro lugar, dentre os Estados participantes, parece existir consenso em relação a determinadas matérias ou relação à importância do tema trazido por Chile e Colômbia à atenção da corte, ou ainda sobre a necessidade de se discutir assuntos climáticos por meio de uma abordagem de direitos humanos. Nenhum Estado apresentou-se para contestar a jurisdição da corte em emitir esse pronunciamentos.
Uma leitura dos memoriais estatais demonstra que os Estados parecem estar cientes do potencial “esverdeamento” da jurisprudência do sistema interamericano e de seu futuro uso para litigância climática, e consideraram importante utilizar o foro da opinião consultiva. De um modo geral, Estados foram deferentes à jurisprudência da corte e alguns de seus standards e abordagens desenvolvidas – como por exemplo, à noção de vulnerabilidade de determinados grupos ou à necessidade de se utilizar direitos humanos também para o enfrentamento da crise climática.
Naturalmente, alguns Estados se valeram da ocasião para avançar suas posições oficiais relativas a negociações climáticas – em especial no que diz respeito ao argumento de obrigações comuns porém diferenciadas e a necessidade de se levar em consideração uma abordagem diferenciada em relação a países em desenvolvimento e países desenvolvidos. Nas entrelinhas, Estados parecem sugerir que estão dispostos a assumir e honrar suas obrigações de direitos humanos em contextos de emergência climática, ao mesmo tempo que não desejam aumentar o número de obrigações assumidas por países em desenvolvimento em comparação a países desenvolvidos – daí a importância frequente da argumentação e das referências às obrigações de países desenvolvidos.
A dimensão universal das negociações climáticas também reforça dois instrumentos universais centrais no debate da abordagem de direitos para o enfrentamento da crise climática referenciados por todos os Estados: a Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas e o Acordo de Paris. Embora estes tratados não especifiquem diretamente obrigações de direitos humanos para as partes, sua referência pelos Estados continuamente em suas manifestações coloca em evidência o seu papel único como instrumentos-chave na interpretação das obrigações de direitos humanos.
A visão sistêmica esposada pelos Estados permite que, no contexto interamericano, sua interpretação sirva à proteção de direitos humanos protegidos no âmbito da Convenção. Ao fim e ao cabo, a opinião da corte servirá para que se entenda a dimensão interpretativa que o Acordo de Paris possui para demais obrigações internacionais.
Chama igualmente a atenção o uso do Acordo de Escazù por parte dos Estados participantes, especialmente como constituidores dos standards mínimos de obrigações procedimentais para proteção do meio ambiente e, por consequência, do sistema climático. Mesmo Estados que não são partes do Acordo de Escazù reconhecem que parte de seu conteúdo e dos princípios neles consagrados estão já incorporados em seus sistemas jurídicos em diferentes níveis legislativos.
Da maneira como foi utilizado, embora os Estados não tenham utilizado a linguagem do direito costumeiro, é possível questionar a existência de prática e opinio iuris no sentido de reconhecer parte do acordo de Escazù como reflexos de um costume relativo a direitos ambientais de proteção de direitos de acesso à justiça e informação no continente americano. Por meio do Acordo de Escazù e das recentes resoluções internacionais em matéria, os Estados participantes reconheceram e reafirmaram a existência do direito humano ao meio ambiente saudável em nível internacional e o direito humano ao clima equilibrado como seu componente.
Organizações internacionais e entidades não governamentais: pluralidade de argumentos e especifidade de atuação
De forma geral, a intervenção promovida pelas organizações e organismos internacionais através dos amici curiae se diferenciam daqueles apresentados pelos Estados e organismos ligados a eles por se restringirem a argumentos que se inserem no âmbito específico de suas respectivas áreas de atuação.
Assim, organismos como o Instituto Interamericano da Criança e Adolescentes e o Escritório do Representante Especial do Secretário Geral sobre Violência contra Crianças, por exemplo, centraram seus argumentos na demonstração dos impactos das mudanças climáticas sobre os direitos das crianças, enquanto a Organização Internacional para Migrações e o Escritório do Alto-comissariado das Nações Unidas para os Refugiado buscam explicitar os efeitos do clima no reconhecimento da condição de refúgio e na conferência das garantias jurídicas que dela decorrem ao invés de oferecer respostas detalhadas a todas as questões colocadas à Corte no pedido de opinião consultiva.
Essa abordagem parece estar alicerçada no princípio da especialidade, segundo o qual as organizações, por não possuírem uma competência geral como os Estados, devem limitar sua atividade aos âmbitos de suas funções.
Particularmente relevante parece ser o argumento de que o continente americano como um todo estaria especialmente vulnerável às mudanças climáticas e seus efeitos na proteção dos direitos humanos. Esse argumento parece reverberar, de modo geral, o princípio das obrigações comuns porém diferenciadas. Outro argumento particularmente inovador trazido nessas contribuições é o desdobramento de direitos humanos relativos ao direito urbano e paisagístico. O potencial desse material é enorme no sentido de demonstrar que a América Latina é um continente particularmente vulnerável às mudanças climáticas e medidas específicas são necessárias para responder aos desafios que elas impõem.
Dada a grande diversidade entre os atores não-estatais que participaram do procedimento consultivo perante à Corte Interamericana, é perceptível uma maior variabilidade quanto ao escopo das obrigações materiais e procedimentais identificadas. De forma geral, percebe-se que as comunidades participantes focaram especialmente em apresentar situações de fato relativas a possíveis violações experienciadas nos Estados parte da Convenção Americana. Por sua vez, ONGs e instituições acadêmicas parecem mais focadas em avançar teses jurídicas, tanto de direito interno quanto de direito internacional, relacionados à mitigação e adaptação aos efeitos das mudanças climáticas e seus impactos na proteção de direitos humanos.
Quais conclusões retirar? E pluribus unum
As mudanças climáticas são amplamente reconhecidas, por todos os atores envolvidos, como uma situação de fato que impacta negativamente os direitos humanos protegidos no âmbito dos Estados Americanos e universalmente. Assim, direitos tradicionalmente reconhecidos, como o direito à vida, o direito à informação, o direito de acesso à justiça, entre outros, são passíveis de serem alvos de efeitos deletérios pelas mudanças climáticas. O direito humano ao meio ambiente sadio e limpo é também, de forma geral, visto como um direito autônomo, reconhecido pelos Estados da região, cujo escopo incluiria a busca do equilíbrio climático e adoção de medidas de mitigação e adaptação aos efeitos das mudanças climáticas – algo já presente em outros documentos internacionais.
Um elemento que pode ser identificado a partir da análise geral dos amici apresentados é a relevância de alguns instrumentos universais como a Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre a Mudança do Clima e o Acordo de Paris. Ambos são vistos como relevantes no contexto dos impactos das mudanças climáticas sobre as obrigações de direitos humanos, sendo vistos como evidências do compromisso dos Estados com relação à mitigação e adaptação aos efeitos das mudanças climáticas e, em muitos casos, como instrumentos que podem auxiliar a interpretação das obrigações assumidas pelos Estados no âmbito da Convenção Americana sobre Direitos Humanos. O consenso obtido nessas negociações faz com que constituam a linha mestra interpretativa diante do reconhecimento das mudanças climáticas como uma preocupação comum da humanidade.
A amplitude e pluralidade dos argumentos avançados por Estados, organizações internacionais e entidades não estatais demonstra a riqueza do debate perante a Corte Interamericana de Direitos Humanos bem como a importância do tema para a sociedade civil na região. As potencialidades do parecer consultivo da Corte Interamericana, caso decida exercer sua jurisdição, são inúmeras, e o esclarecimento dos pontos de tensão e das convergências no direito internacional dos direitos humanos parece colocar a Corte Interamericana numa posição única para influenciar o desenvolvimento futuro da proteção dos direitos humanos em relação à emergência climática, bem como o papel do Sistema Interamericano nessa proteção. Embora existam divergências nos argumentos apresentados, em especial sobre o potencial futuro do Sistema Interamericano como um foro apropriado para se litigar o desafio climático, há certamente uma unidade na reafirmação da necessidade de reunir esforços para combater o desafio comum. E pluribus unum.
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