Diretiva da UE sobre melhoria das condições de trabalho em plataformas digitais
17 de novembro de 2024, 13h18
Na iminência do julgamento do Tema nº 1.291 de repercussão geral do Supremo Tribunal Federal [1], que analisa o reconhecimento de vínculo de empregatício entre motorista de aplicativo de prestação de serviços de transporte e empresa administradora de plataforma digital, foi publicada a Diretiva 2024/2831 [2] da União Europeia, relativa à melhoria das condições de trabalho em plataformas digitais.
Ainda que o escopo do julgamento da repercussão geral seja menor do que a abrangência da diretiva [3], pois se restringe à análise sobre motoristas de aplicativo no setor de transporte, a diretiva traz algumas questões dignas da nossa atenção, pois vai além da discussão da tradicional dicotomia entre trabalho autônomo e relação de emprego, trazendo inúmeros avanços ao tratar do gerenciamento algorítmico – a principal e notável inovação do modelo de negócio da gig economy.
Duas questões principais podem ser evidenciadas na diretiva: a presunção legal do vínculo empregatício e o gerenciamento algorítmico, que passa a ser considerado como fonte de riscos para os trabalhadores.
A primeira delas — presunção legal do vínculo empregatício — visa mitigar a equivocada classificação do vínculo jurídico dos trabalhadores de plataforma que, em sua grande parte, são tratados como trabalhadores autônomos e, consequentemente, desprovidos da tutela trabalhista, expondo-os a precariedade e vulnerabilidade.
A diretiva, nesse sentido, a partir de evidências de que o trabalho baseado em aplicativos e o gerenciamento algorítmico obscurecem a verdadeira natureza da relação entre o trabalhador e a plataforma, porquanto não refletem claramente uma condição de subordinação, desafiando a viabilidade e a aplicação dos paradigmas legais existentes, introduziu a chamada “presunção de emprego”.
Estabelece, basicamente, que a relação entre uma plataforma e uma pessoa que trabalha através dessa plataforma é legalmente presumida como uma relação de emprego quando verificados fatos que indiquem direção e controle, a partir da legislação nacional, convenções coletivas ou das práticas em vigor nos Estados membros, tendo em vista a jurisprudência (artigo 5(1)).
Trata-se, portanto, de uma facilitação processual em benefício dos trabalhadores que se ativam nas plataformas, obrigando os legisladores dos Estados membros a introduzirem mecanismos processuais em que se presumam o vínculo empregatício.
Registre-se que se trata de uma presunção juris tantum, a qual pode ser refutada pelas plataformas, a quem incumbe o ônus de provar que a relação contratual em questão não é uma relação de emprego. Para tanto, as plataformas não poderão se basear apenas na redação do contrato e na descrição das tarefas e atividades do trabalhador, pois o Artigo 4 estabelece o princípio crucial da primazia dos fatos, com base na Recomendação 198 (2006) da Organização Internacional do Trabalho.
Gerenciamento algorítmico e os riscos aos direitos dos trabalhadores
Transpondo a aplicação desta norma para o Brasil, não se verifica, a bem da verdade, nenhuma inovação em comparação ao ordenamento jurídico pátrio, pois, admitida a prestação de serviços, ao negar o vínculo empregatício, a reclamada atrai para si o ônus da prova quanto à natureza jurídica diversa, fato impeditivo do direito vindicado. Ademais, o princípio da primazia da realidade sob a forma é um dos princípios basilares que regem o Direito do Trabalho, encontrando respaldo no artigo 9º da CLT, largamente utilizado em demandas trabalhistas que visam desvirtuar, impedir ou fraudar a aplicação da legislação celetista [4].
A segunda questão, a qual parece-me que está passando ao largo da discussão no Brasil, tanto nos projetos legislativos em tramitação, quanto na jurisprudência, de um modo geral, e que gostaria de aprofundar, é o gerenciamento algorítmico e os riscos aos direitos dos trabalhadores [5].
Se o capítulo II da diretiva ainda gira em torno da tradicional dicotomia entre trabalhadores autônomos e subordinados, as disposições sobre funções gerenciais automatizadas e direitos de dados (capítulo III) têm um escopo pessoal mais universal.
A Diretiva, nesse sentido, prevê uma série de direitos a todos os trabalhadores que se ativam na plataforma e são submetidos ao gerenciamento algorítmico, independentemente da classificação jurídica, ou seja, tanto a autônomos quanto a empregados.
Ao conceder tais direitos, a diretiva expande significativamente o escopo de aplicação dos direitos trabalhistas, avançando na reformulação dos paradigmas normativos que regem o direito do trabalho ao prever a aplicação da maioria dessas disposições a todas as pessoas que realizam trabalhos em plataformas, independentemente de sua situação contratual.
Isso reflete o desejo dos redatores de abordar as inadequadas limitações do Regulamento Geral de Proteção de Dados da UE (GDPR) às relações de trabalho, que incluem: (1) proibições totais do processamento de determinadas categorias de dados; (2) transparência robusta e direitos de explicação; e (iii) esquemas de envolvimento mais fortes para os representantes dos trabalhadores.
No que diz respeito às proibições totais (1), a diretiva traz a vedação do processamento de quaisquer dados pessoais relacionados ao estado emocional ou psicológico (Artigo 7(1)(a)) e dados relacionados a conversas privadas, incluindo trocas de mensagens com representantes sindicais (Artigo 7(1)(b)), e atividades realizadas com o objetivo de prever o exercício do direito fundamental de associação, o direito à negociação coletiva e o direito à informação e consulta (Artigo 7(1)(d)). Aplica, ainda, uma limitação temporal: nenhum dado pode ser coletado enquanto a pessoa que executa o trabalho na plataforma não estiver trabalhando ou procurando trabalho (Artigo 7(1)(c)).
Além disso, a diretiva recapitula e amplia as proibições previstas no GDPR (Artigo 9(2)) sobre o processamento de quaisquer dados pessoais para obter informações como origem racial ou étnica, status migratório, opiniões políticas, crenças religiosas ou filosóficas, deficiência, saúde, filiação sindical ou orientação sexual (Artigo 7(1)(e)), bem como o processamento de quaisquer dados biométricos para estabelecer a identidade de uma pessoa, como no caso de reconhecimento facial em práticas de login (Artigo 7(1)(f)).
A despeito do GDPR já prever tais vedações, mas permitindo exceções quando se trata da prerrogativa do controlador de dados de exercer certos direitos em uma relação de emprego, a Diretiva amplia o escopo ao especificar que essas proibições rigorosas se aplicam a sistemas que afetam pessoas que realizam trabalhos em plataformas digitais, independentemente do vínculo jurídico (Artigo 7(3)).
A diretiva também proíbe decisões que limitem, suspendam ou encerrem a relação contratual ou a conta, ou “qualquer outra decisão com efeito equivalente”, a menos que sejam tomadas por um ser humano (Artigo 10(5)), o que representa um avanço significativo em comparação com o GDPR, que permite exceções em virtude de uma cláusula de “necessidade contratual” (Artigo 22(2)).
Além disso, o GDPR deixa espaço para ambiguidade, pois não consegue capturar efetivamente os sistemas automatizado de decisões que combinam componentes automatizados e humanos (reais), o que foi superado pela diretiva (artigo 10), ao se referir da a “decisões tomadas ou apoiadas” por sistemas de gerenciamento algorítmico de maneira ampla.
A Diretiva também introduz uma proibição de sistemas automatizados que exerçam pressão indevida sobre os trabalhadores ou criem riscos à sua segurança e saúde física e mental (Artigo 12(3)). Neste caos, no entanto, essa restrição se aplica apenas àqueles que têm um vínculo empregatício com a plataforma digital de trabalho.
Fornecimento de informações
Quanto à transparência e direito de explicação (2), a diretiva prevê que as plataformas digitais de trabalho devem fornecer informações sobre o uso de monitoramento automatizado e práticas de tomada de decisão (artigo 9). Tal direito já se encontrava previsto em várias disposições do GDPR, mas com certa ambiguidade em relação a termos como “exclusivamente automatizado”, “intervenção humana significativa” e “afetando de forma semelhante e significativa os titulares dos dados”, o que mais uma vez ressalta a baixa adequação das normas existentes no ambiente de trabalho.
Nesse sentido, a diretiva assume uma posição clara ao se referir a todos os tipos de decisões apoiadas ou tomadas por sistema de decisões automatizadas, inclusive quando esses sistemas apoiam ou tomam decisões que não afetam de forma significativa as pessoas que realizam trabalho de plataforma.
Além disso, o escopo do direito à informação é tão amplo que inclui, além da mera notificação de adoção, as categorias de dados e ações monitoradas, supervisionadas ou avaliadas por esses sistemas, as categorias de decisões tomadas ou apoiadas por eles, os principais parâmetros e o peso relativo de cada parâmetro, estendendo, ainda, aos procedimentos de recrutamento ou seleção (Artigo 9(5)).
A Diretiva exige, ainda, que as plataformas justifiquem as decisões, devendo fornecer uma explicação para qualquer decisão tomada ou apoiada pelo gerenciamento algorítmico sem atrasos indevidos (Artigo 11(1)), de forma transparente e compreensível.
Isso abrange uma ampla gama de decisões que afetam a relação contratual, desde a suspensão ou rescisão da conta até a recusa de pagamento e mudanças no status do emprego. O direito de revisar e obter a retificação de tais decisões também está estabelecido (Artigo 11(2)(3)).
Por fim, e com base no GDPR, a diretiva introduz o direito a uma “interface humana” na forma de uma pessoa de contato com a competência, o treinamento e a autoridade necessários para discutir e esclarecer os fatos, as circunstâncias e os motivos que levaram a uma determinada decisão (Artigo 11(1)).
Prerrogativas
Por fim, no que diz respeito aos esquemas de envolvimento mais fortes para os representantes dos trabalhadores (3), os artigos 8 a 13 preveem prerrogativas importantes para os representantes dos trabalhadores e, de acordo com a natureza universalista dessas disposições, estendem seu exercício aos representantes dos trabalhadores autônomos.
No entanto, essa expansão inovadora dos direitos trabalhistas coletivos para além de seu escopo tradicional não está completa, pois certos direitos importantes permanecem acessíveis apenas àqueles em uma relação de emprego.
O Artigo 15 estipula que somente os trabalhadores em relação de emprego têm o direito de serem assistidos por representantes quanto ao monitoramento do impacto da gestão algorítmica sobre as condições de trabalho (Artigo 10(1)), de participar de avaliações de risco de segurança e saúde ocupacional (Artigo 12(2)) e de exercer direitos de informação e consulta sobre a introdução ou mudanças substanciais no uso de monitoramento e tomada de decisões automatizados (Artigo 13).
O artigo 20 determina, ainda, que as plataformas estabeleçam canais de comunicação nos quais todas as pessoas que realizam trabalhos em plataformas (independentemente de sua situação contratual) possam se comunicar de forma privada e segura e interagir com os representantes.
A dificuldade, quanto aos canais de comunicação, é que eles serão hospedados na infraestrutura digital das plataformas e estarão sujeitos às regras do GDPR.
Observa-se, dessa forma, que a diretiva traz grandes avanços, não só em relação ao enquadramento jurídico dos trabalhadores que se ativam em plataformas digitais de trabalho com a presunção legal da relação de emprego, mas ressalta, ainda, os riscos evidenciados aos trabalhadores submetidos ao gerenciamento algorítmico (GAIA), estabelecendo um rol de direitos que abrange, em sua grande maioria, os trabalhadores autônomos.
Além de introduzir novos direitos, a diretiva intervém para ajustar o escopo material e pessoal das estruturas jurídicas existentes, melhorando sua eficácia em relação ao contexto do trabalho em plataforma, revitalizando a estrutura de proteção de dados com medidas específicas para o emprego, trazendo salvaguardas de aplicação relativamente fortes e uma dimensão robusta de direitos coletivos.
Traz, dessa forma, auspícios sobre o que efetivamente está em jogo quando falamos em gestão algorítmica, estabelecendo um rol mínimo de direitos a se ter em vista quando se busca, efetivamente, a melhoria das condições de trabalho em plataformas digitais.
[1] Leading Case: RE 1446336, relator Min. Edson Fachin. Descrição: Recurso extraordinário em que se discute, à luz dos artigos 1º, IV; 5º, II, XIII; e 170, IV, da Constituição Federal, a possibilidade do reconhecimento de vínculo de emprego entre motorista de aplicativo de prestação de serviços de transporte e a empresa criadora e administradora da plataforma digital intermediadora. Disponível em: https://portal.stf.jus.br/jurisprudenciaRepercussao/verAndamentoProcesso.asp?incidente=6679823&numeroProcesso=1446336&classeProcesso=RE&numeroTema=1291 Acesso em 13.11.2024.
[2] Disponível em: https://eur-lex.europa.eu/eli/dir/2024/2831/oj. Acesso em 13.11.2024.
[3] O professor Valerio de Stefano diferencia duas principais formas de trabalho no contexto da “gig economy”: o “crowdwork” e o trabalho “on-demand” por meio de aplicativos. No crowdwork, as plataformas on-line colocam em contato diversas organizações e indivíduos entre si, por meio da internet, permitindo a aproximação de consumidores e trabalhadores de todo o mundo. Conectam oferta e demanda de produtos e serviços específicos para o atendimento da necessidade de clientes, que pagam pela execução das tarefas realizadas, que normalmente são micro tarefas extremamente fragmentadas, que normalmente não precisam de qualificação e são monótonas, mas não podem ser realizadas por computadores ou sistemas automatizados. O trabalho “on-demand”, por sua vez, é aquele prestado por meio de aplicativos, relacionando-se com a execução de trabalhos tradicionais, como transporte e limpeza, além de tarefas administrativas e de escritório. Os aplicativos garantem um padrão de qualidade mínimo na realização do trabalho, bem como selecionam e gerenciam a mão de obra. Prestador e consumidor são conectados em face de uma necessidade apresentada e o pagamento é feito pelo aplicativo após a finalização do trabalho (DE STEFANO, Valerio. The rise of the “just-in-time workforce”: On-demand work, crowdwork and labour protection in the “gig-economy”, Janeiro, 2016. Disponível em: https://www.ilo.org/travail/whatwedo/publications/WCMS_443267/lang–en/index.htm. Acesso em 27/02/2019).
[4] Essa questão foi amplamente analisada in: “Lavoro su piattaforme digitali, subordinazione algoritmica e presunzione di lavoro subordinato” in Rivista Lavoro e Previdenza Oggi. Giurisprudenza, Anno 2022, 9-10, 2 novembre 2022, p. 658-669. ISSN: 0390-251X”, quando da publicação do acórdão do acórdão da Terceira Turma do TST, Recurso de Revista nº 100353-02.2017.5.01.0066, publicada no DEJT em 11.04.2022, Relator Min. Mauricio Godinho Delgado.
[5] Esse tema foi objeto da pesquisa do Doutorado na Sapienza Università di Roma em cotutela com a USP, que resultou na publicação do livro “Inteligência artificial nas relações de trabalho” pela Editora Venturoli, em setembro de 2024 (Disponível em: https://editoraventuroli.com/produto/inteligencia-artificial-nas-relacoes-de-trabalho). O termo utilizado na Diretiva “sistemas automatizados de monitorização ou sistemas automatizados de tomada de decisões”, encontra-se referenciado no trabalho com o acrônimo GAIA, que significa gerenciamento algorítmico baseado em inteligência artificial.
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