Mark Hunt x UFC: a lesão não prevista na luta
17 de novembro de 2024, 16h13
Enquanto as duas ações coletivas contra o UFC, alegando que a promoção conspirou para manter os salários dos lutadores baixos, têm sido notícia ultimamente, um terceiro processo tem se arrastado lentamente pelos tribunais, passando despercebido pelo público em geral
Esse seria o processo do ex-peso-pesado do UFC Mark Hunt contra a promoção [1], que foi iniciado em 2017, indeferido em 2021, revivido em recurso e indeferido novamente, com Hunt condenado a pagar honorários advocatícios e custas judiciais ao UFC no ano passado.
Uma segunda decisão, reduzindo esses honorários e questionando por que o UFC estava exigindo US$ 20.000 a mais por testemunha especializada do que a lei permite, foi emitida em março deste ano. Está pendente ainda o julgamento de nova apelação de Hunt.
Vejamos a seguir como tudo começou.
Detalhes da ação judicial de Hunt
Apelidado de “The Super Samoan”, o neozelandês Mark Hunt processou o UFC, Dana White e seu oponente no UFC 200, Brock Lesnar, por uma série de violações. O processo tem origem em sua luta com Lesnar em julho de 2016. Lesnar estava retornando de uma ausência de cinco anos do octógono e foi colocado como uma atração para o UFC 200. Lesnar, que tinha contrato com a World Wrestling Entertainment na época, não foi incluído no grupo de lutadores ativos que podiam ser testados aleatoriamente, de acordo com a política antidoping do UFC.
Previa a política à época que um lutador aposentado e que retornasse à organização deveria ser colocado na lista ativa de lutadores que poderiam ser testados aleatoriamente. Caso fosse incluído, o nome de Lesnar teria sido divulgado ao público como um dos atletas que poderiam ser testados. Isso teria provocado grandes manchetes no mundo do MMA e da luta livre profissional com o retorno de um dos maiores atrativos de PPV da história do UFC.
Havia alguma ambiguidade na aplicação da política em relação aos lutadores que buscavam retornar ao status ativo. Como a Política Antidoping do UFC não começou até 1º de julho de 2015 e a última luta de Lesnar no UFC antes do UFC 200 foi em dezembro de 2011, ele foi considerado um novo atleta.
O UFC alegou que não poderia colocar Lesnar oficialmente no grupo de lutadores até que tivesse autorização de seu empregador, a WWE. No entanto, pode-se supor que Lesnar e o UFC contemplaram seu retorno, já que ele estava treinando antes do anúncio de junho de sua luta em julho de 2016.
Lesnar poderia ter notificado o UFC sobre seu retorno nos quatro meses necessários para permitir a realização dos testes adequados. No entanto, sob a desculpa de que ainda havia problemas que a Zuffa, empresa dona do UFC à época, precisava resolver com o WWE, ela alegou não poder colocar Lesnar oficialmente no grupo de testes.
Parece que as partes queriam que o anúncio de Lesnar fosse uma surpresa. O jornalista de MMA Ariel Helwani e outros do site de notícias de MMA MMA Fighting foram expulsos do UFC 199, um evento realizado em junho de 2016, e Helwani foi banido para o resto da vida de trabalhar em eventos do UFC devido à sua reportagem sobre o retorno de Lesnar antes da oportunidade do UFC divulgar isso por conta própria.[2] Helwani, juntamente com seus colegas, foi reintegrado alguns dias depois.
Os argumentos de Hunt
Controlando o samoano, conhecido por suas mãos pesadas, no solo, Lesnar venceu a luta por decisão unânime, mas dois testes positivos fizeram com que o resultado fosse alterado para um No Contest (sem resultado) e abriram as portas para que Hunt entrasse com uma ação judicial em 2017.
Em janeiro de 2017, Mark Hunt entrou com sua ação judicial no tribunal federal de Nevada, alegando que o UFC, Dana White e Brock Lesnar conspiraram para permitir que Lesnar lutasse contra Hunt enquanto usava drogas para melhorar o desempenho, que eram proibidas pela Política Antidoping do UFC.
A ação judicial alega que o UFC tinha um padrão de permitir que determinados lutadores participassem de eventos sabendo que estavam usando drogas para melhorar o desempenho, como esteroides anabolizantes, o que lhes dava uma vantagem sobre Hunt, que disse que não usava esteroides.
Essa foi a base para uma alegação de violação da RICO [3]. Além disso, Hunt processou o UFC e Lesnar com base em uma teoria de quebra de contrato, dever de boa fé e negociação justa e negligência. Posteriormente, ele emendou sua queixa para substituir a causa de ação de negligência por uma queixa de lesão corporal. Hunt alegou não estar sob contrato para enfrentar um oponente que estava usando substâncias proibidas e, como resultado, a luta foi um uso não autorizado/consentido da força por Lesnar contra Hunt.
A reivindicação de aplicação da RICO foi única, pois nunca uma ação judicial envolvendo atletas de MMA envolveu tal reivindicação contra o UFC. Além disso, as reivindicações pessoais contra o promotor e o lutador que ele enfrentou foram novidades no esporte.
Em setembro de 2017, Hunt escreveu um artigo [4] para um veículo de notícias relatando problemas de saúde que ele relacionou a anos de luta no MMA. Ele afirmou que não conseguia dormir e tinha a fala arrastada, o que ele atribui ao seu tempo de luta.
Após tomar conhecimento do artigo, o UFC retirou Hunt de uma luta programada na Austrália, alegando que a decisão de o retirar de um evento decorreu da preocupação com sua segurança. Dana White declarou que queria que Hunt fosse testado por um de seus médicos antes de permitir que ele voltasse ao octógono.
Por fim, Hunt foi autorizado a voltar ao UFC depois de ter sido medicamente liberado para lutar novamente.
A apelação de Hunt do caso está atualmente no Tribunal de Apelações do Nono Circuito. Um dos argumentos da apelação é que Dana White, CEO do UFC, cometeu perjúrio no depoimento prestado em 2022, quando declarou que não tinha conhecimento de que Brock Lesnar havia recebido uma isenção dos testes da USADA antes do UFC 200 em 2016.
Hunt também expressou sua frustração com a forma como a organização lida com os usuários de substâncias dopantes, afirmando que pediu repetidamente ao UFC para fazer algo a respeito quando enfrentou oponentes que falharam nos testes.
Hunt acredita ainda que a recente separação entre o UFC e a USADA, agência responsável pelo programa do antidoping do UFC naquela época, se deveu em parte ao seu processo judicial em andamento, que também se concentrou na agência. Ele afirma que a USADA estava “no bolso deles” e que as duas organizações estavam “conspirando contra” ele.
Hunt vs. Lesnar: as lesões ‘intencionais’ na luta
As reivindicações contra o oponente de Hunt, Brock Lesnar, são únicas, pois a visão pragmática era de que Hunt assinou um acordo de luta contra Lesnar e sabia que isso significaria a possibilidade clara de lesão física. Porém, sua alegação foi de que ele não sabia que Lesnar havia tomado drogas para melhorar o desempenho.
Em sua ação judicial, Hunt entrou com um pedido de indenização por negligência contra Lesnar por lesões físicas sofridas em sua luta no UFC 200. Em seguida, ele alterou essa alegação para um delito intencional de lesão corporal. Hunt alega que Lesnar tinha a intenção de causar contato prejudicial e ofensivo a Hunt sem o consentimento de Hunt para uma luta com “um competidor dopado”. Lesnar aplicou 137 golpes totais em Hunt e 51 golpes significativos na luta do UFC 200 [5].
Lesnar afirmou que Hunt consentiu com a luta e assumiu o risco quando entrou na disputa. Como Lesnar aponta, Hunt assinou um acordo promocional que contém uma cláusula expressa e amplamente redigida de assunção de risco [6] e renúncia a todas as reivindicações decorrentes do esporte inerentemente perigoso do MMA. Como parte de seu acordo de luta para enfrentar Lesnar no UFC 200, Hunt teria, segundo Lesnar, concordado expressamente com uma assunção de risco semelhante e com disposições de renúncia.
No Brasil, a teoria do risco assumido (assumption of risk) vem sendo considerada como excludente de responsabilidade. Corbacho (2014) assim define a teoria do risco assumido:
“1 A teoria do risco assumido ou risco permitido
Segundo esta teoria, o fundamento da impunidade baseia-se no consentimento assumido explicita ou presumidamente pelos esportistas, que não será, normalmente, um consentimento em ser lesionado, na lesão concreta sofrida, senão no risco de que a lesão se produza, na colocação em perigo de um bem jurídico, a integridade corporal, disponível desde que se observem minimamente as regras do jogo ou lex artis. Não obstante, a doutrina sempre utilizou o consentimento para justificar suas propostas, e o fez desde uma dupla perspectiva: de um lado, entendendo que o consentimento atua como causa de justificação, e, de outro lado, como casa de exclusão da tipicidade. Assim, Jescheck refere-se ao consentimento como causa de justificação, contudo também como causa de exclusão da tipicidade, enfatizando o risco permitido. Segundo este penalista, o consentimento conduz a um direito no qual a prática do esporte cria o risco ou a lesão que as atividades esportivas implicam, de modo que o esportista aceita o risco do acidente ou da lesão corporal; no entanto, exclui o valor do consentimento nos casos de violação, dolosa ou com negligência grave, das regras do jogo. No mesmo sentido, há quem entenda que a chave para justificar a impunidade das lesões esportivas reside, sem mais delongas, no consentimento do sujeito, baseando-se na afirmação da relevância da anuência nas lesões, entendendo que o consentimento opera como causa de exclusão da tipicidade, pois invoca a impunidade destas quando causadas na prática esportiva. Um setor da doutrina também alude à circunstância do art. 155 do Código Penal de 1995 ao significar que, por mais que se utilize o consentimento, ele atenua, mas jamais exime a responsabilidade penal, pois não é possível que se trate de uma questão que se resolva de modo maniqueísta, isto é, na simples constatação de uma situação ser ou não punível, senão que ainda quando exista o consentimento, na ação antiesportiva se reduzirá a pena em um ou dois graus tal como prevê o artigo aludido, mas em nenhum caso será possível excluir a responsabilidade total de tal ação; assim, dizer que a lesão ou colocação em perigo de bens jurídico-penalmente protegidos neste campo só deixa de ser antijurídica quando exista consentimento do titular do bem jurídico disponível em dita lesão ou colocação em perigo tem uma implicação evidente; o consentimento tem de ser provado no caso concreto; nos casos nos quais se possa demonstrar que não existia tal consentimento, a conduta será em princípio contrária ao Direito, ainda que o problema não só será prová-lo, já que cabe também quando se trata de um consentimento tácito em virtude de atos concludentes, além de problemas de erro” [7]. (grifo do articulista)
Conforme exposto, a doutrina jurídica sustenta que os participantes de esportes assumem os riscos de seu esporte, e aqueles que aceitaram voluntariamente os riscos conhecidos e apreciados associados à participação na atividade estão impedidos de pedir ressarcimento de lesões resultantes de uma atividade quando se machucam enquanto participam da atividade recreativa, mas ela não garante a impunidade a quem fira as regras do jogo, como ocorreu no caso de Hunt.
Mohamadinejad et al. (2012) também leciona que a teoria da assunção do risco não desassiste os praticantes em relação a pedidos de indenização por lesões:
“No entanto, a doutrina da assunção primária de riscos não protegerá o réu em todos os casos em que o autor estiver envolvido em uma atividade esportiva ou recreativa. A regra geral no atletismo é que os participantes aceitam os riscos normais e razoáveis das atividades e os golpes e colisões comuns incidentais ao jogo do qual participam (Wong 2010, Citron & Ableman 2003, Fast 2004). A doutrina da suposição de risco, portanto, não inclui incidentes anormais e de maneira não razoável (Citron & Ableman 2003, Wong 2010, Bernardi 2009) e acidentes causados por supervisão inadequada ou quando o réu negligentemente ocultou ou aumentou os riscos inerentes à atividade (Mandell & Dozis 2010). Lesões gerais causadas por negligência, imprudência, riscos que o participante desconhece (Wong 2010), violência indevida (Healey 2005), ações que são deliberada e desnecessariamente prejudiciais (Fast 2004, Citron & Ableman 2003); ou quando o atleta estava sob qualquer compulsão para participar não são cobertas por essa doutrina (Schot 2005)” [8]. (tradução e grifos do articulista)
Há poucos casos no esporte em que os atletas processam uns aos outros. Dois desses casos ocorreram na NHL [9] e na NFL [10]. Ambos os casos questionam a teoria de assumir o risco com base nas ações extraordinárias dos réus.
Considerações finais
O caso é uma das situações verdadeiramente únicas no MMA, já que Hunt manteve seu relacionamento contratual com o UFC (e notavelmente era um dos lutadores mais bem pagos da promoção) durante uma disputa legal em andamento.
O processo de Mark Hunt contra o UFC por causa de Brock Lesnar, doping e consentimento é o mais próximo de um caso de lesão pessoal que já vimos contra um evento de luta. O julgamento da apelação está marcado para este mês, com transmissão ao vivo [11].
[1] MARK HUNT V. ZUFFA, LLC, No. 19-17529 (9th Cir. 2021)
[2] https://bleacherreport.com/articles/2644718-ufc-lifts-credential-ban-placed-on-mma-writer-ariel-helwani.
[3] A Racketeer Influenced and Corrupt Organizations Act (RICO), de 1970, tem o objetivo de acabar com organizações criminosas. Antes da promulgação da Lei RICO, os promotores só tinham a capacidade de julgar individualmente crimes relacionados à máfia. Um membro diferente da máfia poderia ser processado por um determinado crime, mas os promotores não podiam derrubar toda a organização criminosa de uma só vez. A Lei RICO deu aos promotores a capacidade de fazer isso. Entretanto, agora os promotores não usam a RICO apenas em processos contra a máfia, mas também utilizam a lei para processar tudo, de gangues de rua a políticos.
[4] https://www.mmafighting.com/2017/9/14/16305892/morning-report-mark-hunt-if-i-die-fighting-thats-fine-i-just-hope-its-in-an-honest-competition.
[5] https://sports-statistics.com/ufc/ufc-fight-statistics/ufc-200-tate-vs-nunes/brock-lesnar-v-mark-hunt/.
[6] Mais em: COSTA, Elthon José Gusmão da; BAALBAKI, Renata Campos Falcão. A ASSUNÇÃO DO RISCO E OS CONTRATOS NOS ESPORTES DE COMBATE, p. 31. In: BAALBAKI, Renata Falcão Campos; PEIXOTO, Márcia (org.). Além das Linhas: O direito desportivo e o mundo do esporte. Rio de Janeiro: Processo, 2024. p. 27-41.
[7] REFLEXÕES SOBRE O TRATAMENTO JURÍDICO-PENAL DAS LESÕES NO ESPORTE. CORBACHO, José Manuel Rios, p. 447-466 in BEM, Leonardo Schimitt de et al, (coord.). Direito desportivo e conexões com o direito penal. 1ª. ed. Curitiba: Juruá, 2014, p. 453-454.
[8] MOHAMADINEJAD, Azadeh et al. Assumption of Risk and Consent Doctrine in Sport. PHYSICAL CULTURE AND SPORT, STUDIES AND RESEARCH, v. LV, p. 30-38, 2012. DOI 10.2478/v10141-012-0012-5. Disponível em: https://intapi.sciendo.com/pdf/10.2478/v10141-012-0012-5. Acesso em: 10 nov. 2024.
[9] Moore v. Bertuzzi, 2014 ONSC 1318.
[10] Williams v. Romanowski, No. 2:2014cv10951 – Document 4 (E.D. Mich. 2014).
[11] 23-3113 Mark Hunt v. Zuffa LLC, et al. Oral Argument on Wednesday, November 20, 2024 – 1:00 P.M. – Courtroom 1 – Scheduled Location: Pasadena CA Inbox. Link: https://www.youtube.com/@9thCircuit.
Encontrou um erro? Avise nossa equipe!