O Direito é Público

Uma análise sobre a inconstitucionalidade das bets

Autor

  • é advogada mestre em Direito Público pelo Centro Universitário de Brasília (UniCeub) especialista pela Fundação Escola Nacional do Ministério Público do Distrito Federal e Territórios (FESMPDFT) certificada em Liderança e Negociação pela Universidade de Harvard especialista em Direito e Economia pela Universidade de Chicago (Uchicago) estudante visitante na New York University (NYU) e coordenadora da Escola Nacional da Magistratura (ENM).

    Ver todos os posts

16 de novembro de 2024, 14h02

O mundo mudou, não há como ignorar este fato. Cabe ao Direito acompanhar as oscilações da realidade de forma estratégica, eficiente e célere tanto quanto possível, especialmente quando se trata do surgimento de novos direitos fundamentais e da consequente demanda por proteção por parte do Estado. Esses desafios podem descrever a controvérsia que envolve as chamadas bets.

A nova era digital trouxe consigo diversas inovações que refletiram no modo como as pessoas exercem sua cidadania, socializam-se, comunicam-se, regem seus negócios e firmam suas relações de trabalho. A internet, ainda, ocasionou o surgimento de novas profissões e novos modos de se realizar transações econômicas. É o que ocorreu com a modalidade lotérica de aposta de quota fixa, as denominadas “bets”.

Como toda mudança significativa com impacto nas relações sociais, políticas e econômicas, essas inovações exigem regulamentação estatal que respeite os princípios constitucionais da livre iniciativa e do valor social do trabalho. A regulação é necessária para garantir a proteção dos direitos fundamentais, ao mesmo tempo em que promove a liberdade econômica e o desenvolvimento nacional equilibrado.

O Supremo Tribunal Federal, no julgamento da ADI 4.986 e da ADPF nº 492 e 493, definiu que a União possui competência privativa para legislar sobre sorteios, mas a exploração da atividade pode ser realizada pelos Estados.

Em 2018 foi promulgada a Lei nº 13.756/2018 que trata da exploração da atividade de apostas de quota fixa, “bets”. Posteriormente, procedeu-se à edição do Novo Marco Regulatório das Apostas de Quota Fixa, a Lei nº 14.790/21023 (Lei das Bets), a qual, de forma mais específica, buscou sanar as lacunas deixadas pela norma anterior.

O referido marco regulatório suscitou questionamentos sobre sua constitucionalidade, especialmente devido aos possíveis impactos da publicidade de apostas sobre a saúde mental da população, particularmente de crianças e adolescentes, e sobre os orçamentos familiares, com destaque para beneficiários de programas sociais.

Para tanto, o Supremo Tribunal Federal foi provocado a discutir e a se manifestar acerca do assunto no âmbito da ADI 7.721, ajuizada pela Confederação Nacional do Comércio de Bens, Serviços e Turismo, bem como da ADI 7.723, pelo Partido Solidariedade.

A ADI 7.721 insurgiu-se em face da integralidade da Lei nº 14.790/2023, com fundamento na violação aos artigos 1º, inciso IV, 170, caput, 174, caput, 196, 227, caput, todos da Constituição Federal:

Em sede de medida cautelar, requereu-se, com base no artigo 10 da Lei nº 9.868/1999, a suspensão da eficácia da Lei nº 14.790/2023. Aduziu-se a presença dos requisitos para sua concessão, haja vista as evidências dos imediatos, relevantes e deletérios impactos em curso, decorrentes da proteção insuficiente, o que comprovaria o fumus boni iuris, bem como o periculum in mora, em razão do provável agravamento do cenário pela inaplicação de normas já editadas em relação aos níveis de endividamento e os impactos na saúde mental dos apostadores e de seus familiares.

No mérito, os principais argumentos da referida ação alegam o seguinte: (1) “a Lei nº 14.790, de 29 de dezembro de 2023, contribui de forma considerável para o endividamento das famílias, o que viola os princípios constitucionais fundamentais do valor social do trabalho e da livre iniciativa, ambos consubstanciados no art. 1.º, inciso IV, da Constituição Federal”; (2) “há ausência de regulamentação, como políticas e regras bem definidas quanto à prevenção e ao combate ao jogo compulsivo, com vistas a evitar o superendividamento das famílias, especialmente aquelas em situação de vulnerabilidade socioeconômica. Tal fato concorre para a instabilidade econômica e, consequentemente, atrasa o desenvolvimento nacional”; (3) “a Lei, ao deixar de criar ferramentas e políticas mais efetivas de combate e prevenção à prática compulsiva do jogo, expõe os apostadores aos efeitos maléficos causados pelo transtorno do jogo patológico, bem como viola o art. 196, da Constituição Federal de 1988”; (4) “embora haja regras restritivas de publicidade e divulgação, não são suficientes para impedir o acesso de crianças e adolescentes ao jogo de apostas online, hipótese que viola o disposto no art. 227, caput, da CF/88 e acaba por negligenciar seu acesso à vida digna, à saúde física e social, representando manifesta violação ao art. 196, da Constituição Federal de 1988”.

A ADI 7.723 pugnou pela inconstitucionalidade da referida lei, por violação aos preceitos constitucionais contidos no artigo 1º, III e IV da CF, artigo 170, caput, IV e parágrafo único do artigo 174, caput, da CF e nos artigos 6º, 196 e 197, todos da Constituição.

Em sede de medida cautelar, requereu-se a suspensão da eficácia dos artigos contidos na Lei nº 14.790/23, presentes os requisitos do fumus boni iuris e do periculum in mora. No mérito, alegou-se a violação aos seguintes preceitos constitucionais: (1) proteção à dignidade da pessoa humana; (2) proteção ao valor social do trabalho e à livre iniciativa; (3) funções normativa, fiscalizatória, reguladora e de incentivo do Estado na economia, como meio para alcançar o desenvolvimento nacional equilibrado; e (4) direito à saúde

A audiência sobre o tema e os dados obtidos

O ministro relator convocou a realização de audiência pública com vistas a promover o amplo debate acerca da questão, por meio da participação de membros da sociedade civil relativos aos seguintes temas: a) questões técnicas associadas à saúde mental e aos impactos neurológicos da prática das apostas sobre o comportamento humano; b) os efeitos econômicos para o comércio e seus efeitos na economia doméstica; c) as consequências sociais desse novo marco regulatório; d) o uso das plataformas de apostas para lavagem de dinheiro e demais crimes; e) tributação e extrafiscalidade no setor de apostas; f) transparência das plataformas de apostas; g) publicidade e instrumentos de gameficação no setor de apostas; h) direitos patrimoniais dos apostadores.

Dentre as diversas informações obtidas por meio da audiência pública, destacam-se os dados numéricos dos gastos com bets.  Extrai-se que o Banco Central publicou um levantamento que revelou que beneficiários do Bolsa Família gastaram R$ 3 bilhões com bets, somente via Pix, em agosto deste ano de 2024.

Marcela Bocayuva, advogada

O estudo desenvolvido pela área econômica da Confederação Nacional de Comércio de Bens, Serviços e Turismo – CNC estima que, no período de junho de 2023 e julho de 2024, os consumidores gastaram cerca de R$ 68,2 bilhões em bets, representando 0,62% do PIB e 0,95% do consumo nacional. A entidade também ressalta que as apostas online foram a causa da inadimplência de cerca de 1,3 milhão de brasileiros e conclui que o elevado comprometimento de renda com apostas pode reduzir em até 11,2% a atividade varejista, o que resultaria em uma perda de R$ 117 bilhões no faturamento anual do setor.

Por fim, de acordo com pesquisa divulgada pelo Itaú, apostadores enviaram R$ 68,2 bilhões às apostas e outros sites de jogos de julho de 2023 a junho de 2024.

A portaria do Ministério da Fazenda e o reconhecimento do estado de proteção insuficiente

Ao analisar a possibilidade de concessão da medida cautelar, o ministro relator Luiz Fux não identificou, a uma primeira vista, inconstitucionalidades de natureza formal na norma atacada. No entanto, há que se atentar para que, além da regularidade formal, materialmente a norma não contrarie a Constituição.

Assim, destacou que a Portaria SPA/MF nº 1.231, de 31 de julho de 2024, de competência do Ministério da Fazenda, entrou em vigor na data de sua publicação. Esse ato normativo regulamenta a modalidade de atividade para o jogo responsável e para as ações de comunicação, de publicidade e propaganda e de marketing, e fixa diretrizes com base nos direitos e deveres de apostadores e de agentes operadores, a serem observados na exploração comercial da modalidade lotérica de apostas de quota fixa.

À luz das regras e diretrizes de fiscalização, monitoramento e sanção pelo descumprimento da referida portaria, tais disposições serão implementadas somente em 1º de janeiro de 2025 pela Secretaria de Prêmios e Apostas. Isso porque o parágrafo único do artigo 9º da Lei nº 14.790/2023 prevê o prazo mínimo de seis meses para adequação após a edição da norma por parte do Ministério da Fazenda.

Em razão dessa problemática, até janeiro de 2025, a prescrição da norma, no que tange aos procedimentos de fiscalização, monitoramento e sanção, restará sem efeitos, quando a realidade concreta aponta para uma urgência em regulamentação. Tal situação levou o ministro a reconhecer um estado de proteção insuficiente, com efeitos imediatos deletérios, sobretudo em crianças, adolescentes e nos orçamentos familiares de beneficiários de programas assistenciais.

Já o ministro Gilmar Mendes destacou que “o fenômeno da inconstitucionalidade não ocorre tão somente em hipóteses de excessos do legislador, ao contrário, igualmente se configura em casos de proteção insuficiente”. Por isso, demonstra-se necessário “melhor desenvolver a regulação estatal, inclusive, para mitigar e, eventualmente, punir os responsáveis por manipulações e fraudes perpetradas”.

Insuficiência da legislação

O debate em torno da legalização e regulamentação das apostas no Brasil é extenso e enfrenta desafios relacionados à tributação, fiscalização e à promoção de políticas públicas que visam mitigar os impactos sociais negativos.

Concluiu-se, portanto, presentes os requisitos para a concessão da medida cautelar, uma vez que o cenário descrito configura manifesto periculum in mora e, portanto, deve ser resolvido com celeridade e urgência. Frisou-se, ainda, que caso não seja afastada a situação de risco, as demais prescrições da Lei nº 14.790/2025 serão consideradas inaplicáveis, o que acabará agravando o quadro crítico atual, que não pode existir sem que haja uma regulamentação legal, sob pena de prejudicar ainda mais os cidadãos.

No que se refere ao fumus boni iuris, o relator concluiu que as manifestações realizadas pelos diferentes atores na audiência pública apresentaram evidências dos relevantes e deletérios impactos atualmente em curso (1) da publicidade de apostas na saúde mental de crianças e adolescentes, e (2) das apostas nos orçamentos familiares, particularmente de pessoas beneficiárias de programas sociais e assistenciais.

No mesmo sentido foi a manifestação do PGR: “a legislação é insuficiente para proteger direitos fundamentais dos consumidores, em face do caráter predatório que o mercado de apostas virtuais ostenta”.

À luz das discussões, compreendeu-se que a legislação das “bets” é nociva aos princípios da ordem econômica, da unidade familiar e do dever de proteção por parte do Estado, além de violar os direitos sociais à saúde e à alimentação, direitos do consumidor, de propriedade, da criança e do adolescente, do idoso e da pessoa com deficiência.

Há que se notar que ainda há omissão quanto à exigência constitucional de outorga de serviços públicos por concessão ou permissão, mediante licitação. Além de violar as restrições constitucionais à propaganda de produtos de alto risco para a saúde.

A busca por equilíbrio

O novo mercado de apostas na modalidade virtual surgiu no mundo dos fatos e, portanto, pendente de regulamentação formal, especialmente quanto à proteção dos usuários do serviço e do mercado nacional.

A criação da Lei nº 14.790/2023 teve o intuito de reduzir os impactos sociais negativos do novo mercado, porém, entende-se ser urgente que as medidas de fiscalização e sanção tenham aplicação imediata.

O debate sobre a legalização e regulamentação das apostas no Brasil é amplo e permeado por desafios que envolvem questões como tributação, fiscalização e a necessidade de políticas públicas capazes de minimizar os impactos sociais negativos. Apesar da complexidade, há possibilidade de se equilibrar os interesses estratégicos do setor de apostas com a proteção dos consumidores, especialmente das populações mais vulneráveis (sobre o tema, leia aqui artigo da pesquisadora Andréa Magalhães).

Tais perspectivas ressaltam que uma abordagem regulatória eficaz deve priorizar tanto a preservação da saúde mental dos cidadãos quanto a integridade do mercado, garantindo que as apostas sejam conduzidas de maneira responsável e alinhadas aos princípios constitucionais de proteção social e econômica.

A proteção de direitos fundamentais dos consumidores, especialmente dos núcleos mais vulneráveis da sociedade não pode esperar. Assim, a declaração de inconstitucionalidade integral da lei não se mostra adequada, dado o imperativo de regulação desse mercado.

É imprescindível a imposição de mecanismos rigorosos de controle e fiscalização, aliados ao combate a práticas como a lavagem de dinheiro e a atuação de organizações criminosas. Deve-se ainda investir em políticas públicas educativas que promovam o uso consciente e responsável das apostas online, valendo-se de boas práticas e do arcabouço regulatório já existente no país.

 

Autores

  • é advogada, mestre em Direito Público pelo Centro Universitário de Brasília (UniCeub), especialista pela Fundação Escola Nacional do Ministério Público do Distrito Federal e Territórios (FESMPDFT), certificada em Liderança e Negociação pela Universidade de Harvard, especialista em Direito e Economia pela Universidade de Chicago (Uchicago), estudante visitante na New York University (NYU) e coordenadora da Escola Nacional da Magistratura (ENM).

Tags:   

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!