Ambiente Jurídico

Há um papel eficaz para o licenciamento ambiental na mitigação dos efeitos das mudanças climáticas?

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  • é secretária de Estado de Meio Ambiente de Goiás procuradora federal junto à Advocacia Geral da União (AGU) advogada mestre em Direito Sócio Econômico pela PUC-PR professora de Direito Ambiental pós-graduada em Direito Sistêmico pela Hellinger Schulle e autora do livro Instrumentos de Promoção Ambiental e o Dever de Indenizar Atribuído ao Estado.

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16 de novembro de 2024, 11h31

Os eventos climáticos extremos registrados em todo o planeta e também no Brasil, afetado grandemente por estresses hídricos e incêndios, têm acelerado um senso de urgência nacional sobre a proposição de planos e ações voltados à mitigação e adaptação às mudanças do clima.

A Política Nacional sobre Mudança do Clima (PNMC), instituída pela Lei nº 12.187 de 2009, criou as bases estruturantes das ações voltadas à implementação de políticas públicas voltadas a fazer o enfrentamento desse que se apresenta como um dos problemas mais desafiadores a nível global.

O texto da PNMC estabelece que todos têm o dever de atuar para mitigar impactos decorrentes das interferências antrópicas sobre o sistema climático. Logo, imediatamente se traz a questão acerca da implementação de instrumentos de comando e controle, como é o caso do licenciamento ambiental, como caminho de solução para o atingimento da finalidade precípua voltada à redução do aquecimento global, a qual não se pode perder vista quando se está a tratar de controle estatal.

É dizer que somente se justificaria a adoção do instrumento de comando e controle – licenciamento ambiental – se ele se mostrasse eficaz para o resultado prático consistente na redução do aquecimento global.

O próprio texto da PNMC suscita essa avaliação sobre o controle de atividades que emitem os chamados gases de efeito estufa quando estabelece como obrigação a adoção de ações voltadas a “medidas para prever, evitar ou minimizar as causas identificadas da mudança climática com origem antrópica no território nacional, sobre as quais haja razoável consenso por parte dos meios científicos e técnicos ocupados no estudo dos fenômenos envolvidos” (artigo 3º II).

Logo, se as causas do aquecimento global são as emissões dos gases (GEE), o sujeito que emite são empreendimentos e atividades e as consequências têm se mostrado adversas, parece óbvio e direto o raciocínio de que caberia a adoção do licenciamento ambiental como ferramenta apta para alcançar a mitigação dos efeitos adversos decorrentes das atividades humanas sobre o sistema climático.

Entretanto, o que pode parecer algo relativamente óbvio está a exigir uma reflexão mais profunda.

Nexo de causalidade

A primeira pergunta a se fazer é: o licenciamento ambiental é capaz de controlar os efeitos adversos sobre as mudanças do clima provocadas pela emissão de gases de efeito estufa de fontes individuais?  Somente uma resposta positiva a esse questionamento seria capaz de justificar a adoção do poder de polícia estatal sobre os particulares por meio do licenciamento.

E é aqui que entra uma questão sensível em matéria climática que consiste em caracterizar o nexo de causalidade entre a fonte individual emissora dos gases de efeito estufa e os efeitos adversos para o clima.

Lembre-se que o licenciamento ambiental, tal qual formatado na legislação nacional e a praxe histórica, é um instrumento de controle de atividades e empreendimentos pontuais, individuais, sob responsabilidade de um empreendedor. Desde sempre tem sido um desafio, quase insuperável, o licenciamento ambiental tratar de impactos sinérgicos e cumulativos exatamente porque sua formatação processual analisa os impactos ambientais decorrentes de uma fonte específica sob responsabilidade de um agente individual que é o sujeito ativo do pedido de licenciamento ambiental.

No que diz respeito, portanto, ao nexo de causalidade entre fontes individuais de emissões mudanças climáticas, o desafio essencial está na natureza difusa dos GEE na atmosfera e à multiplicidade de fontes e fatores (circulação atmosférica e oceânica, ciclos biogeoquímicos, interações entre correntes marítimas, nuvens, temperatura, evapotranspiração, relações entre a terra e a atmosfera, dentre tantos outros) que contribuem para as alterações adversas nos sistemas climáticos.

Assim, embora os relatórios do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC) indiquem um consenso generalizado de que as atividades humanas são a principal causa do aquecimento observado, não há demonstração científica capaz de atribuir eventos climáticos a uma fonte particular de emissões.

Spacca

Nesse sentido, é sensível o fato de que a legislação e os instrumentos de controle ambiental estabelecem o princípio do nexo de causalidade entre a atividade/empreendimento e o resultado adverso provocado no meio ambiente.

A Lei 6.938/81, que trata da Política Nacional do Meio Ambiente, em seu artigo 4º, inciso VII, ao estabelecer o princípio do poluidor-pagador, dispõe que haverá a “imposição, ao poluidor, da obrigação de recuperar e/ou indenizar os danos causados” deixando claro que deve haver a correlação direta de causa de efeito para que obrigações sejam estabelecidas.

Da mesma forma, o artigo 3º da Lei 6.938/81 que define o conceito de poluição também suscita a ideia de que a poluição é uma ação – direta ou indireta – de atividades que possam causar a degradação da qualidade ambiental, conectando, desta feita, uma relação de causa e efeito.

Nesta esteira, a mesma lei estabeleceu, em seu artigo 10, o licenciamento ambiental como um instrumento por meio do qual a “construção, instalação, ampliação e funcionamento de estabelecimentos e atividades utilizadores de recursos ambientais, efetiva ou potencialmente poluidores ou capazes, sob qualquer forma, de causar degradação ambiental dependerão de prévio licenciamento ambiental”.

Como se observa, o instrumento do licenciamento ambiental é um instrumento de controle de impactos ambientais de fonte individual – o empreendimento – que afere a relação de causa e efeito e conexão entre a atividade realizada e o efeito adverso ou perda da qualidade ambiental. Para que tal aferição seja possível são necessários estudos ambientais que possam mensurar e dimensionar a magnitude dos impactos ambientais provocados pela atividade realizada para que se avalie a sua viabilidade ambiental, o que pode ser alcançado por meio de medidas de mitigação ou compensação.

Dificuldade de aferição

Em se tratando da emissão de gases de efeito estufa como uma atividade capaz de causar degradação ambiental ao provocar efeitos adversos ao clima, contudo, estar-se-á diante de uma dificuldade técnico-científica consistente. Isso porque, embora seja fato que as metodologias para o cálculo das emissões estejam bastante avançadas em quase todos os setores das atividades humanas, havendo inclusive normas ABNT tratando do assunto, como a NBR ISO 14064-1 que especifica como quantificar e notificar as emissões e remoções de gases de efeito estufa, é fato que isso, por si só, não determina o efeito adverso local e pontual provocado por essas emissões de fontes individuais.

Se sabe quanto a atividade emite, mas não se conhece o que ela provoca quando individualmente considerada.

Em outras palavras, restaria a questão em aberto acerca da real contribuição de determinada fonte emissora de GEE para os efeitos adversos ao clima, o que conectaria a legitimidade da ação estatal no controle dos resultados e efeitos.

Quanto, por exemplo, uma indústria petroquímica situada em determinada localidade estaria contribuindo para efeitos para o aquecimento global e como consequência, para as secas severas, chuvas intensas, segurança hídrica ou alimentar, deslizamentos de terras, etc? Quanto de GEE poderia ser emitir em condições seguras?

A complexidade da correlação de causa efeito direta entre o empreendimento e as alterações climáticas é certamente algo difícil, senão impossível, de se configurar. Observe-se que mesmo que se somassem todas as emissões provocadas pelo Brasil, ainda assim não se teria um quadro claro quanto aos efeitos diretos ou indiretos sobre o clima, cujas alterações são perceptíveis quando se considera a realidade global e não local.

Logo, ainda que se freasse as emissões de GEE de todos os empreendimentos situados em território nacional, utilizando o licenciamento ambiental como ferramenta de controle, não necessariamente haveria impactos ou resultados positivos sobre a redução do aquecimento global e dos eventos climáticos extremos.

Fenômeno global

O chamado net zero brasileiro, embora seja desejável, pode ser insignificante se não houver um esforço em igual proporção dos maiores emissores globais como China, Estados Unidos, União Europeia, Índia e Russia. Isso porque a contribuição do Brasil equivale a 2 ou 3% das emissões mundiais.

Os relatórios do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC) enfatizam que as mudanças climáticas são um fenômeno global, resultante das ações coletivas de diferentes nações e setores econômicos ao redor do mundo. As mudanças climáticas têm efeitos planetários que não respeitam fronteiras nacionais. Fenômenos como o aumento do nível do mar, alterações nos padrões de precipitação e eventos climáticos extremos resultam de mudanças na composição atmosférica global e afetam múltiplas regiões, independentemente de onde as emissões ocorrem. Isso destaca a necessidade de uma resposta global coordenada.

Ademais, a maior parte das emissões brasileiras são reconhecidamente oriundas das mudanças do uso da terra decorrentes do desmatamento e queimadas, ocorridos notadamente por fontes clandestinas e ilegais, portanto, que não passam pelo licenciamento ambiental.

Assim, a inserção da contribuição individual das emissões de GEE, no controle via licenciamento ambiental, por meio de exigências como inventários de emissões, alterações tecnológicas, uso de energia limpa, sumidouros de GEE e outras alternativas de mitigação, tanto quanto compensações pela via do sequestro de carbono, deve necessariamente avaliar a efetividade e o resultado prático dessas medidas ante o cenário desse desafio climático que é absolutamente difuso e global.

Abordagem integrada

Tudo isso para dizer que o licenciamento ambiental, considerando a realidade brasileira e a sua inserção no cenário mundial na relação entre emissões de GEE e mudanças do clima, parece indicar que o controle pontual e individual das atividades econômicas, por meio do licenciamento ambiental, não parece ser, na altura dos acontecimentos, a alternativa mais adequada, no atual estágio de enfrentamento dessa matéria a nível global, em que se observa ainda, uma grande resistência dos maiores países emissores em efetuarem um caminho direto e objetivo em direção ao net zero.

Há um conjunto de esforços anteriores, previstos inclusive na Lei nº 12.187, de 2009 (PNMC) que são progressivos e devem caminhar em articulação com os esforços globais que se deem no mesmo sentido. Não é a toa que a PNMC estabelece a avaliação de impactos ambientais sobre o microclima e o macroclima (artigo 6º, XVIII) como o último instrumento de uma extensa lista de ações, dentre as quais se pode citar o Plano Nacional sobre Mudança do Clima, planos de ação para prevenir o desmatamento, medidas fiscais e tributárias incentivadoras, linhas de crédito específicas, desenvolvimento de pesquisas e alocações orçamentárias para ações climáticas, mecanismos financeiros, estímulo ao desenvolvimento de tecnologias para redução de emissões, dentre tantos outros.

Tudo a indicar que há um conjunto de esforços a serem realizados para colocar esse tema da contribuição brasileira para os efeitos climáticos adversos num lugar razoável,  equilibrado, justo e eficaz.

Parece que há desafios anteriores, mais eficazes e de maior escala que devem acontecer em primeiro lugar, tais como os citados mecanismos financeiros e econômicos, controle efetivo do desmatamento ilegal e das queimadas e um fomento aos avanços tecnológicos e de pesquisas, articulados com os avanços globais. O controle pontual de atividades e empreendimentos, que possa se dar pela via do licenciamento ambiental, deve vir depois de tudo isso, quando se apresente a necessidade de um ajuste fino decorrente das contribuições nacionais.

Antes disso parece que poderá haver uma precipitação, um gasto dispendioso de energia e custos envolvidos no controle pontual das emissões que, ao fim e a cabo, não contribuam efetivamente para a redução do aquecimento e a mitigação dos efeitos adversos ao clima.

Nesse ponto, a questão trazida sobre a aplicabilidade do licenciamento ambiental sobre o controle de emissões, do ponto vista jurídico, deve necessariamente passar pela questão da fixação do nexo de causalidade indo até a completa ineficácia e ausência de resultado prático da ação estatal, o que feriria o princípio da motivação do ato administrativo e o princípio da razoabilidade.

A questão sobre a eficácia do licenciamento ambiental como instrumento de mitigação dos efeitos das mudanças climáticas envolve uma análise profunda sobre o papel e as limitações desse mecanismo dentro do contexto das emissões de gases de efeito estufa (GEE). Embora o licenciamento ambiental seja um importante instrumento de controle de atividades potencialmente poluidoras, sua aplicabilidade na mitigação das mudanças climáticas deve considerar a complexidade do nexo de causalidade entre emissões individuais e impactos climáticos globais.

É crucial considerar os princípios jurídicos da motivação do ato administrativo e da razoabilidade na atuação estatal nesse contexto. O princípio da motivação exige que todos os atos administrativos sejam devidamente justificados, apresentando de forma clara os pressupostos de fato e de direito que fundamentam a atuação do poder público. Isso é pressuposto inafastável que justifica e legitima as ações do poder público.

O princípio da razoabilidade, por sua vez, assegura que as ações estatais sejam adequadas, necessárias e proporcionais aos objetivos que se propõem a alcançar. No caso do licenciamento ambiental, aplicar esses princípios significa que tal instrumento deve ser utilizado de maneira que realmente contribua para a mitigação das mudanças climáticas, evitando medidas que possam ser consideradas excessivas ou ineficazes.

Portanto, enquanto o licenciamento é crucial para a gestão de impactos locais, a eficácia na mitigação das mudanças climáticas requer uma abordagem integrada que combine políticas nacionais robustas com a colaboração internacional. Isso inclui o controle do desmatamento ilegal e dos incêndios, o desenvolvimento de tecnologias sustentáveis e a participação ativa em esforços globais que busquem soluções para esse desafio ambiental de proporções planetárias. Somente através de esforços conjuntos e complementares, orientados por princípios jurídicos sólidos, será possível promover um desenvolvimento equilibrado, justo e eficaz na luta contra as mudanças climáticas.

 

 

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  • é secretária de Estado de Meio Ambiente de Goiás, procuradora federal junto à Advocacia Geral da União (AGU), advogada, mestre em Direito Sócio Econômico pela PUC-PR, professora de Direito Ambiental, pós-graduada em Direito Sistêmico pela Hellinger Schulle e autora do livro Instrumentos de Promoção Ambiental e o Dever de Indenizar Atribuído ao Estado.

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