EC 19, ADI n° 2.135-DF e Regime Jurídico Único dos servidores públicos
16 de novembro de 2024, 13h14
Desde a promulgação da Emenda Constitucional (EC) n° 19/1998[1], originária da Proposta de Emenda Constitucional (PEC) n° 173/1995[2], exsurgiram controvérsias quanto à modificação do caput do artigo 39 da Constituição, notadamente em razão da supressão da exigência de instituição, no âmbito de cada ente federativo, de regime jurídico único para os servidores da administração pública direta, autárquica e fundacional.
No âmbito da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) n° 2.135-DF[3], o Supremo Tribunal Federal (STF) deferiu, em 2 de agosto de 2007, medida cautelar para suspender a eficácia da modificação realizada pela EC n° 19/1998 no caput do artigo 39 da CF/1988. Mas, ao julgar o mérito da ADI n° 2.135-DF em 6 de novembro de 2024, reconhecendo a constitucionalidade do novo texto do caput do artigo 39 da Constituição, a Corte Constitucional reavivou a controvérsia sobre a regularidade da tramitação da PEC n° 173/1995, a qual, sem a pretensão de enfrentar o mérito da matéria nesta ocasião, será objeto de análise.
Há, é certo, sólida doutrina que associa o devido processo legislativo ao respeito a normas constitucionais, legais e regimentais que concretizam a principiologia emanada da Constituição, de modo que o processo de formação das leis respeite as prerrogativas dos parlamentares, promova o debate público entre os diversos setores da sociedade, considere os distintos interesses, preferências e ideais subjacentes e, ao final, assegure a legitimidade das normas resultantes desse processo[4].
De modo mais restritivo e em uma postura de self restraint, o STF concebe o devido processo legislativo como o respeito às normas constitucionais de processo legislativo, não reconhecendo em normas regimentais, ainda que concretizadoras dos princípios que emanam da normatividade subordinante da Constituição, postulados jurídicos que, uma vez desrespeitados, permitam a sindicabilidade judicial e a invalidação de tramitações em desacordo com os regimentos internos das casas legislativas (v.g., ADI n° 2.261).
Quer adotada a posição mais ampla, quer a mais restritiva, compreende-se, após análise da tramitação da PEC n° 173/1995, que houve afronta direta ao artigo 60, § 2º, da Constituição (“a proposta de emenda constitucional deve ser discutida e votada em cada Casa do Congresso Nacional em dois turnos, considerando-se aprovada se obtiver, em ambos, três quintos dos votos dos respectivos membros”) na modificação do caput do artigo 39 da Constituição e, assim, na supressão da exigência de instituição, no âmbito de cada ente federativo, de regime jurídico único para os servidores públicos.
Tramitação de uma PEC
Para compreensão dos vícios existentes na tramitação da PEC n° 173/1995, é importante considerar que o processo legislativo compreende uma sequência de atos e votações que culminam na elaboração da redação final do texto aprovado (no caso de proposições que se submetem a dois turnos de votação, há, após o término da votação do primeiro turno, a elaboração da “redação do vencido” ou “redação para o segundo turno”, que consiste na simples consolidação do resultado da sequência de votações em primeiro turno), sendo, na deliberação de qualquer matéria, decisivas:
- (1) a escolha do texto principal que será objeto de votação (proposição original, proposição que lhe for apensada, substitutivo etc.); e
- (2) a definição da forma de deliberação do texto principal e de respectivas (sub)emendas, o que é influenciado por institutos regimentais como os destaques (de preferência do texto principal a ser votado; de dispositivo do texto principal para votação em separado — DVS; de emenda; de parte de texto para formação de proposição autônoma etc.)[5].
No que interessa, a votação em primeiro turno da PEC n° 173/1995[6] no plenário da Câmara dos Deputados incluiu:
(1) a aprovação do substitutivo da Comissão Especial em 9 de abril de 1997[7], ressalvados os destaques[8];
(2) a votação específica de cada destaque, inclusive do DVS n° 9, referente ao caput do artigo 39 da Constituição na forma do artigo 5º do substitutivo, cuja modificação foi rejeitada em 23 de abril de 1997, isto é, não obteve os 308 votos necessários para sua aprovação[9]; e
(3) a elaboração da “redação do vencido” (ou “redação para o segundo turno”) pela Comissão Especial[10] e, na sequência, a aprovação dessa redação pelo plenário em 12 de novembro de 1997 (registre-se: por apenas 267 votos favoráveis)[11].
Destaca-se, uma vez mais, que a proposta de modificação da redação originária do caput do artigo 39 da Lei Maior, por força do DVS nº 9, foi inequivocamente rejeitada no primeiro turno da apreciação da PEC n° 173/1995, aprovando-se, por sua vez, os dez parágrafos propostos para o artigo 39 da Constituição. Não obstante, ao elaborar a “redação do vencido”, texto que deveria apenas consolidar o resultado da sequência de votações em primeiro turno, a Comissão Especial incluiu, no caput do artigo 39 da Constituição, o texto do § 2º do artigo 39 que constava no artigo 5º do seu substitutivo, sob a justificativa de que um artigo de lei não pode subsistir sem o caput.
Limites regimentais
Com as vênias de estilo e respeito aos entendimentos contrários em questão de sobeja complexidade, não procede o argumento de que a comissão especial atuou dentro dos seus limites regimentais na elaboração da redação do vencido da PEC n° 173/1995. O STF, inclusive, ao deferir medida cautelar no âmbito da ADI n° 2.135-DF em 2/8/2007, havia considerado que “o deslocamento do texto do § 2º do artigo 39, nos termos do substitutivo aprovado, para o caput desse mesmo dispositivo representou, assim, uma tentativa de superar a não aprovação do DVS nº 9 e evitar a permanência do regime jurídico único previsto na redação original suprimida […]”.
Para correta intelecção do problema, ao analisar a redação do artigo 5º do substitutivo (“o artigo 39 da Constituição passa a vigorar com a seguinte redação: […]”)[12], é importante considerar a existência de dois possíveis efeitos normativos quanto à deliberação relacionada à modificação do caput do artigo 39 da Constituição:
(1) o efeito expresso de lhe dar nova redação; e (2) o efeito implícito de revogar a redação originária. Logo, se a proposta de modificação do caput do artigo 39 da Constituição constante no artigo 5º do substitutivo foi rejeitada na votação do DVS n° 9, os efeitos acima especificados não poderiam ser consumados, concluindo-se, assim, que o Plenário da Câmara dos Deputados:
(i) decidiu, expressamente, não dar nova redação ao caput do artigo 39 da CF/1988; e
(ii) resolveu, implicitamente, não revogar a redação originária do dispositivo especificado, o que, aliás, constava na própria justificação do DVS n° 9 (“Este destaque visa, então, manter a regra atual do regime jurídico único, alcançando todos os servidores da administração direta, autárquica e fundacional […]”[13]).
Primeiro, a revogação da redação atual
Não procede, portanto, o argumento de que a redação vigente do artigo 39 da Lei Maior não estaria em apreciação no momento da votação do DVS n° 9, uma vez que um dos propósitos normativos do artigo 5º do substitutivo da Comissão Especial consistia exatamente em sua revogação. Como já comentado, em se tratando de um dispositivo constitucional em vigor, a proposta de sua alteração necessariamente abrange a revogação da atual redação e a vigência de uma nova, motivo pelo qual, em respeito ao princípio da soberania do plenário e ao quanto lá decidido, a Comissão Especial, ao elaborar a redação do vencido, deveria dar a seguinte redação ao artigo 5º do substitutivo:
“Art. 5º. O artigo 39 da Constituição passa a vigorar com a seguinte redação:
Art. 39. ……………………………………………. (mantendo-se a redação originária de CF/1988).
- 1º (redação aprovada no primeiro turno);
- 2º (redação aprovada no primeiro turno);
- 3º (redação aprovada no primeiro turno);
………………………………………………………………..” (NR)
Com a redação acima, a comissão especial teria observado o princípio da deliberação[14] e preservado integralmente o que fora decidido no plenário, a saber: (1) a rejeição de uma nova redação ao caput do artigo 39 da Constituição; (2) a rejeição da revogação da sua redação originária; e (3) a aprovação de todos os parágrafos a serem inseridos nesse dispositivo constitucional.
Inovação da comissão especial
Porém, com a redação do vencido, a comissão especial inovou em relação ao que havia sido votado pelo plenário no primeiro turno da PEC n° 173/1995, especificamente quanto ao efeito jurídico de revogação da redação originária do caput do artigo 39 da Constituição, possibilitando a eliminação da exigência de regime jurídico único para os servidores públicos do texto constitucional.
Não só isso. Quando da deliberação da “redação do vencido”, o quórum da deliberação realizada em plenário, em 12 de novembro de 1997, foi de apenas 267 votos favoráveis, sendo 143 votos contrários, o que obviamente, à luz do artigo 60, § 2º, da Constituição, não é suficiente para convalidar as inovações que foram incluídas indevidamente pela Comissão Especial (notadamente por não alcançar três quintos dos votos dos membros da Câmara dos Deputados), sob risco de sérios prejuízos aos princípios da estabilidade constitucional e do devido processo legislativo, os quais devem imperar na tramitação de uma proposta de modificação da Constituição[15].
Diferentemente do alegado em voto proferido no julgamento do mérito da ADI n° 2.135-DF[16], a simples modificação do lugar de um texto de dispositivo contido em uma proposição é sim suficiente para desfigurá-la. Lamentavelmente, ao reconhecer a constitucionalidade do novo texto do caput do artigo 39 da Constituição, o STF desconsiderou toda a lógica subjacente ao processo legislativo, conferindo à comissão especial prevalência sobre decisão soberana do plenário da Câmara dos Deputados e, principalmente, admitindo a alteração de dispositivo constitucional sem a observância do artigo 60, § 2º, da Constituição.
Por isso, a ADI n° 2.135-DF abre precedente capaz de legitimar manobras que podem fragilizar o devido processo legislativo, ao admitir, em segundo turno de apreciação de uma PEC, a introdução de normas jurídicas não aprovadas no primeiro, medida contraria à tradição do processo legislativo levado a cabo no âmbito das Casas do Congresso Nacional[17]. Assim, fica abalada a confiança no STF como “fiador da própria ideia de preservação da democracia”, sobretudo porque “o direito — democraticamente produzido — é indissociável da democracia que o sustenta, portanto, proteger o direito é, ao mesmo tempo, resguardar a democracia”[18].
[1] Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Emendas/Emc/emc19.htm. Acesso em: 10 nov. 2024.
[2] Disponível em: https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=169506. Acesso em: 10 nov. 2024.
[3] Disponível em: https://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=11299. Acesso em: 10 nov. 2024.
[4] Ver: OLIVEIRA, Marcelo Andrade Cattoni de. Devido Processo Legislativo: uma justificação democrática do controle jurisdicional de constitucionalidade das leis e do processo legislativo. 3ª ed. Belo Horizonte: Fórum, 2016.; PINHEIRO, Victor Marcel. Devido processo legislativo: elaboração das leis e seu controle judicial na democracia brasileira. 1ª ed. Rio de Janeiro: GZ, 2024.; BARBORA, Leonardo Augusto de Andrade. Processo legislativo e democracia. Belo Horizonte: Del Rey, 2010.; CARVALHO, Cristiano Viveiros. Controle judicial e processo legislativo: a observância dos regimentos internos das casas legislativas como garantia do Estado Democrático de Direito. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 2002.
[5] Desde o primeiro Regimento Interno da Câmara dos Deputados, datado de 1826, até o atual, de 1989 (vide arts. 189 a 191 do RICD), o processamento das votações obedece, em linhas gerais, à mesma lógica. Ver: PACHECO, Luciana Botelho e RICCI, Paolo. Normas regimentais da Câmara dos Deputados: do império aos dias de hoje. Vols. 1 e 2, Brasília: Câmara dos Deputados, Edições Câmara, 2017 (Série memória e análise de leis; n. 7), p. 672-680. Disponível em: https://bd.camara.leg.br/bd/items/a3b64524-9426-4f44-b0e9-fa2c4a655085. Acesso em: 10 nov. 2024
[6] Todas as referências ao processamento da votação da PEC 173/1995 podem ser conferidas na sua ficha de tramitação legislativa, cujo acesso, em 07/11/2024, estava disponível em: https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=169506
[7] Nos termos do art. 191, inciso II, do Regimento Interno da Câmara dos Deputados – RICD: “o substitutivo de Comissão tem preferência na votação sobre o projeto”. Disponível em: https://www2.camara.leg.br/atividade-legislativa/legislacao/regimento-interno-da-camara-dos-deputados/arquivos-1/RICD%20atualizado%20ate%20RCD%2011-2024.pdf. Acesso em: 10 nov. 2024.
[8] Nos termos do art. 162, VI, do RICD: “Em relação aos destaques, serão observadas as seguintes normas: […] VI – o destaque para votação em separado será apreciado submetendo-se a votos, primeiramente, a matéria principal e, em seguida, a destacada, que somente integrará o texto se for aprovada; […]”. Disponível em: https://www2.camara.leg.br/atividade-legislativa/legislacao/regimento-interno-da-camara-dos-deputados/arquivos-1/RICD%20atualizado%20ate%20RCD%2011-2024.pdf. Acesso em: 10 nov. 2024.
[9] A nova redação do caput do art. 39 da CF/1988 constante no art. 5º do Substitutivo da Comissão Especial, objeto do DVS n° 9, obteve a seguinte votação: sim 298; não 142; abstenção 8. Por força da Questão de Ordem n.º 10.064/2000, a Câmara dos Deputados já consolidou entendimento quanto à exigência de que o texto objeto do DVS seja aprovado pelo quórum qualificado de três quintos (308 Deputados), para então ser incorporado ao texto normativo inicialmente aprovado.
[10] Nos termos do art. 197 do RICD: “É privativo da Comissão específica para estudar a matéria redigir o vencido e elaborar a redação final, nos casos de proposta de emenda à Constituição…”. Disponível em: https://www2.camara.leg.br/atividade-legislativa/legislacao/regimento-interno-da-camara-dos-deputados/arquivos-1/RICD%20atualizado%20ate%20RCD%2011-2024.pdf. Acesso em: 10 nov. 2024.
[11] Normalmente, depois de elaborada pela Comissão Especial, a redação do vencido é aprovada no âmbito do próprio Colegiado, não se exigindo sua deliberação em Plenário (ver, por exemplo: PECs n°s 40/2003, convertida na EC 41/2003; 228/2004, convertida na EC 44/2004; 207/2012, convertida na EC 74/2013; 247/2013, convertida na EC 80/2014; e 6/2019, convertida na EC 103/2019).
[12] Diário da Câmara dos Deputados – DCD, de 07/02/1997, p. 4198-4199.
[13] “Este destaque visa, então, manter a regra atual do regime jurídico único, alcançando todos os servidores da Administração direta autárquica e fundacional ocupantes de cargos permanentes, bem assim preservar a permissão de contratação temporária por excepcional interesse público” (eDOC 1, fl. 404 da ADI 2.135-DF).
[14] PINHEIRO, Victor Marcel. Devido processo legislativo: elaboração das leis e seu controle judicial na democracia brasileira. 1ª ed. Rio de Janeiro: GZ, 2024. p. 159 a 175.
[15] Como exemplo de necessidade de que qualquer alteração normativa ao texto efetivamente apreciado em Plenário se submeta ao quórum qualificado de três quintos, cite-se o exemplo da Emenda à Redação Final n.º 1 apresentada à PEC 6/19 e aprovada com a seguinte votação: 435 sim; não 3; abstenção 1.
[16] Disponível em: https://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=11299. Acesso em: 10 nov. 2024.
[17] Vide, na Câmara dos Deputados, as Questões de Ordem números 5.534/1995, 10.473/1997 e 236/2003. Nos termos desta última: “… toda matéria que altera a Constituição em nosso País, precisa de votação em 2 turnos, com quorum de três quintos. Se é adotado um destaque de votação em separado, este destaque, no segundo turno, altera a regra, gerando uma nova regra. Esta regra nova gerada com o destaque terá, então, somente uma votação, será apreciada somente em um turno. Isso evidentemente esbarra na Constituição. A decisão de não dar amparo e, portanto, indeferir o destaque de votação em separado do PFL, foi exatamente por conta disso”.
[18] ABBOUD, Georges. Direito Constitucional Pós-Moderno. São Paulo: Thomson Reuters, 2021. p. 499/505.
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