A vontade do julgador e o paradoxo de Stalker
16 de novembro de 2024, 8h00
No clássico filme de ficção-científica Stalker, de 1979, o lendário diretor soviético Andrei Tarkovsky apresenta ao espectador um argumento intelectualmente provocativo. No universo ficcional da obra, existe um lugar deserto conhecido apenas como “A Zona”, no qual a entrada é terminantemente proibida pelas autoridades. Por razões não claramente explicadas (mas que sugerem uma anterior atividade de origem extraterrestre), a Zona apresenta anomalias variadas e nem mesmo as leis habituais da Física se aplicam no local. No interior da Zona, encontra-se um espaço ainda mais perturbador, conhecido simplesmente como “O Quarto” – um aposento que supostamente transforma em realidade qualquer desejo de quem ali adentra. Neste universo, os stalkers atuam como guias profissionais de incursões ilegais ao interior da Zona, conhecendo os procedimentos necessários para despistar as autoridades e sabendo como enfrentar as ameaças de tal ambiente inóspito.
À primeira vista, o Quarto poderia parecer tão somente uma variante narrativa de conhecidos artefatos ficcionais especializados em materializar vontades, como as antigas histórias sobre lâmpadas mágicas, gênios que concedem pedidos, poços dos desejos etc. No entanto, o misterioso Quarto é muito diferente dessas fantasias tradicionais, na medida em que ele não concretiza aquilo que o visitante verbaliza na forma de um pedido expresso, mas sim aquilo que ele realmente deseja, nas profundezas de seu íntimo.
Essa perigosa mecânica é bem ilustrada por uma história narrada pelo protagonista (conhecido apenas como “O Stalker”) no curso da trama: em algum momento do passado, um stalker anterior, conhecido como Porcupine, obteve grandes riquezas ao ingressar no Quarto. O desfecho aparentemente feliz, no entanto, o levou posteriormente ao suicídio. Essa perturbadora sequência de eventos é posteriormente esclarecida: na verdade, Porcupine sentia-se culpado pela morte de seu irmão e entrou no Quarto para pedir que seu ente querido voltasse à vida. O Quarto realizou o desejo de Porcupine… e o tornou milionário! Porcupine, assim, foi submetido ao cruel choque de realidade de descobrir que, na verdade, ele valorizava mais a riqueza do que a vida de seu irmão (ao contrário do que se poderia pressupor, tendo como referência a racionalização supostamente altruísta por trás do seu pedido formal).
Como instrumento de realização de desejos – e não de “pedidos” – o Quarto dialoga com o inconsciente e não com a razão moral(ista) de quem ingressa naquele local. Entrar no Quarto, portanto, representa ingressar no desconhecido em dois níveis distintos: primeiro, no sentido mais elementar de adentrar em um espaço estranho e perigoso, cujas propriedades não são as mesmas do “mundo normal”. Segundo, no sentido psicanalítico, da pessoa que se vê obrigada a encarar as consequências imprevisíveis do contato com as sombras desconhecidas – e igualmente perigosas – de sua própria subjetividade inconsciente.
Slavoj Zizek e Jonathan Haidt
O paradoxo de Stalker ilustra à perfeição o problema psicanalítico que é sintetizado por Zizek da seguinte forma: o problema, para nós, não é saber se nossos desejos estão sendo satisfeitos ou não. O problema real é: como nós podemos conhecer aquilo que realmente desejamos [1]?
Embora se trate de uma questão que nos causa perplexidade, a inexistência de uma unidade consciente na psique do indivíduo é um tema que transcende a questão dos desejos pessoais e se manifesta, também, na questão deontológica dos julgamentos morais. Este tema é muito bem trabalhado na obra The Righteous Mind, de Jonathan Haidt, publicada em 2012 [2]. No livro, o autor explica que as pesquisas realizadas no campo da psicologia social apontam que a tendência inata das pessoas é julgar primeiro e justificar depois. Desta forma, o julgamento moral é, no mais das vezes, nada além de uma racionalização a posteriori, elaborada pelo indivíduo para justificar uma tomada de posição prévia – que esta pessoa já elaborou internamente, de forma intuitiva e inconsciente.
Isso significa que tendemos a confundir as nossas posições morais propriamente ditas (frutos da automatização de processos cerebrais) com os discursos racionais posteriores que elaboramos para retroativamente justificar nossas ideias sobre moralidade. Nossas mentes, ao proceder com julgamentos morais, primeiro decidem (inconscientemente) e só depois fundamentam. O fundamento racional não é, portanto, nem a causa/motivo e nem a explicação para a decisão moral do indivíduo: é apenas uma capa de sentido colocada sobre a decisão depois que esta já foi tomada. A intuição decide e a racionalidade apenas constrói uma justificativa ex post facto.
Discricionariedade judicial
E como isso se relaciona com o Direito? Ao longo de todo o século 20, a Teoria do Direito tem reiteradamente apostado na legitimação da discricionariedade judicial calcada na vontade do juiz. Sobre isso, apenas a título de exemplo, faço referência às posições de Hans Kelsen [3], Karl Engisch [4] e Ovídio Baptista da Silva [5] [6] sobre a questão. A crítica à discricionariedade judicial, por sua vez, é um dos principais argumentos presentes no conjunto da obra de Ronald Dworkin, o principal jusfilósofo pós-positivista do último meio século.
A mesma rejeição à discricionariedade judicial, em nome dos postulados da democracia e da autonomia do Direito, encontra-se fortemente presente na Crítica Hermenêutica do Direito (CHD) fundada em nosso país por Lenio Streck. A CHD sustentará que o agir solipsista do intérprete/julgador, no Direito, além de ser um problema de democracia, representa também um primitivismo em relação ao que sabemos atualmente no campo da filosofia da linguagem. Nosso conhecimento atual neste campo não nos permite mais cindir artificialmente “intepretação” e “aplicação”, nem autoriza qualquer pretensão de “assenhoramento” da linguagem – que é social e coletiva, e não um instrumento de uso privado.[vii]
No entanto, para além disso, as consequências das descobertas contemporâneas da psicologia social para o Direito não são poucas. Já vimos que as antigas ideias sobre discricionariedade judicial (“livre convencimento do juiz”, “decidir de acordo com a consciência”, ato de “vontade” do julgador etc.) encontram óbices nos conceitos atuais de autonomia do Direito, democracia e filosofia da linguagem. No entanto, o intuicionismo social sustentado por Haidt destrói os fundamentos destes antigos “mitos” em um nível ainda mais profundo. Isso se dá porque todas as diferentes concepções voluntaristas do Direito (que abrangem concepções tão diversas quanto o positivismo jurídico kelseniano, o realismo jurídico norte-americano e o neoconstitucionalismo das “vanguardas iluministas”, como defendido por Luís Roberto Barroso) se sustentam necessariamente em um mesmo axioma jamais questionado, qual seja: a existência de uma coesa e unitária vontade do julgador. E é precisamente aqui que a moderna psicologia social coloca em xeque os antigos pressupostos voluntaristas. Esta suposta vontade do julgador nada mais é do que a enunciação de um julgamento moral. Só que, ao contrário do que tradicionalmente se imaginava em outros tempos, um julgamento moral não é a expressão de um raciocínio consciente metódico e analítico. Não: o julgamento moral não pode ser considerado um ato de vontade, na medida em que opera como mera projeção automatizada de uma subjetividade interna, que é desconhecida até mesmo pelo próprio indivíduo em questão.
Consequentemente, toda decisão jurídica que — alegando “lacunas”, “indeterminação do Direito” ou “liberdade de consciência” do julgador — aposta no voluntarismo e no solipsismo do aplicador (acreditando que isso, de alguma forma, “faz parte do Direito”), mostra-se como nada além de um julgamento moral disfarçado. Trata-se de ato no qual, conforme já vimos, não há efetiva vontade envolvida, mas sim mero automatismo intuitivo, inconsciente e irrefletido — e que, por isso, não tem condições de ser legitimado nem mesmo dentro de uma lógica realista de poder, calcada no paradigma da autoridade [8].
A chave da prisão interior
Aqui, o paradoxo de Stalker, a advertência psicanalítica de Zizek e o intuicionismo social não apenas se encontram, como se harmonizam com o status quaestionis da filosofia da linguagem em sua denúncia ao beco-sem-saída do solipsismo e do voluntarismo. Com efeito, uma coisa é insistir na ideia de que devemos ser governados pelas preferências racionais de juízes, pelo simples fato de eles serem juízes. Outra coisa, muito mais problemática, seria tentar construir um argumento no sentido de que devemos ser governados pelo instinto inconsciente dos juízes. Ou seja: na aplicação do Direito, não há maneira racional de utilizar preferências morais como “ferramentas de correção externa” do Direito, porque qualquer fundamentação sempre chega depois do julgamento moral propriamente dito, que é uma manifestação do instinto e não da vontade racional.
E como podemos escapar deste paradoxo? O que o indivíduo (que não é, afinal de contas, exatamente aquilo que se imaginava nos tempos do liberalismo político clássico) pode fazer para não ser reduzido a um mero robot de seus próprios pré-juízos instintivos e inconscientes? A resposta parece clara: não será no âmbito do individualismo que encontraremos as soluções para as limitações cognitivas do indivíduo. Somente uma estrutura comunal externa, que nos transcende enquanto indivíduos, pode nos libertar (ainda que parcialmente) da prisão interior do automatismo inconsciente. Essa estrutura vem a ser o Direito, operacionalizado pela linguagem enquanto prática social compartilhada. Isso vale para todo e qualquer cidadão, da mesma forma como vale para aqueles encarregados de interpretar e aplicar as normas jurídicas. Reafirma-se, assim, a importância fundamental da ideia de autonomia do Direito [9] como condição de possibilidade para aquilo que Häberle denomina de sociedade aberta dos intérpretes da Constituição [10] — cujas inevitáveis tensões, desacordos e disputas, da mesma forma como não autorizam a naturalização de um realismo jurídico conformista (sobretudo fundado em noções de “vontade” e “indivíduo” que se encontram desatualizadas [11] em relação ao estágio atual de diferentes áreas do conhecimento humano), também não podem conduzir à descrença na esfera pública, ao ódio irracional às instituições ou a uma concepção populista e regressiva de “democracia”, que corrói suas próprias garantias.
[1] Zizek faz a afirmação no começo do filme The Pervert’s Guide to Cinema, documentário lançado em 2006 e dirigido por Sophie Fiennes.
[2] O livro recebeu edição brasileira, em 2020, pela Editora Alta Cult, com o título “A Mente Moralista”.
[3] “Ao criar uma norma individual pela jurisprudência, o tribunal tem sempre a escolha de diferentes decisões possíveis dentro da estrutura da norma geral que determina a função judicial. O tribunal pode preferir uma ou outra porque considera uma justa e a outra injusta”. KELSEN, Hans. O que é justiça? 3ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 2001. p. 366.
[4] “O resultado a que chegamos com referência à tão discutida discricionariedade é, portanto, este: que pelo menos é possível admitir – na minha opinião é mesmo de se admitir – a existência de discricionariedade no seio de nossa ordem jurídica conformada pelo princípio do Estado de Direito. […] É problema da hermenêutica jurídica indagar onde e com que latitude tal discricionariedade existe”. ENGISCH, Karl. Introdução ao pensamento jurídico. 8ª ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1996. p. 227.
[5] “A justiça, para desgosto de nossos teóricos, não poderá ser normatizada. Haverá de ser descoberta laboriosamente em cada caso concreto, observados, porém, determinados critérios capazes de impedir que a natural (e inevitável) discricionariedade do ato jurisdicional se transforme em arbitrariedade […]”. SILVA, Ovídio Araújo Baptista da. Epistemologia das ciências culturais. Porto Alegre: Verbo Jurídico, 2009, p.86.
[6] Para uma crítica mais detalhada ao argumento sustentado por Ovídio em sua obra “Epistemologia das ciências culturais”, ver: ABEL, Henrique. Epistemologia Jurídica e Constitucionalismo Contemporâneo. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2022. Pag. 82-92.
[7] “Assim, solipsismo, subjetivismo, voluntarismo e relativismo, são termos intercambiáveis. […] É exatamente uma manifestação do esquecimento do ser de que falava Heidegger: a vontade que assume o papel de condição incondicionada de tudo”. STRECK, Lenio Luiz. Dicionário de Hermenêutica: 50 verbetes fundamentais da Teoria do Direito à luz da Crítica Hermenêutica do Direito. 2ª ed. Letramento: Casa do Direito, 2020. p. 412.
[8] Ver: SAMUEL, Geoffrey. Interdisciplinary and the authority paradigm: should law be taken seriously by scientists and social scientists? Journal of Law and Society, v. 36, n. 4, p. 456, Dec. 2009.
[9] “Esta compreensão, como aliás o próprio Estado de direito, conserva um núcleo dogmático, ou seja, a ideia da autonomia, segundo a qual, os homens agem como sujeitos livres na medida em que obedecem às leis que eles mesmos estabeleceram servindo-se de noções adquiridas num processo intersubjetivo. Contudo, essa ideia é ‘dogmática’ num sentido sui generis. Pois, nela se expressa uma tensão entre facticidade e validade, a qual é ‘dada’ através da estrutura linguística das formas de vida sócio-culturais, as quais nós, que formamos nossa identidade em seu seio, não podemos eludir”. HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade, volume II. 2ª ed. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003. p. 190.
[10] HÄBERLE, Peter. Hermenêutica constitucional: a sociedade aberta dos intérpretes da Constituição: contribuição para a intepretação pluralista e “procedimental” da Constituição. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 1997. p 39.
[11] Aqui, cabe um esclarecimento: diante das recentes descobertas no campo da psicologia social, poderíamos ser levados a crer que essa “morte” da vontade do indivíduo poderia tornar inaplicáveis quase todos os institutos jurídicos. Por exemplo: como poderiam existir contratos juridicamente válidos, no campo das obrigações, se a vontade individual “não existe”? Todavia, tal receio carece de fundamento. Explica-se: a superação da velha noção de vontade do julgador (como sendo uma deliberação racional e analítica) não implica na superação da ideia geral de “vontade” no Direito. Isso ocorre porque a expressão de vontade como interesse pessoal (tomada de decisões práticas envolvendo o benefício próprio) não se confunde com julgamentos morais inconscientes. No próprio campo da psicologia social, autores como Joshua Greene têm sugerido que apenas julgamentos deontológicos (envolvendo direitos e deveres) são movidos primariamente pela intuição, ao passo que julgamentos de caráter utilitário são, por outro lado, controlados por processos racionais e conscientes de cognição. Ver: GREENE, Joshua. Moral Tribes: Emotion, Reason, and the Gap Betweeen Us and Them. Penguin Books, 2013.
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