Opinião

Uma solução para o Arquivo Nacional do Brasil

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15 de novembro de 2024, 6h37

Frente às manifestações de arquivistas, sociedade civil e representantes da cultura contra a situação do Arquivo Nacional, é essencial buscar soluções além da simples substituição do titular demanda recorrente desde 2012.

Divulgação

O investimento estatal em arquivos públicos, especialmente no AN, é insuficiente, comprometendo sua missão de preservar a memória nacional e de dar acesso à documentação federal, conforme o § 2º, artigo 216 da Constituição. A falta de instalações adequadas para armazenar documentos públicos é um dos maiores obstáculos a essa missão.

Essa deficiência tem comprometido a atuação do AN como órgão central do Sistema de Gestão de Documentos e Arquivos (Siga), previsto no Decreto-Lei 200 e criado pelo Decreto nº 4.915 de 2003, com o objetivo de coordenar e padronizar procedimentos técnicos de gestão documental no Executivo Federal. Por razões estruturais, os recolhimentos da documentação dos órgãos Administração Pública Federal (APF) para a custódia do AN têm sido esporádicos, como registra o seu sistema Regente. Na tentativa de mudar essa conjuntura, em 2019, foi publicado o Decreto nº 10.148, buscando o fortalecimento do Siga.

Nos últimos dois anos, o AN perdeu autonomia ao ser transformado em secretaria do Ministério da Gestão e Inovação em Serviços Públicos (MGI) e deixou de ser uma unidade orçamentária independente. A falta de um plano de carreira que assegure uma aposentadoria digna aos seus servidores também é um entrave que compromete o seu funcionamento.

Grande parte da documentação recolhida nas últimas décadas, relativa à ditadura militar, está armazenada em condições inadequadas em Brasília (DF), em um prédio compartilhado com a Imprensa Nacional. Recentemente, a imprensa destacou que esse acervo corre risco de perda devido a problemas estruturais, como esquadrias defeituosas, goteiras e uma subestação de energia precária. Certamente todas as medidas cabíveis, com os recursos disponíveis, devem estar sendo tomadas, mas é de se pensar o que aconteceria com a memória desses anos se algo similar ao que ocorreu com o Museu Nacional viesse a ocorrer.

Melhorias implementadas no AN

Diversos problemas estruturais foram solucionados a partir de 2019, sobretudo após a assinatura de um Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) com o Corpo de Bombeiros Militares do Rio de Janeiro, que teve que ser assinado para a instituição continuar a funcionar e resolver uma situação que se arrastava desde 2012.

Spacca

Entre as melhorias implementadas, destacam-se: a instalação de um sistema de prevenção e combate a incêndios e pânico; a construção da escada de emergência do Bloco F; a troca do cabeamento de rede em todos os prédios; a instalação de câmeras de segurança nos depósitos e na sala de consulta; a substituição do sistema de backup; a aquisição de cinco quilômetros de estantes deslizantes; e a ampliação da capacidade de armazenamento do datacenter em um terço.

No entanto, são muitos os problemas da infraestrutura física, e eles não são restritos aos depósitos em Brasília. Evidenciam a necessidade urgente de mais investimento e de uma mudança estrutural no Arquivo Nacional (AN).

Transformação em agência reguladora

A solução ideal é sua transformação em uma agência reguladora, o que ampliaria seu papel de preservação e gestão de documentos públicos, além de conferir poderes regulatórios e de fiscalização para assegurar práticas padronizadas de gestão documental e preservação nos órgãos públicos, fortalecendo a transparência e a governança.

Esse é um momento oportuno, pois o governo federal está considerando propostas para reformar as agências reguladoras. A Advocacia-Geral da União (AGU), a pedido do presidente Lula, está desenvolvendo sugestões para essa reestruturação. Também foi anunciada a possível criação de uma nova agência que integraria a Comissão de Valores Mobiliários (CVM), a Superintendência de Seguros Privados (Susep) e a Superintendência Nacional de Previdência Complementar (Previc) [1].

O Arquivo Nacional poderia se transformar em uma entidade semelhante, voltada para a gestão e a preservação da memória nacional. Como agência reguladora, o papel do AN seria fortalecido e ampliado, incluindo alcance na iniciativa privada, cuja única regulação atualmente é um artigo sobre digitalização na Lei da Liberdade Econômica (Lei nº 13.874/2019).

Fiscalização na gestão de documentos públicos

Como agência reguladora, o AN assumiria um papel fundamental na fiscalização da gestão documental dos órgãos públicos, assegurando que normas de preservação e eliminação de documentos fossem rigorosamente cumpridas. Caberia ao AN a criação e atualização de normas e padrões técnicos para a preservação digital e autenticidade dos documentos, promovendo a criação de repositórios confiáveis para assegurar a preservação a longo prazo.

Além disso, o AN incentivaria o uso de tecnologias inovadoras, como blockchain e inteligência artificial, e estabeleceria diretrizes para garantir que essas inovações atendam às necessidades da administração pública, promovendo maior transparência e acesso à informação. Mais do que regular, o principal benefício da transformação do Arquivo Nacional em uma agência reguladora seria conferir-lhe poderes para fiscalizar e assegurar a conformidade das atividades de gestão documental e preservação da memória atribuições que, atualmente, não possui e que não são exercidas por nenhum outro órgão.

Como articulador central entre órgãos governamentais, o AN garantiria a interoperabilidade e a uniformidade das práticas documentais, promovendo uma rede de gestão mais coesa e incentivando políticas públicas voltadas ao acesso e à transparência. O AN também atuaria na capacitação e no assessoramento contínuo dos servidores públicos em práticas de gestão e preservação documental, além de monitorar a conformidade dos órgãos por meio de auditorias e relatórios periódicos, assegurando a constante melhoria nas práticas arquivísticas e a manutenção de uma gestão documental eficiente e segura.

Como agência reguladora, o Arquivo Nacional (AN) se tornaria o guardião da verdade digital, garantindo a autenticidade e a integridade de documentos públicos em infraestruturas próprias ou certificadas. Esse papel incluiria a regulação de infraestruturas privadas e de outros órgãos públicos, exigindo a conformidade com padrões rigorosos de preservação digital e autenticidade documental. Ao proteger a informação pública contra desinformação e fake news, o AN consolidaria seu papel essencial na promoção da transparência e na proteção da memória nacional, assegurando que todos os registros preservados sejam autênticos e acessíveis, fortalecendo, assim, a confiança pública.

Regulação nos Estados Unidos

Como exemplo, vale analisar a situação do Arquivo Nacional dos Estados Unidos (NARA), que possui a autoridade, inclusive, para solicitar a abertura de processo federal, como o que foi movido contra o ex-presidente Donald Trump por retenção de documentos públicos que deveriam ter lhe sido entregues [2].

O National Archives and Records Administration (Nara) dos Estados Unidos dispõe de uma infraestrutura sofisticada para preservar documentos históricos de relevância nacional e internacional, incluindo cerca de 13,5 bilhões de documentos em papel, milhões de fotografias, filmes, 10 milhões de mapas e mais de 700 mil artefatos. Desde 2022, o acervo digital tem sido ampliado com documentos enviados exclusivamente em formato digital.

O Nara armazena essa vasta coleção em várias instalações no país, incluindo quatro complexos subterrâneos no Meio-Oeste, como o Centro de Registros Civis em Valmeyer, Illinois, tão grande que os funcionários precisam utilizar bicicletas para se deslocar. A sede principal em Washington, D.C., inspirada na arquitetura romana, guarda documentos fundadores dos Estados Unidos, como a Declaração de Independência, a Constituição e a Carta de Direitos, protegidos em caixas à prova de balas e mantidos em condições controladas para garantir sua preservação.

Além da preservação, o Nara exerce papel essencial na transparência pública, gerenciando e respondendo a solicitações de acesso a documentos públicos sob a Lei de Liberdade de Informação (Foia). Essa responsabilidade faz do Nara um modelo para arquivos de outros países, integrando preservação histórica, transparência e serviço público. Transformar o Arquivo Nacional do Brasil em uma agência reguladora com atribuições similares poderia fortalecer a preservação documental e o acesso público, beneficiando a memória nacional. [3]

Nova função ao Conarq

O Conselho Nacional de Arquivos (Conarq), criado pela Lei nº 8.159 de 1991 e vinculado ao Arquivo Nacional, poderia evoluir para um órgão autônomo, como defende a comunidade arquivística, ou assumir o papel de um Conselho Deliberativo dentro de uma eventual Agência AN.

Modelos de agências reguladoras em áreas como saneamento e transporte possuem, em algumas estruturas, conselhos com funções regulatórias, diretivas ou estratégicas. Seguindo essa lógica, o Conarq poderia atuar como um conselho da agência, mantendo suas atribuições regulatórias.

Caberia ao AN a regulação complementar, regulamentando as normas do Conarq, e, nas competências não cobertas por ele, exercendo a regulação originária. A supervisão ficaria a cargo do AN, responsável por garantir o cumprimento das normas do Conarq e das próprias normas da agência.

Nesse arranjo, o Conarq manteria sua função deliberativa, enquanto o AN assumiria atribuições executivas e fiscalizadoras, preservando a autonomia e a missão do Conarq sem gerar conflitos de competência e profissionalizando o seu funcionamento que atualmente é feito com conselheiros voluntários.

A memória de um país não deve depender de contingenciamentos e de mudanças políticas. Como guardiões dessa riqueza tão essencial quanto o meio ambiente —, nossa geração deve preservá-la para o futuro. Ao contrário da natureza, cujas perdas podem ser minimizadas com grandes esforços de recuperação, a perda de um arquivo histórico é irreparável, eliminando para sempre parte da essência de uma nação. Esse legado, se perdido, chega às futuras gerações apenas em fragmentos e versões incompletas, vulneráveis a manipulações ao sabor das circunstâncias. Precisamos aproveitar a oportunidade de implementar uma solução estrutural para proteger essa herança.

 


[1]   Relatório Reservado. CVM, Susep e Previc podem virar uma super agência reguladora. Disponível em: https://relatorioreservado.com.br/noticias/cvm-susep-e-previc-podem-virar-uma-super-agencia-reguladora/. Acesso em: 31 out. 2024.

[2] CNN. National Archives refutes Trump claim on classified documents indictment. 2023. Disponível em: https://edition.cnn.com/2023/06/09/politics/national-archives-refutes-trump-claim-classified-documents-indictment/index.html. Acesso em: 31 out. 2024.

[3] WIKIPEDIA. National Archives and Records Administration. Disponível em: https://en.wikipedia.org/wiki/National_Archives_and_Records_Administration. Acesso em: 31 out. 2024.

Autores

  • é diretora da InnovaGestão – Consultoria em Informação. Mestre pela Faculdade de Ciência da Informação da UnB e doutoranda em História, Política e Bens Culturais do CPDOC/FGV. Foi diretora-geral do Arquivo Nacional, presidente do Conselho Nacional de Arquivos (Conarq), diretora-executiva do Departamento de Pesquisas Judiciárias (DPJ) do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) e secretária de Pesquisas e Informação do Centro de Estudos Judiciários do Conselho da Justiça Federal (CJF).

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