Paradoxo da Corte

Possibilidade de repetição do pedido de desconsideração na mesma execução

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  • é sócio do Tucci Advogados Associados ex-presidente da Aasp professor titular sênior da Faculdade de Direito da USP membro da Academia Brasileira de Letras Jurídicas e do Instituto Brasileiro de Direito Processual e conselheiro do MDA.

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15 de novembro de 2024, 8h00

A autonomia patrimonial das sociedades civis e comerciais, prevista no artigo 50 do Código Civil determina, a contrario sensu, a separação de patrimônios entre sócios e sociedade e, até, entre sociedades. Com esta autonomia patrimonial, os sócios, como é curial, não respondem com o seu patrimônio pessoal pelas obrigações assumidas pela pessoa jurídica, e esta não responde pelas obrigações contraídas pelos sócios.

Nessa mesma ordem de ideias é lícito frisar que também uma sociedade não pode responder por dívidas assumidas por outra pessoa jurídica, ainda que coligadas ou integrantes do mesmo grupo econômico.

Não obstante, de modo cada vez mais frequente, vem sendo pleiteado ao Poder Judiciário o emprego da técnica da desconsideração da personalidade jurídica, na tentativa de obter a integral satisfação de créditos inadimplidos.

Com efeito, a mencionada teoria, na prática, autoriza o órgão jurisdicional a ignorar a aparente autonomia patrimonial da pessoa jurídica, para reprimir a utilização desta com o escopo deliberado de fraudar credores.

Contudo, torna-se necessário ressaltar que a incidência dessa fictio iuris somente se dará quando restar amplamente comprovada a ocorrência de abuso.

Assim, não será suficiente a simples insolvência da sociedade para que seja ignorada a autonomia patrimonial da pessoa jurídica. Na verdade, o credor que pretende a “desconsideração” tem o ônus de provar o conluio perpetrado pelos administradores da empresa.

Caso o credor não produza prova da fraude, suportará o dano da insolvência da sociedade devedora, visto que serão mantidas as regras de limitação da responsabilidade dos sócios, bem como de outra sociedade.

Desse modo, a desconsideração da personalidade jurídica somente deve ser deferida pelo Poder Judiciário quando for verificada de modo verossímil a ocorrência de ato fraudulento por parte dos administradores da sociedade.

Spacca

As circunstâncias excepcionalíssimas que autorizam a aplicação da teoria da desconsideração da personalidade jurídica, na precisa síntese de Osmar Brina Corrêa-Lima, “subsumem-se nos conceitos genéricos de fraude e má-fé, que não se presumem…” (A Teoria da Desconsideração da Personalidade Jurídica Desmistificada, trabalho inédito, s/d., pág. 2).

Importa observar que a literatura especializada, de um modo geral, preconiza que a admissibilidade da incidência da chamada disregard doctrine está condicionada à verificação do abuso da pessoa jurídica, demarcado pela fraude manifesta ou pela confusão patrimonial entre sociedade e sócios, ou mesmo entre sociedades.

Prestigiando a evolução doutrinária, dispõe, com efeito, o artigo 50 do Código Civil que: “Em caso de abuso da personalidade jurídica, caracterizado pelo desvio de finalidade, ou pela confusão patrimonial, pode o juiz decidir, a requerimento da parte, ou do Ministério Público, quando lhe couber intervir no processo, que os efeitos de certas e determinadas relações de obrigações sejam estendidos aos bens particulares dos administradores ou sócios da pessoa jurídica”.

Direito de ser ouvido

Ocorre que, a despeito da clareza do mencionado dispositivo do Código Civil, verificava-se, na praxe do foro, a ocorrência de decisões precipitadas pelas quais, antes mesmo do conhecimento da demanda, o patrimônio do sócio era atingido pela constrição judicial.

Foi exatamente por esta razão, ou seja, para evitar manifesta ofensa às garantias processuais, é que o Código de Processo Civil em vigor introduziu, nos artigos 133 a 137,  um mecanismo, fulcrado no respeito ao contraditório, que tornou obrigatória a instauração de incidente processual a fim de que o sócio, antes de sofrer qualquer consequência gravosa em seu patrimônio, tenha a oportunidade de se manifestar e, por certo, de apresentar subsídios a fim de provar a inexistência dos requisitos ensejadores da desconsideração.

O Código de Processo Civil, portanto, prestigia a garantia fundamental do devido processo legal estabelecendo a forma pela qual o sócio, outra sociedade ou qualquer terceiro, tem assegurado o seu “direito de ser ouvido”, antes que o próprio patrimônio venha a responder por dívidas de outrem.

Preclusão

Observo ainda que uma vez pleiteada a desconsideração, apresentada a respectiva defesa e, na sequência, indeferido o pedido, com fundamento na ausência dos pressupostos legais acima mencionados, opera-se a preclusão, não podendo ser repetida tal pretensão no bojo da mesma execução.

É exatamente esta a orientação que prevalece nos domínios da jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, como se infere de recente (19/3/2024) precedente da 3ª Turma, no julgamento unânime do Recurso Especial nº 2.123.732/MT, com voto condutor da ministra Nancy Andrighi, ao assentar de forma peremptória que:

“(…) A tese defendida pelo recorrente é a de que o julgamento do primeiro pedido de desconsideração da personalidade jurídica por ele formulado não impede a apreciação de novo incidente de mesma natureza (objeto da presente controvérsia). Argumenta, também, que decisões interlocutórias não fazem coisa julgada material, pois se trata de característica própria das sentenças de mérito propriamente ditas.

Os juízos de origem entenderam que, como já houve decisão definitiva acerca do mérito da questão (não preenchimento dos requisitos do artigo 50 do Código Civil), a reiteração do pedido de desconsideração, com base nos mesmos fundamentos, encontra óbice na coisa julgada material formada em decorrência daquele primeiro julgamento.

Constou da sentença, cujos fundamentos foram mantidos expressamente pelo acórdão recorrido, que, ‘Em análise à decisão proferida em segunda instância, em que houve a análise de mérito, têm-se preclusas as razão (sic) que basearam o pedido do requerente e, por conseguinte, caracterizada a coisa julgada material” (e-STJ fl. 416).

No que concerne à questão controvertida, essa 3ª Turma já se posicionou (embora em processos versando sobre situações fáticas distintas), de forma unânime, no sentido de que: ‘O trânsito em julgado da decisão que desconsidera a personalidade jurídica torna a matéria preclusa apenas com relação às partes que integravam aquela relação processual’ (REsp 1.572.655/SP, DJe 26/3/2018, e REsp 1.685.353/SP, DJe 12/3/2021).

Constou dos judiciosos votos apresentados, na oportunidade, pelo e. Relator – Min. Ricardo Villas Bôas Cueva – que, havendo formulação de pedido de desconsideração da personalidade jurídica de forma incidental (como na hipótese), o ato jurisdicional que o aprecia possui natureza de decisão interlocutória, ‘uma vez que não emitiu a solução final para o conflito com um provimento de mérito’.

Sendo assim – apontou Sua Excelência –, tratando-se de decisão interlocutória, ‘a regra é a ocorrência de preclusão, que inviabiliza às partes a rediscussão do tema no mesmo processo, mas não em outro’.

Na hipótese concreta, contudo, a rediscussão da questão concernente à desconsideração da personalidade jurídica da executada foi obstada pelos juízos de origem ao fundamento de já ter-se formado, em relação a ela, coisa julgada material.

A despeito de eventual baralhamento feito, no particular, entre os institutos da coisa julgada material e da preclusão, o que se verifica é que a aplicação da consequência jurídica adequada à situação fática dos autos (preclusão consumativa) não altera a conclusão do acórdão recorrido no sentido da impossibilidade de se examinar novamente o pedido de desconsideração.

Isso porque, consoante se pode depreender, os fundamentos que deram suporte ao primeiro pedido de desconsideração são os mesmos que foram novamente levados à consideração do juízo.

De fato, ainda que tenha sido autuado em apartado, o pedido de desconsideração da personalidade jurídica da devedora, conforme assentado pelos juízos a quo, foi deduzido no curso da mesma ação executiva e com fundamento em idêntica causa de pedir.

Destarte, há de se reconhecer que o trânsito em julgado da decisão que apreciou o primeiro pedido de desconsideração da personalidade jurídica tornou a questão preclusa na presente relação processual (execução), inviabilizando, assim, o exame do novo requerimento formulado pelo exequente”.

Fatos novos

Não obstante, é evidente que se novo conjunto probatório se lastrear em fatos preexistentes até então desconhecidos, denominados “fatos novos”, e, assim, com base em diferente causa de pedir próxima, não haverá obstáculo algum ao credor para aforar, no curso da mesma execução, novo pleito de desconsideração da personalidade jurídica, visto que certamente se estará diante de “nova demanda”, lastreada em fundamento intocado pela precedente decisão coberta pela coisa julgada material.

Cumpre anotar, por fim, que a ementa do próprio acórdão, acima parcialmente transcrito, deixa entrever esta possibilidade, ao consignar, com absoluta precisão, in verbis:

“O trânsito em julgado da decisão que aprecia pedido de desconsideração da personalidade jurídica torna a questão preclusa para as partes da relação processual, inviabilizando a dedução de novo requerimento com base na mesma causa de pedir (destaquei).

Sendo diferente a causa petendi e, assim, tratando-se de demanda análoga, mas não idêntica à anterior, torna-se viável o ajuizamento de novo pedido de desconsideração da personalidade jurídica!

Autores

  • é sócio do Tucci Advogados Associados, ex-presidente da Aasp, professor titular sênior da Faculdade de Direito da USP, membro da Academia Brasileira de Letras Jurídicas e do Instituto Brasileiro de Direito Processual, conselheiro do MDA e vice-presidente do Conselho Superior de Assuntos Jurídicos da Fiesp.

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