Opinião

O STF, a recolha de livros e a "censura do bem"

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  • é promotor de Justiça em São Paulo membro fundador do Coletivo por um Ministério Público Transformador — Transforma MP e da Associação Brasileira de Juristas pela Democracia — ABJD.

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15 de novembro de 2024, 15h14

Nos autos do Recurso Extraordinário nº 1.513.428, interposto pelo Ministério Público Federal, o ministro do Supremo Tribunal Federal Flávio Dino deu razão ao recorrente, o qual pugnava pela “retirada de circulação” de alguns livros [1] jurídicos de “qualquer biblioteca nacional” e a “destruição” desses livros, em razão de seu “conteúdo homofóbico, preconceituoso e discriminatório direcionado à comunidade LGBTQIA+ e às mulheres”.

O pedido do autor (MPF) havia sido julgado improcedente, tanto em primeiro grau como pelo Tribunal Regional Federal da 4ª Região, por maioria de votos, ao argumento principal de que não é “encargo do direito tutelar o bom gosto, a falta de graça ou o acerto ou erro da manifestação do pensamento”, e sim “proteger a manifestação do pensamento em si”, independentemente de ser “tachado de feio ou errado”.

O ministro do STF entendeu que a Constituição l impôs “limites explícitos” à liberdade de expressão, prevendo “indenização por dano moral ou à imagem, além da inviolabilidade da intimidade, vida privada, honra e imagem das pessoas”. Entendeu ainda que “a liberdade de expressão não alcança a intolerância racial e o estímulo à violência”.

Destacou que “a população LGBTQIAPN+ é uma das mais vitimadas por atos de violência motivados pelo racismo, preconceito e ódio manifestados contra esses indivíduos que sofrem intensa marginalização social”, tanto que pesquisas indicam grande número de pessoas integrantes dessas comunidades que são vítimas de crimes violentos. Sublinhou a necessidade de se proteger as mulheres de todo o tipo de ato de discriminação, exploração e violência.

Concluiu, então, que as obras jurídicas tratadas nos autos “não estão albergadas pela liberdade de expressão”, aduzindo ainda que não se trata de censura prévia, e sim da coibição de “abusos ocorridos no exercício indevido da manifestação do pensamento”.

Em resumo, a mais pura censura data venia.

Nenhum direito é absoluto?

Inicialmente, parece-me de suma importância não naturalizar o mantra (mais um) criado por parte do mundo jurídico, de que “nenhum direito é absoluto”. Ao se ter essa compreensão, o que no fundo se diz é: o direito não existe. Se o direito só existe quando o Judiciário assim o entender, é porque não existe. O reconhecimento de um direito não pode depender do acaso subjetivo do julgador. Nesse caso, inúmeros juízes terão uma compreensão de um direito, enquanto outros terão outra, no sentido contrário. E a insegurança jurídica prevalecerá.

No caso analisado, diversamente do que afirmou o ministro (e diversamente dos precedentes levantados por ele), a Constituição, em nenhum dispositivo, estabelece limites à liberdade de expressão [2]. O fato de a carta prever “indenização por dano moral ou à imagem, além da inviolabilidade da intimidade, vida privada, honra e imagem das pessoas” em nada altera essa conclusão. Uma coisa não tem nada a ver com a outra.

Spacca

O que a Constituição afirma é que, se houver extrapolação, haverá direito à indenização, por dano material, moral (individual ou coletivo) e à imagem, e par do direito de resposta e outros. Mas a CF jamais autorizou a censura de conteúdos, o “recolhimento de livros” e sua posterior “destruição”. São conhecidos os regimes em que esse tipo de prática foi levado a cabo…

Ademais, não convence o argumento do ministro, no sentido de que “a liberdade de expressão não alcança a intolerância racial e o estímulo à violência”. Ao menos nos trechos das obras jurídicas citados na decisão, não há qualquer menção à intolerância racial, e menos ainda à violência. Trata-se de uma interpretação subjetiva do ministro  o grande perigo de se institucionalizar a censura.

Conteúdo em trechos protestados

Não há, em tais trechos, menções preconceituosas e discriminatórias a pessoas negras ou de outra cor. A questão racial, pelo que consta da decisão, não é objeto do processo. Pelo contrário, um dos autores das obras mencionadas afirma, conforme consta de fl. 10, que o racismo é “uma afronta desumana a uma raça (negra) cuja defesa é unânime pela sociedade”. Não me parece uma afirmação propriamente racista.

Também não há, ao menos nas citações feitas, “estímulo à violência”. O que os autores fazem em seus escritos de forma pouco técnica, sem base científica, sem preocupação com o vernáculo e até maneira arrogante é defender um ponto de vista. Procuram eles a meu ver de maneira totalmente equivocada combater um tipo de comportamento e a difusão de ideias que consideram um mal à sociedade. Não há qualquer defesa da agressão, da morte ou da eliminação de pessoas por orientação sexual ou gênero.

O ministro não logrou demonstrar qual a relação da difusão das ideias contidas nos livros com a violência repugnante e injustificável exercida historicamente contra a população LGBT e contra as mulheres. Houve pesquisas, investigações ou trabalhos científicos que de alguma forma demonstraram que os criminosos ou parte deles que agem e agiram contra esse segmento da população leram anteriormente alguma obra dos autores e, a partir dela, praticou os crimes?

Com todo o respeito, imputar crimes praticados por terceiros a pessoas que escreveram livros jurídicos (independentemente de sua qualidade) é abusar do instituto da responsabilidade objetiva. Os autores não estão respondendo pela morte de pessoas (sejam LGBT, sejam mulheres, sejam negros), e a eles não pode ser imposta responsabilidade que não é sua.

Não há diferença em censura

Além disso, diferença não há entre a censura prévia e a censura posterior. Ambas são a mesma coisa. A diferenciação realizada pelo ministro não existe renovada a devida vênia. A Constituição não faz qualquer distinção entre elas (artigo 5º, IX [3]). Se assim fosse, bastaria permitir a circulação inicial de uma obra, para depois recolhê-la, ao argumento de que não se trata de censura prévia. Não faz sentido.

No mesmo artigo 5º da CF, nesta linha de ideias, está o inciso VI, o qual garante a inviolabilidade da “liberdade de consciência”. O Estado não está autorizado a perseguir quem não pensa da forma estabelecida. A discordância não pode ser tolhida. Se assim não for, por que se lutou tanto contra a ditadura militar, que tinha como uma de suas principais políticas perseguir e esmagar quem não concordava com sua ideologia?

É inexistente, insta reafirmar, a figura da “censura do bem”, até porque nenhum regime político que a exerceu o fez ao argumento de combater boas ideias. A justificativa para a censura sempre foi combater os “inimigos do sistema”, “ideias perigosas, criminosas, subversivas e destrutivas”. Essa sempre foi e sempre será a justificativa para qualquer tipo de censura.

Lembre-se que a defesa da descriminalização e legalização das drogas já foi considerada “apologia ao crime”. A defesa do legítimo direito ao aborto ainda é considerada por muitos a “defesa do assassinato” de seres humanos. E aí? Como fica? Um juiz tem o direito de proibir obras que defendam o direito ao aborto por essa razão? Não me parece.

Redes sociais têm alcance maior

Não bastasse, é uma ilusão acreditar que, com a internet e com as redes sociais, ainda é possível barrar a disseminação de ideias. Perfis de redes virtuais e grupos de aplicativos (como whatsapp e telegram, por exemplo) têm alcance infinitamente maior que livros físicos. A recolha desses livros representa tão somente uma decisão arbitrária, sem qualquer resultado prático no mundo real.

A população deve ter sua própria visão das questões que a envolvem. A censura não fará ninguém mudar de opinião. Pelo contrário, é possível que o efeito seja o inverso: as ideias combatidas podem ganhar adeptos em razão de sua perseguição judicial. Aliás, por que os defensores da censura simplesmente não apresentam seu contraponto às ideias que consideram “ruins”? Será que nem eles acreditam no que defendem? Por que calar a dissidência, e não estimular um amplo debate na sociedade?

Os argumentos de quem se propõe a debater um tema devem ser convincentes. Ideias ruins devem ser combatidas com ideias boas. Por que determinados juristas entendem que são os escolhidos (escolhidos por quem?) para determinar o que a população pode e o que não pode ler?

Por fim, fico a imaginar como será a execução dessa decisão. Será que a polícia invadirá livrarias e bibliotecas à procura dos “livros perigosos”? Livreiros e bibliotecários serão presos por desobediência? E como será a cerimônia de “destruição” dos livros? Será que se inspirará na Alemanha dos anos 30, quando a queima de livros se tornou um evento popular?

Amanhã, os livros queimados podem ser outros.

 


[1] : i) Curso Avançado de Biodireito; ii) Teoria e Prática do Direito Penal; iii) Direito Constitucional Esquematizado; iv) Curso Avançado de Direito do Consumidor; e v) Manual de Prática Trabalhista

[2] Muito pelo contrário, a CF crava que “é livre” a manifestação do pensamento, sendo tão somente vedado o anonimato. A palavra “livre” é autoexplicativa. A lei maior não impõe qualquer condicionalidade ao exercício desse direito.

[3] IX – é livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença.

Autores

  • é promotor de Justiça em São Paulo, mestre em Direito Internacional pela Universidade Católica de Santos, membro fundador do Coletivo por um Ministério Público Transformador – Transforma MP e da Associação Brasileira de Juristas pela Democracia – ABJD.

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