Tema 725: fraude na terceirização de serviços como elemento de distinção
15 de novembro de 2024, 7h02
A existência de fraude na terceirização de serviços como elemento distintivo à aplicação da tese contida no Tema 725 de Repercussão Geral do Supremo Tribunal Federal é reconhecida em decisões de turmas do Tribunal Superior do Trabalho e do Superior Tribunal de Justiça.
Há sinais concretos de sintonia entre os tribunais que têm a missão de fixar a interpretação definitiva da legislação infraconstitucional no país.
Este artigo irá apresentar as posições adotadas no TST e no STJ e identificará seus pontos de convergência, com destaque aos fundamentos determinantes das teses jurídicas dominantes.
Tema 725-RG e jurisprudência do TST: elementos de distinção
No dia 11 de dezembro de 2023, esta ConJur publicou texto de minha autoria em que afirmei, com base na jurisprudência do STF, que não havia — como não há — obstáculos ao reconhecimento do vínculo empregatício na terceirização de serviços, nas hipóteses em que, a partir do exame dos fatos da causa, ficar caracterizada a ocorrência de fraude e se afirmar a presença dos elementos caracterizadores do citado vínculo, o que representa distinção à aplicação da tese contida no Tema 725 de Repercussão Geral [1].
Naquela oportunidade afirmei:
“Por sua vez, a controvérsia que originou o Tema 725 de Repercussão Geral girou em torno da validade da terceirização de serviços, no contexto entre atividades fim e meio. O Supremo não legitimou a fraude. Ao contrário, afirmou que pode haver contratação de empresa para executar, interna ou externamente, etapas do processo produtivo, sem que isso constitua ilicitude (…)
O STF reconheceu a possibilidade de o legislador prever, de modo geral e abstrato, a ausência da relação de emprego em determinada relação jurídica, mas sem impedir o juiz de afirmá-la presente, quando a realidade demonstrar a presença dos elementos do art. 3º da CLT (técnica de distinção).”
Esse entendimento, contido em inúmeras decisões proferidas diariamente por juízes e tribunais trabalhistas de todo o país, baseia-se em fundamentos adotados pelo próprio STF (em precedentes vinculantes, muito embora não observados em algumas decisões proferidas em reclamações), que reconhece a possibilidade de prevalência da realidade em detrimento do arcabouço formal, como afirmado pelo ministro Alexandre de Moraes no julgamento da ADPF 324 [2]:
“Em nenhum momento a opção da terceirização como modelo organizacional por determinada empresa permitirá, seja a empresa tomadora, seja a empresa prestadora de serviços, desrespeitar os direitos sociais, previdenciários ou a dignidade do trabalhador.
(…)
Caso isso ocorra, seja na relação contratual trabalhista tradicional, seja na hipótese de terceirização, haverá um desvio ilegal na execução de uma das legítimas opções de organização empresarial, que deverá ser fiscalizado, combatido e penalizado.
Da mesma maneira, caso a prática de ilícita intermediação de mão de obra, com afronta aos direitos sociais e previdenciários dos trabalhadores, se esconda formalmente em uma fraudulenta terceirização, por meio de contrato de prestação serviços, nada impedirá a efetiva fiscalização e responsabilização, pois o Direito não vive de rótulos, mas sim da análise da real natureza jurídica dos contratos.” (destaques acrescidos)
Em direção semelhante, podem ser mencionados votos constantes de outros julgamentos não menos importantes, a exemplo dos Ministros Roberto Barroso (ADC 48); Gilmar Mendes (ARE 1397478), Nunes Marques, Rosa Weber, Edson Fachin, Roberto Barroso, Cármen Lúcia, Ricardo Lewandowski, Gilmar Mendes, Luiz Fux e Alexandre de Moraes (todos na ADI 5.625); Alexandre de Moraes e Nunes Marques (ADI 5.322).
Reforçam essa compreensão decisões proferidas em reclamações pelas duas turmas do STF, nas quais se negou haver estrita aderência com a citada tese, diante da existência, no processo original, dos elementos caracterizadores da relação de emprego. [3]
No TST, seis das oito turmas, em julgamentos por unanimidade, adotam posição no sentido de reconhecer a existência de distinção como premissa a afastar a aplicação da tese reconhecida em precedentes do STF [4]. Em casos de fraude na terceirização (manifestada, por exemplo, no desrespeito aos direitos sociais, previdenciários ou à dignidade do trabalhador) e presentes os elementos da relação de emprego, as seis turmas referidas reconhecem que não há aderência ao Tema 725 da Suprema Corte e admitem o reconhecimento do vínculo empregatício com o tomador de serviços.
Parece adequado afirmar que a jurisprudência dominante, atual, notória e reiterativa do TST adota a compreensão de que não há óbice ao reconhecimento da relação empregatícia na terceirização de serviços, nas hipóteses em que, a partir do exame dos fatos da causa, ficar caracterizada a ocorrência de fraude e se afirmar a presença dos elementos que a caracterizam.
Tema 725-RG e a jurisprudência do STJ: elementos de distinção
O mesmo debate travado na seara trabalhista chegou ao STJ, embora sob o viés tributário, em caso no qual a empresa ajuizou ação para obter a declaração da nulidade do lançamento de contribuições previdenciárias — estimadas, no mês de outubro de 2008, em mais de R$ 10 milhões de reais —, [5] resultantes do reconhecimento de fraude na terceirização de serviços.
Ao apreciar a controvérsia, a 2ª Turma proclamou a higidez do auto de infração. Ao fazê-lo, realçou fundamentos idênticos aos contidos na jurisprudência do TST e constatou a ocorrência de distinção para não aplicar a tese vinculante do STF, representada pela fraude na contratação por empresa interposta e reconhecimento do vínculo direto com a empresa tomadora de serviços [6] [7].
Algumas passagens do voto condutor do ministro relator, Francisco Falcão, representam os fundamentos determinantes da tese, também presentes nos demais votos convergentes (dos ministros Herman Benjamin e Afrânio Vilela), entre os quais a legitimidade da autoridade fiscalizadora para tributar os efeitos econômicos decorrentes de ocultação de documentos decorrentes da relação de emprego, a validade dos lançamentos tributários promovidos pelo auditor-fiscal, uma vez constatada a presença dos elementos caracterizadores da relação de empregatícia, a partir de autorização conferida pelo CTN (artigo 116, I), e a existência de distinção à jurisprudência vinculante do STF (ADPF 324 e RE 958.252), uma vez constatada a fraude.
Quanto a esse último fundamento, disse o relator:
“Configurada a ilicitude da terceirização, mediante pessoas jurídicas interpostas (empresas ‘de fachada’), com fraude, simulação e confusão patrimonial estas e a tomadora – principalmente na administração de pessoal –, firma-se o vínculo empregatício direto entre a tomadora e os empregados fictamente contratados pelas empresas interpostas. Incide, assim, distinção fática (distinguishing), em relação ao entendimento do Supremo Tribunal Federal, no julgamento da ADPF n. 324 e do RE n. 958.252, em regime de repercussão geral (…)
Portanto, conforme apontado pelo Tribunal de origem, ‘não há nenhum impedimento para o reconhecimento da existência de vínculo empregatício de fato entre os trabalhadores das supostas facções e a empresa demandante. Com efeito, ficou comprovado que a relação de subordinação e o recebimento da remuneração, requisitos do contrato de trabalho (Consolidação das Leis do Trabalho, art. 3º), existia de fato entre os empregados e a Lunender por meio de interpostas pessoas jurídicas, criadas para fazer formalmente as contratações de mão-de-obra.” (destaques acrescidos).
A importância dessa decisão foi destacada por Giovanni Faria Milet Brandão e Marcelo Diniz Barbosa, que chamam a atenção para os cuidados que devem ser adotados pelas empresas “na análise dos riscos de desconsideração da terceirização de suas atividades por meio de pessoas jurídica” [8].
Eles também identificam os elementos nela adotados para a configuração do vínculo laboral, o que em nada se diferenciam da realidade constatada nas decisões da Justiça do Trabalho: confusão patrimonial e operacional, subordinação e controle direto, instrumentalização e cessão de infraestrutura, formalização de empresas por ex-empregados e estrutura financeira e carga tributária.
Por fim, os autores recomendam a adoção de algumas práticas seguras de compliance e governança jurídica, que podem evitar autuações e riscos trabalhistas e tributários indesejados, como independência operacional, autonomia dos trabalhadores, estrutura financeira adequada, diversificação de clientes e documentação transparente.
Nada mais simples, claro e pode ser resumido em observar os requisitos contidos na Lei nº 6.019/1074, com as alterações promovidas pela reforma trabalhista.
Constitucionalidade da ‘norma geral antielisão’: decisão do STF
A validade do auto de infração também foi examinada a partir da conduta do auditor-fiscal, em face da previsão no parágrafo único do artigo 116, CTN, que o autoriza a “desconsiderar atos ou negócios jurídicos praticados com a finalidade de dissimular a ocorrência do fato gerador do tributo ou a natureza dos elementos constitutivos da obrigação tributária”.
Esse dispositivo, denominado pela doutrina como “norma geral antielisão”, contém, na essência, o Princípio da Primazia da Realidade, tão caro ao Direito do Trabalho, ao possibilitar afastar-se o arcabouço formal para identificar, na realidade, a presença do fato gerador do tributo, como ocorrido no caso em exame, em que se afastou o vínculo formal com a empresa prestadora e se reconheceu existente com a empresa tomadora de serviços.
Em mais esse aspecto aproximam-se os dois tribunais. Precedentes da SbDI-I, do TST, validam a atribuição de o Auditor-Fiscal do Trabalho impor penalidades administrativas, uma vez constatada a fraude na intermediação de mão de obra e evidenciada a relação de emprego [9].
Conclusão
Percebe-se existir inteira convergência entre os fundamentos adotados por turmas dos dois tribunais superiores, encarregados, ambos, da última palavra na interpretação do direito infraconstitucional, o TST no âmbito do Direito do Trabalho e o STJ em Direito Tributário, cuja atuação deve estar voltada para impedir que seja favorecido quem age em desconformidade com o ordenamento jurídico, como também afirmou o ministro Herman Benjamin no referido julgamento.
Portanto, os juízes do trabalho não interpretam a lei de modo desarrazoado, equivocado ou contribuem para a insegurança jurídica e não estão sozinhos no acolhimento da tese de distinção.
Muito pelo contrário, o Tribunal da Justiça Social encontra-se na boa companhia do Tribunal da Cidadania.
[1] BRANDÃO, Cláudio. O STF, as reclamações trabalhistas e as fraudes. Conjur. Brasília, 16 dez. 2017. Disponível em:<https://www.conjur.com.br/2023-dez-11/o-stf-as-reclamacoes-trabalhistas-e-as-fraudes>. Acesso em: 10 nov. 2024.
[2] STF, ADPF 324, Pleno, rel. min. Roberto Barroso. Disponível em: <https://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=749288586>. Acesso em: 10 nov. 2024.
[3] Rcl 62419 AgR, rel. min. Cristiano Zanin, 1ª T., em 08-11-2023; Rcl 68567 AgR, rel. min. Flávio Dino, 1ª T., em 19-08-2024; Rcl 63616 AgR, rel. min. Dias Toffoli, 2ª T., em 21-02-2024; Rcl 70280 AgR, rel. min. Gilmar Mendes, 2ª T., em 28-10-2024.
[4] Como exemplos: AIRR-0020348-69.2019.5.04.0282, 1ª T., Relator Min. Hugo Carlos Scheuermann, DEJT 17/10/2024; Ag-AIRR-11566-16.2014.5.15.0097, 2ª T., Relª. Minª. Liana Chaib, DEJT 18/10/2024; Ag-RRAg-184-16.2017.5.05.0027, 3ª T., Rel. Min. Alberto Bastos Balazeiro, DEJT 04/10/2024; ARR-800-26.2015.5.09.0002, 6ª T., Rel. Min. Augusto Cesar Leite de Carvalho, DEJT 18/10/2024; Ag-AIRR-100418-08.2016.5.01.0009, 7ª T., Rel. Min. Alexandre de Souza Agra Belmonte, DEJT 18/10/2024; e Ag-AIRR-340-42.2020.5.08.0018, 8ª T., Relª. Minª. Delaide Alves Miranda Arantes, DEJT 28/10/2024.
[5] O expressivo valor é indicativo do prejuízo efetivo causado ao erário com a prática da fraude.
[6] TRIBUTÁRIO. CONTRIBUIÇÕES PREVIDENCIÁRIAS. TERCEIRIZAÇÃO ILÍCITA. VÍNCULO EMPREGATÍCIO DIRETO COM A TOMADORA DE SERVIÇOS. CONTRATAÇÃO DE EMPREGADOS MEDIANTE INTERPOSTAS PESSOAS JURÍDICAS. INEFICÁCIA PERANTE O FISCO.(…) V – Configurada a ilicitude da terceirização, mediante pessoas jurídicas interpostas (empresas “de fachada”), com fraude, simulação e confusão patrimonial entre estas e a tomadora – principalmente na administração de pessoal – , firma-se o vínculo empregatício direto entre a tomadora e os empregados fictamente contratados pelas empresas interpostas. Distinção fática (distinguishing) em relação ao entendimento do Supremo Tribunal Federal, no julgamento da ADPF n. 324 e do RE n. 958252/MG, no sentido da viabilidade da terceirização de atividade-fim. VI – Não cabe reconhecer eficácia à conduta do contribuinte que simula negócios jurídicos com o escopo de escapar artificiosamente da tributação, dissimulando a ocorrência do fato gerador da contribuição previdenciária em seu elemento constitutivo consistente na subordinação laboral presente no vínculo firmado diretamente entre a tomadora e os empregados das empresas “de fachada”. VII – Incidência do dever fundamental de pagar tributos (arts. 145 e seguintes da Constituição Federal de 1988) (REsp n. 1.074.228/MG, Rel. Ministro Mauro Campbell Marques, Segunda Turma, DJe 5/11/2008) e, por conseguinte, da higidez do auto de infração a fim de garantir integral adimplemento do débito tributário. VIII – Recurso especial parcialmente provido. (REsp n. 1.652.347/SC, 2ª T., Rel. Min. Francisco Falcão, em 13/8/2024).
[7] Na mesma decisão, o STJ valeu-se do art. 2º, § 2º, da CLT, para reconhecer a caracterização de grupo econômico de fato e a responsabilidade solidária das empresas que o formam, quanto ao recolhimento das contribuições previdenciárias. A importância desse fundamento reside no reconhecimento da autonomia normativa da configuração do grupo econômico trabalhista (criado no longínquo ano de 1937 – Lei nº 435), a partir da regra contida na CLT para a caracterização da responsabilidade solidária das empresas componentes, o que afasta a incidência do art. 50 do Código Civil, que trata de tema diverso (desconsideração da personalidade jurídica), debate que se encontra sob exame do STF (Tema 1232).
[8] BRANDÃO, Giovanni Faria Milet; BARBOSA, Marcelo Diniz. STJ estabelece parâmetros para definição de vínculo em caso de terceirização ilícita. Conjur. Brasília, 9 nov. 2024. Disponível em:<https://www.conjur.com.br/2024-nov-09/stj-estabelece-parametros-para-definicao-de-vinculo-empregaticio-em-casos-de-terceirizacao-ilicita/>. Acesso em: 10 nov. 2024.
[9] E-ED-RR-32900-51.2005.5.03.0002, SbDI-I, Rel. Min. Aloysio Correa da Veiga, DEJT 06/12/2013; E-RR-28500-48.2006.5.14.0003, SbDI-I, Rel. Min. Claudio Brandao, DEJT 13/05/2016.
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