Caso Globo e prestação de serviços intelectuais personalíssimos: luz no fim do túnel?
15 de novembro de 2024, 9h16
A discussão sobre a possibilidade de as pessoas jurídicas prestarem serviços personalíssimos continua gerando embates entre o fisco e os contribuintes no âmbito administrativo tributário. Recentemente, o Carf (Conselho Administrativo de Recursos Fiscais) julgou caso envolvendo a empresa Globo Comunicação e Participações S.A. [1].
A partir de exame limitado às cláusulas contratuais, a autoridade fiscal alegou simulação, bem como ignorou a norma contida no artigo 129 da Lei nº 11.196/05, desconsiderando o entendimento firmado na Ação Declaratória de Constitucionalidade (ADC) nº 66, julgada pelo Supremo Tribunal Federal [2].
A Globo apresentou os contratos firmados com pessoas jurídicas, de sorte a afastar a subordinação entre as partes. Inclusive, os conselheiros do Carf entenderam que, embora houvesse algum grau de coordenação das atividades por parte da empresa de comunicação, estaria dentro dos limites normais esperados de qualquer contratação que precisa ser integrada e coordenada.
Na opinião do Carf, os contratos celebrados seriam um reflexo do estágio profissional dos titulares das empresas, tendo em vista que alguns deles já tinham sido contratados pela Globo, possuíam fama, renome e influência suficiente para tomar decisões contratuais. Por esses motivos, a tese de vulnerabilidade entre as partes restaria esvaziada.
A posição do fisco dirimida no caso Globo não é nova. Igualmente se encontra em outros casos [3], a autoridade fiscal não analisa a atividade após a contratação da pessoa jurídica.
Sustenta-se a simulação sem examinar o elemento principal que serviria para elucidá-la, qual seja: a realidade fática em dissonância com o contrato. No entanto, afirmar não significa demonstrar; a autoridade falha em comprovar a simulação.
Decisão acertada
Ora, se a própria Constituição, em seus artigos 1º, inciso IV e 170, prevê a livre iniciativa como fundamento essencial do Estado democrático de Direito, não poderia o fisco, ao arrepio do artigo 129 da Lei nº 11.196/05, desconsiderar o modelo de negócio adotado pelo contribuinte, salvo quando ficasse efetivamente comprovado o abuso da personalidade jurídica, conforme disposto pelo artigo 50 do Código Civil. O contribuinte não deve ser penalizado por planejar a sua operação da forma que lhe seja mais vantajosa, desde que esteja atento às normas contidas nos dispositivos ora discutidos.
No caso, o Carf entendeu, acertadamente, que não ficou demonstrada a simulação, pois a fiscalização analisou apenas os termos do contrato firmado entre as partes, sem, contudo, apurar a realidade fática da prestação de serviço. Em outras palavras, para atestar a simulação, devem ser analisadas casuisticamente as operações que envolvam a contratação de pessoas jurídicas para a prestação de serviços intelectuais personalíssimos. Não subsiste a alegação de simulação contratual sem investigar a realidade fática.
A esse respeito, o relator do acórdão destacou o julgamento da ADC 66, dado o reconhecimento do STF pela possibilidade de se instituir pessoa jurídica para prestar serviços personalíssimos, nos termos do artigo 129 da Lei nº 11.196/05. Portanto, admite-se ao contribuinte a liberdade de se organizar, criando sua empresa ou não, a fim de prestar serviços personalíssimos.
Antes do julgamento da ADC 66, existiam decisões esparsas que, embora não declarassem a inconstitucionalidade desse artigo 129, entendiam que deveria ser relativizada a possibilidade da contratação de pessoas jurídicas para a prestação de serviços personalíssimos nos casos em que ficasse demonstrada a relação empregatícia. Na prática, contudo, a fiscalização acabava por desconsiderar a própria dicção desse dispositivo.
Caso Globo é um marco
A insistência na alegação da simulação limitada ao exame contratual é superficial. A bem da verdade, revela um ataque ao modelo empresarial adotado pelos contribuintes prestadores de serviços personalíssimos. Esse posicionamento gera insegurança jurídica, pois restringe a livre iniciativa, tornando inoperante o artigo 129 da Lei 11.196/2005.
Daí a importância do Caso Globo ao observar a decisão da ADC 66, a qual convalidou a possibilidade, prevista pelo artigo 129 da Lei nº 11.196/2005, de profissionais optarem pelo regime tributário e previdenciário que faça mais sentido operacionalmente. Constituiu, assim, um marco para os prestadores de serviços intelectuais e personalíssimos.
Por outro lado, a ADC 66 não confere uma carta em branco ao contribuinte. Afinal, a contratação de uma pessoa jurídica para a prestação de serviços personalíssimos poderá ser invalidada caso haja evidências robustas que comprovem a simulação no caso concreto. Essa demonstração, porém, exigirá exame não apenas do contrato, mas também da realidade fática.
Sendo assim, embora o tema seja controvertido, conclui-se pelo acerto do Carf no julgamento do caso Globo. Ao considerar o teor da decisão da ADC 66, o Carf afastou a posição do fisco que, embora tenha sido rechaçada pelo Supremo Tribunal Federal, continua insistindo em questionar a própria dicção do artigo 129 da Lei 11.196/2005. A relevância encontra-se justamente em assegurar a aplicação desse dispositivo, em linha com o entendimento do STF. Espera-se que o fisco passe também a observá-lo.
[1] CARF, Ac. nº 1401-006.990, 4ª Câmara, 1ª Turma, rel. Cons. Daniel Ribeiro Silva, sessão de 10/06/2024.
[2] STF, ADC 66, Plenário, rel. min. Cármen Lúcia, publicado em 30/03/2021.
[3] CARF, Ac nº 104-20.915, 4ª Câmara, 4ª Turma, rel. Cons. Pedro Paulo Pereira Barbosa, sessão de 11/08/2005; CARF Ac nº 106-17.147, 6ª Câmara, 3ª Turma, rel. Cons. Giovanni Christian Nunes Campos, sessão de 05/11/2008; Carf, Ac nº 2402-005.703, 4ª Câmara, 2ª Turma, rel. Cons. Bianca Felicia Rothschild, sessão de 15/03/2017; e Carf, Ac. nº 2402-010.848, 4ª Câmara, 2ª Turma, rel. Cons. Ana Claudia Borges de Oliveira, sessão de 08/11/2022.
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