Direitos Fundamentais

Acordo de Paris, proibição de retrocesso e dever de progressividade

Autores

15 de novembro de 2024, 8h00

“A questão climática é a questão de nosso tempo. É a pergunta interrogante que nos lança o destino e as respostas que nós pudermos formular decidirão qual futuro terá a humanidade – ou se haverá algum futuro. Não há outra pauta, não há outro problema, não há outra questão. A emergência climática é a antessala de todas as outras” (ministro Luiz Edson Fachin) [1].

A presente semana foi marcada pelo início da COP29 da Convenção-Quadro sobre Mudança do Clima (1992), na Cidade de Baku, no Azerbaijão. Uma semana antes, Donald Trump foi eleito novamente presidente dos Estados Unidos, já anunciando, na sequência, a retirada (mais uma vez) do maior emissor histórico de gases do efeito estufa do Acordo de Paris (2015). O Instituto Copernicus da União Europeia, que monitora o clima global, já antecipou, com base em dados de janeiro a outubro, que o ano de 2024 será o mais quente desde o início dos registros históricos (1940) [2]. A esse cenário, soma-se também a contagem regressiva para a realização da COP30 em Belém do Pará, no Brasil, no próximo ano, com o reconhecimento da importância e centralidade da proteção das florestas tropicais – em particular, a Floresta Amazônica – na agenda climática.

No Brasil, o ano de 2024 já é reconhecido como aquele dos maiores desastres climáticos da nossa história. As enchentes do mês de maio no estado do Rio Grande Sul resultaram na maior tragédia climática já vista naquele ente federativo, provocando um contingente humano de mais de 600 mil deslocados climáticos e prejuízos sociais e econômicos inestimáveis. Poucos meses depois, o Pantanal, a Floresta Amazônica, o Cerrado e – pasmem! – até o interior do estado de São Paulo arderam em chamas, com incêndios florestais recordes – muitos suspeitos de serem criminosos –, os quais foram impulsionados por uma das piores secas históricas verificadas nas regiões pantaneira e amazônica. O novo normal climático chegou para valer no Brasil em 2024.

O cenário descrito, tal como reconhecido no voto-vogal do ministro Fachin da ADPF 708/DF (Fundo Clima) referido anteriormente, revela a conformação de um verdadeiro “estado de emergência climática”, o que reforça a aplicação do Acordo de Paris no plano jurídico doméstico, tomando como premissa um sistema normativo convencional ancorado tanto no princípio da proibição de retrocesso quanto no princípio da progressividade.

Mudança climática e direitos humanos

Antes de avançar na discussão, é importante referir que o Acordo de Paris promoveu a incorporação de uma dimensão climática ao Direito Internacional dos Direitos Humanos – e, por outro lado, uma abordagem de direitos humanos ao Direito Internacional Ambiental e Climático –, ao reconhecer expressamente, no seu preâmbulo, a vinculação entre mudanças climáticas e direitos humanos, dois temas que despontam como interesse comum da humanidade e que transcendem as fronteiras e os interesses nacionais:

“Reconhecendo que as mudanças climáticas são uma preocupação comum da humanidade, as Partes devem, ao tomar medidas para enfrentar as mudanças climáticas, respeitar, promover e considerar suas respectivas obrigações em relação aos direitos humanos, direito à saúde, direitos dos povos indígenas, comunidades locais, migrantes, crianças, pessoas com deficiência e pessoas em situação de vulnerabilidade e o direito ao desenvolvimento, bem como a igualdade de gênero, o empoderamento das mulheres e a equidade intergeracional”.

Mais recentemente, o Tribunal Internacional sobre o Direito do Mar (Itlos), por meio da sua Opinião Consultiva sobre “Mudanças Climáticas e Direito Internacional” (2024), reconheceu expressamente que: “as mudanças climáticas representam uma ameaça existencial e levantam questões de direitos humanos”.

Proibição de retrocesso e dever de progressividade

O Preâmbulo do Acordo de Paris reconhecer expressamente “a necessidade de uma resposta eficaz e progressiva à ameaça urgente da mudança do clima com base no melhor conhecimento científico disponível”. A referida “resposta eficaz e progressiva” é operada pelo Acordo de Paris ao estabelecer um ciclo de cinco anos de ações climáticas progressivas e, portanto, cada vez mais ambiciosas realizadas pelos países, por meio das contribuições nacionalmente determinadas (NDC), conforme previstos nos artigos 3º e 4º, consagrada não apenas o princípio da progressividade, mas igualmente o princípio da proibição de retrocesso em matéria climática.

Nas suas NDCs, os países comunicam as ações que tomarão para reduzir suas emissões de gases de efeito estufa a fim de alcançar as metas do acordo, bem como também informam as ações que tomarão para construir resiliência para se adaptarem aos impactos do aumento da temperatura. Muito embora o acordo não se refira expressamente a tais princípios, o documento opera materialmente tanto à luz do princípio da proibição de retrocesso quanto do princípio da progressividade, na medida em que é imposto aos países avançar progressivamente nas suas ambições de redução da emissão de gases do efeito estufa, tomando como parâmetro as NDCs vigentes (revistas a cada cinco anos).

Spacca

Há um imperativo de progressividade que vincula juridicamente os Estados-Membros do Acordo de Paris, tanto no plano internacional quanto doméstico, inclusive incidindo em face de agentes particulares, haja vista a eficácia entre particulares dos direitos humanos, e, em particular do direito humano ao meio ambiente e ao ar limpo, saudável e seguro, rumo ao alcance da meta de neutralidade climática, vedando, de tal sorte, o retrocesso a patamares de emissões já superados no passado. A neutralidade climática, a ser alcançada até o ano de 2050 (meados do século 21), encontra-se consagrada expressamente no Acordo de Paris, precisamente no seu artigo 4º, 1 (“alcançar um equilíbrio entre as emissões antrópicas por fontes e remoções por sumidouros de gases de efeito estufa na segunda metade deste século”).

No caso do Brasil, o cenário em questão é reforçado sobremaneira em razão do reconhecimento da hierarquia e status jurídico supralegal do Acordo de Paris e da legislação climática internacional no nosso contexto doméstico e, portanto, prevalecente em face de toda a legislação infraconstitucional (ex. Código Civil, legislação empresarial, comercial, minerária, florestal etc.), inclusive por força do controle de convencionalidade, conforme assentado na jurisprudência do STF de forma paradigmática no julgamento da ADPF 708/DF (Caso Fundo Clima) no ano de 2022 [3].

O Acordo de Paris, em razão do reconhecimento do seu status normativo supralegal, adiciona mais uma camada normativa convencional ao regime constitucional de proteção climática, notadamente no sentido de vedar qualquer medida estatal (legislativa e administrativa) que venha a fragilizar o regime jurídico de proteção climática em hoje em vigor, bem como de impor deveres que objetivem o seu fortalecimento progressivo. Os princípios da proibição de retrocesso e da progressividade em matéria climática envolvem tanto medidas voltadas à mitigação na emissão de gases do efeito estufa (ex. combate ao desmatamento florestal, ampliação do regime de áreas especialmente protegidas, como unidades de conservação, territórios indígenas, áreas de preservação permanente, reserva legal, descarbonização da matriz energética etc.) quanto aquelas atinentes à adaptação climática (ex. prevenção e resposta de desastres relacionados a episódios climáticos extremos).

De modo complementar, em informe apresentado à Assembleia Geral da ONU em que examina a necessidade urgente de ação para garantir um clima seguro para a humanidade (A/74/161), o relator especial para Direitos Humanos e Meio Ambiente do Alto Comissariado para Direitos Humanos da ONU, David R. Boyd, destaca que os Estados devem evitar a adoção de medidas retrocessivas:

“Em termos de obrigações substantivas, os Estados não devem violar o direito a um clima seguro através de suas próprias ações, devem impedir que esse direito seja violado por terceiros, especialmente empresas, e devem estabelecer, implementar e fazer cumprir leis, políticas e programas para implementar esse direito. Estados também devem evitar a discriminação e medidas retrocessivas. Todas as medidas relacionadas ao clima, incluindo as obrigações relacionadas à mitigação, adaptação, financiamento e perdas e danos, são regidas por esses princípios” [4].

No caso especialmente da legislação que busca dar operatividade ao dever constitucional de proteção climática, há que se assegurar a sua blindagem contra retrocessos que a tornem menos rigorosa ou flexível, não admitindo que voltem a ser adotadas práticas poluidoras hoje proibidas, assim como buscar sempre um nível mais rigoroso de proteção, considerando especialmente o déficit legado pelo nosso passado e um “ajuste de contas” com o futuro, no sentido de manter um equilíbrio ambiental também para as futuras gerações. O que não se admite, até por um princípio de justiça (equidade e solidariedade) entre gerações humanas, é que sobre as gerações futuras recaia integralmente o ônus do descaso ecológico perpetrado pelas gerações presentes e passadas. No contexto climático, impõe-se medidas legislativas e administrativas progressivas em termos de mitigação da emissão de gases do efeito estufa e adaptação às mudanças climáticas (já em curso e futuras).

Pacto geracional

O Acordo de Paris (2015) talvez seja um dos diplomas ambientais que coloque de forma mais clara a ideia de um pacto geracional (climático), na medida em que busca justamente, por meio da cooperação internacional, alcançar metas progressivas de longo prazo (artigo 3º e 4º) em termos de limitação do aumento da temperatura global e neutralidade climática (em relação às emissões de gases do efeito estufa) e, assim, evitar que as piores consequências do aquecimento global e das mudanças climáticas se projetem no futuro e recaiam de modo desproporcional sobre as gerações mais jovens (crianças e adolescentes) e as futuras gerações, impactando a sua vida, dignidade e direitos fundamentais.

O STF, como se pode observar da passagem que segue do voto do ministro Fux no julgamento da ADPF 760/DF (Caso PPCDAm), tem reconhecido a dimensão transgeracional dos direitos fundamentais e os direitos das futuras gerações no contexto do aquecimento global e das mudanças climáticas: “as futuras gerações têm sua liberdade e demais direitos fundamentais tolhidos pela não adoção de medidas tempestivas para frear ou mitigar as mudanças climáticas, suportando ônus excessivo do uso antecipado do ‘orçamento de carbono’. Nada ou pouco remanescerá de emissão ainda tolerável para que se respeite o limite preferencial de 1,5°C no aumento da temperatura média global, nos termos do Acordo de Paris, e se tenha maiores chances de evitar danos irreversíveis ao meio ambiente e à vida no planeta”.

Igual entendimento também se observa na jurisprudência da Corte IDH, conforme decisão recente proferida no Caso Habitantes de La Oroya vs. Peru (2023): “en un contexto de desarrollo sostenible, la equidad intergeneracional trasciende a los vivos y abarca a quienes no tienen aún existencia actual; tal como se ha señalado en el sistema universal: “la humanidad en su totalidad forma una comunidad intergeneracional en la que todos los miembros se respetan mutuamente y cuidan unos de otros, alcanzando así el objetivo común de la supervivencia de la especie humana” [5]. É imperativo, como referido pelo ministro Fachin (na ADPF 760/DF), um novo pacto constitucional transgeracional: “no Direito Ambiental, no atual quadro de emergência climática, o dever mesmo é de um novo pacto social, entre esta e as futuras gerações”.

A Corte IDH, na sentença do Caso Habitantes de La Oroya vs. Peru (2023), estabeleceu importante parâmetro quanto às obrigações de desenvolvimento progressivo em relação ao direito humano a um meio ambiente saudável. De acordo com a Corte, “a proteção internacional do meio ambiente requer o reconhecimento progressivo da proibição de tal conduta como uma norma peremptória (jus cogens) que ganha o reconhecimento da comunidade internacional como um todo como uma norma da qual nenhuma derrogação é permitida” [6].

No caso, a Corte conclui que a legislação peruana (que reduziu os valores máximos permitidos de emissão dióxido de enxofre no ar) “implicou uma medida deliberadamente regressiva na proteção do direito a um ambiente sadio, em particular no que se refere ao direito ao ar puro, o que não poderia ser justificado no contexto das obrigações internacionais do Estado em relação a suas obrigações de desenvolvimento progressivo do meio ambiente”. Segundo a Corte, o Estado peruano “não cumpriu com sua obrigação de desenvolvimento progressivo dos direitos econômicos, sociais, culturais e ambientais”.

O reconhecimento expresso, pela Corte IDH, de um direito humano ao ar puro endossa o entendimento, por nós suscitado à frente, em torno de uma dimensão climática tanto do princípio da progressividade quanto do princípio da proibição de retrocesso. Igual entendimento foi endossado no voto proferido do ministro Fux no julgamento da ADPF 760/DF,  ao assinalar que: “(…) é forçoso concluir pela existência de um estado de coisas ainda inconstitucional na proteção e preservação da Floresta Amazônica, em trânsito para a constitucionalidade, acoplando-se a essa declaração medidas remediais que permitam superar esse cenário e efetivar os direitos e os deveres fundamentais ambientais, ecológicos e climáticos” [7].

O regime jurídico climático – tanto sob a perspectiva convencional e constitucional quanto infraconstitucional – deve operar de modo progressivo, a fim de ampliar a salvaguarda da integridade e segurança climática e atender a padrões cada vez mais rigorosos de tutela da dignidade da pessoa humana e dos direitos fundamentais (neles incluído o direito fundamental ao clima), não admitindo o retrocesso, em termos fáticos e normativos, a um nível de proteção inferior àquele verificado hoje. De acordo com Canotilho, “a liberdade de conformação política do legislador no âmbito das políticas ambientais tem menos folga no que respeita à reversibilidade político-jurídica da proteção ambiental, sendo-lhe vedado adoptar novas políticas que traduzam em retrocesso retroactivo de posições jurídico-ambientais fortemente enraizadas na cultura dos povos e na consciência jurídica geral” [8]. A progressividade, por sua vez, é, como referem Ricardo Lorenzetti e Pablo Lorenzetti, a outra face do princípio da proibição de retrocesso [9], ampliando o regime jurídico de proteção ecológica, bem como limitando a esfera de discricionariedade do Estado (ex. Legislador, Administrator, Juízes e Tribunais etc.) e dos particulares.

O conceito de desenvolvimento sustentável cunhado no âmbito da Comissão Mundial sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento das Nações Unidas, por conta da publicação, no ano de 1987, do relatório Nosso Futuro Comum, estabelece que seria “aquele que atende às necessidades do presente sem comprometer a possibilidade de as gerações futuras atenderem as suas próprias necessidades” [10]. A ideia de sustentabilidade está na razão de ser da proteção climática, já que manter (e, em alguns casos, recuperar progressivamente) o equilíbrio e segurança climática implica o uso racional e harmônico dos recursos naturais, de modo a não os levar ao seu esgotamento e, consequentemente, à sua degradação. Até por uma questão de justiça entre gerações humanas, a geração presente teria a responsabilidade de deixar como legado às gerações futuras condições climáticas idênticas ou melhores do que aquelas recebidas das gerações passadas, estando a geração vivente, portanto, vedada a alterar negativamente as condições ecológicas e climáticas, por força do princípio da proibição de retrocesso ambiental e do dever (do Estado e dos particulares) de melhoria progressiva da integridade do sistema climática.

 


[1] Passagem do voto-vogal do ministro Luiz Edson Fachin no julgamento do Caso Fundo Clima pelo STF: ADPF 708/DF, Tribunal Pleno, Rel. Min. Barroso, j. 01.07.2022.

[2] Disponível em: https://climate.copernicus.eu/year-2024-set-end-warmest-record#:~:text=The%20estimate%20for%202024%20is,to%201.48%C2%BAC%20in%202023).

[3] STF, ADPF 708/DF, Tribunal Pleno, Rel. Min. Barroso, j. 01.07.2022.

[4] RELATOR ESPECIAL SOBRE DIREITOS HUMANOS E MEIO AMBIENTE DO ALTO COMISSARIADO DE DIREITOS HUMANOS DA ONU.  Informe sobre a Questão das Obrigações de Direitos Humanos Relacionadas com o Gozo de um Meio Ambiente Seguro, Limpo, Saudável e Sustentável” (A/74/161), 2019, par. 65, p. 22. Disponível em: https://documents-dds-ny.un.org/doc/UNDOC/GEN/N19/216/45/PDF/N1921645.pdf?OpenElement.

[5] CORTE INTERAMERICANA DE DIRETOS HUMANOS. Caso Habitantes da La Oroya vs. Peru, sentença de 27.11.2023, par. 141.

[6] Par. 129.

[7] Passagem do voto do Min. Luiz Fux na ADPF 760/DF (Caso PPCDAM): STF, ADPF 760/DF, Tribunal Pleno, Rel. Min. Cármen Lúcia, Red. Acórd. Min. André Mendonça, j. 14.03.2024.

[8] CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito constitucional ambiental português e da União Europeia…, p. 5.

[9] LORENZETTI, Ricardo Luis; LORENZETTI, Pablo. Derecho ambiental. Buenos Aires: Rubinzal-Culzoni Editores, 2018, p. 122.

[10] COMISSÃO MUNDIAL SOBRE MEIO AMBIENTE E DESENVOLVIMENTO. Relatório Nosso Futuro Comum…, p. 43.

Autores

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!