Ordem de derrubada de conteúdo para empresa global coloca Justiça brasileira em uma sinuca de bico
14 de novembro de 2024, 13h51
Ordens judiciais que determinam a derrubada de conteúdo por plataformas de atuação global criam, para o Judiciário brasileiro, uma situação sem uma saída ideal, uma espécie de sinuca de bico.
Por um lado, se a plataforma derruba a publicação apenas para usuários brasileiros, a decisão se torna manca, contornável pelo uso de instrumentos como a VPN (rede de comunicações privada que pode burlar restrições na internet). O abuso permanece como um problema que a Justiça não consegue resolver.
Por outro lado, a extensão da decisão para usuários estrangeiros invade a soberania de outros países, além de torná-la potencialmente inaplicável: não há instrumentos coercitivos para garantir que uma medida decidida no Brasil seja aplicada por juízes de outros países. Nos dois casos, há o risco de descrédito do Judiciário brasileiro.
Essas percepções são de especialistas entrevistados pela revista eletrônica Consultor Jurídico sobre uma recente decisão da 3ª Turma do Superior Tribunal de Justiça. Por 3 votos a 2, o colegiado entendeu que o Google é obrigado a derrubar um vídeo com conteúdo abusivo para usuários do mundo todo.
O voto vencedor, da ministra Nancy Andrighi, baseou esse entendimento no artigo 11 do Marco Civil da Internet, segundo o qual a aplicação da lei brasileira depende apenas que os dados sejam coletados no território nacional.
Ela defendeu o caráter transfronteiriço da norma, com a ideia de que, se o serviço é global, também poderá ser mundial o alcance da ordem específica de derrubada de conteúdo que seja considerado ilegal.
Conteúdo global
Para o constitucionalista Acácio Miranda da Silva Filho, a decisão do STJ obedece a lógica de um mundo moderno, em que a limitação territorial, além de não fazer mais sentido, seria facilmente driblada pelo uso de instrumentos tecnológicos.
Adotar a limitação praticada pelo Google não seria condizente com a legislação, o modo de atuação das plataformas, a certeza das decisões judiciais, a credibilidade do Poder Judiciário e outros fatores conexos que foram considerados, diz Miranda da Silva.
“Se a questão da soberania for um óbice para aplicação da lei ao caso concreto, especialmente em mundo globalizado e em temas envolvendo a internet, acho que nós estaríamos com uma Justiça capenga.”
Autor do livro Globalização e Direito, o constitucionalista Antônio Celso Baeta Minhoto segue a mesma linha ao apontar que o voto da ministra Nancy tratou de não transformar a decisão em letra morta para o Google.
Em sua análise, se uma empresa ou pessoa do Brasil, ou de qualquer outro país, foi de algum modo lesada em sua imagem, honra, nome ou intimidade, é razoável que essa ação dolosa seja eliminada globalmente.
“Não está havendo um abuso jurisdicional do Brasil, mas a busca de um alcance e efetividade compatíveis com um serviço de atuação global. O ambiente de internet é volátil por si mesmo. Ter de acionar termos de protocolos e tratados internacionais de cooperação tornaria a decisão inócua do ponto de vista prático.”
Já Márcia Ferreira, gerente do núcleo de Privacidade e Proteção de Dados do escritório Nelson Wilians Advogados, afirma que ignorar a dimensão global de provedores como o Google, que se beneficiam de dados coletados localmente, pode enfraquecer a eficácia da proteção de direitos fundamentais.
Para ela, o conflito de jurisdições pode ser mitigado se ficar entendido que a ordem judicial brasileira não impõe que os sistemas jurídicos estrangeiros aceitem ou reconheçam a decisão, mas exige que o provedor, sujeito à jurisdição brasileira, a cumpra globalmente e derrube o conteúdo.
“O provedor, portanto, tem a obrigação de adaptar suas operações para cumprir com decisões judiciais específicas de cada jurisdição. Essa abordagem, embora inovadora e potencialmente controversa, reflete a realidade de um ambiente digital interconectado, mas exige cautela para evitar conflitos desnecessários entre legislações.”
Quem vai garantir?
E esses conflitos serão inevitáveis, na visão da corrente vencida na 3ª Turma. Para o ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, o caso dá eficácia extraterritorial a uma decisão brasileira perante outros Estados soberanos, em detrimento das regras de jurisdição internacional.
O Brasil não tem como garantir que a decisão será cumprida, segundo o ministro Marco Aurélio Bellizze. “E se mandarmos tirar aqui e eles não cumprirem lá? Se a gente tem a força (para dar a ordem), mas não tem a arma (para fazê-la cumprir), eu tenho dificuldade (em admitir esse tipo de decisão)”, disse no julgamento.
Na opinião do constitucionalista Antonio Carlos de Freitas Jr., o fato de a decisão brasileira ser contornável para usuários no exterior não dá ao Marco Civil da Internet poder e alcance maior do que realmente tem.
Além disso, ele defende que a soberania dos países não pode ser relativizada por nenhuma ação do Judiciário de outra nação, mesmo que esteja em estatura legal e até mesmo em estatura constitucional.
Assim, o maior perigo não é só deturpar a estrutura jurídica ou criar certo embaraço nas relações internacionais brasileiras, mas criar decisões impossíveis de serem cumpridas, descredibilizando o Judiciário brasileiro.
“Determinar que uma empresa estrangeira mude seu comportamento em território estrangeiro é invadir a soberania desse Estado, por mais que envolva dado coletado em território nacional. Além de invadir no plano teórico, invade no plano prático. Como será a intimação dessa pessoa jurídica no território estrangeiro?”, questiona Freitas Jr..
O advogado acrescenta que a própria noção do limite de jurisdição ficará relativizada, por meio de decisões impossíveis de serem cumpridas, geradoras de tensões nas relações internacionais e confusão na atuação do Judiciário.
“É urgente a evolução dos tratados sobre esse assunto e de uma regulação global para problemas globais. Qualquer remendo nacional, além de faltar sentido lógico jurídico, padecerá de completa inaplicabilidade prática.”
Precedente perigoso
O voto do ministro Cueva também aponta para uma consequência grave: a decisão é um precedente com potencial para gerar uma infinidade de decisões pelo Judiciário brasileiro em detrimento das regras de Direito Internacional, construídas exatamente para permitir uma convivência harmônica entre sistemas jurídicos pelo mundo.
Acácio Miranda da Silva Filho diz que a preocupação faz sentido em termos práticos, apesar de se esperar dos magistrados brasileiros alguma razoabilidade. Ele afirma que não dá para deixar de aplicar a lei no caso concreto pelo receio de que outros abusem dessa prerrogativa.
“A gente precisa levar em consideração o fato de ser uma decisão recente, nova e atual. Resta saber se ela vai se sustentar no próprio STJ, de que forma o Supremo Tribunal Federal vai olhar para isso e como as plataformas vão entende-la”, contemporizou.
Márcia Ferreira também vê a possibilidade de o precedente levar a um excesso de decisões judiciais brasileiras com impacto extraterritorial, o que poderia gerar conflitos com os princípios do Direito Internacional Privado.
“Essa abordagem amplia significativamente a responsabilidade de plataformas globais, criando incertezas jurídicas e operacionais para provedores que podem enfrentar ordens contraditórias de diferentes jurisdições.”
“O ideal seria buscar mecanismos de cooperação internacional mais robustos e o fortalecimento de acordos multilaterais que permitam a execução coordenada de decisões judiciais, evitando tanto o isolamento jurídico quanto a imposição unilateral de normas”, acrescentou a advogada.
REsp 2.147.711
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