O MP (também) será multado por agravos manifestamente inadmissíveis?
14 de novembro de 2024, 8h00
Abstract: mais: o MP será multado por denúncias ineptas? Ou muito extensas?
Em seu blog jurídico, Caio Paiva faz a seguinte provocação:
“A segunda turma do STF tem aplicado a multa do art. 1021 Parágrafo quarto do CPC a casos de agravos em recursos extraordinários, em matéria penal, manifestamente inadmissíveis ou improcedentes, tudo em votação unânime. Contando desde agosto já existem 15 decisões colegiadas nesse sentido. Todas elas relatadas pelo ministro André Mendonça e com votação unânime. O CPC exige decisão fundamentada. A segunda turma não tem fundamentado adequadamente essas decisões. E ainda o CPC destina a multa ao agravado – que no processo penal é o Ministério Público. Há muitos casos de agravo em recursos extraordinário interpostos pelo Ministério Público que também são manifestamente em cabíveis ou são julgados em procedentes em votação unânime. O STF irá aplicar o entendimento e multar o MP?”
Instigante o tema. O papel da doutrina é o de buscar soluções e estabelecer o diálogo. Este, como sempre, é o meu objetivo.
De fato, há muitas decisões de relatoria do ministro André Mendonça, da 3ª Turma do STF, aplicando, por analogia, o artigo 1021, parágrafo 4º, do CPC. Isto é, casos penais sendo regidos pelo CPC. Em um dos casos que encontrei (AgRg no Agr. em RExt nº 1.402.614), a fundamentação foi a seguinte:
“6. Constata-se, portanto, a total inadmissibilidade do presente agravo regimental, sendo de rigor a aplicação de multa, nos termos do art. 1.021, § 4º, do CPC (ARE nº 1.321.696-ED-AgR/MG, de minha relatoria, Segunda Turma, j. 06/06/2022, p. 29/06/2022; ARE nº 1.107.805- AgR/SP, Rel. Min. Luís Roberto Barroso, Primeira Turma, j. 13/12/2019, p. 03/02/2020; Rcl nº 45.289-AgR/DF, Rel. Min. Dias Toffoli, Primeira Turma, j. 04/10/2021, p. 30/11/2021; MS nº 37.637-AgR/DF, Rel. Min. Luís Roberto Barroso, Tribunal Pleno, j. 17/05/2021, p. 16/06/2021; e MS nº 35.272-AgRsegundo/DF, Rel. Min. Edson Fachin, Segunda Turma, j. 16/09/2020, p. 08/10/2020)”.
Ao que consta, os casos citados como fundamento (precedentes) são de outras áreas do Direito. Nenhuma é de Direito Penal. Começa por aí o problema. E o problema também parte dessa leitura que o ministro André tem feito e que é seguido por unanimidade (talvez por conta da absoluta automatização do julgamento de agravos no STF, muitos por IA, que impedem a divergência).
Aqui vão as divergências, sobretudo:
a) se a aplicação do CPC em matéria processual penal é por conta de analogia (artigo 3º, CPP), então se trata de analogia in malam partem, que não só impõe ônus financeiro ao acusado em processo penal, como também obstaculiza o acesso à jurisdição e, por via de consequência, o direito de defesa. Afinal, o que é fundamentação deficiente? O que é manifestamente inadmissível? Aliás, “manifestamente inadmissível” é termo indeterminado.
b) Ainda, indago: ao se admitir esse tipo de interpretação analógica, poderíamos também admitir a aplicação de multa por litigância de má-fé para casos de denúncias infundadas apresentadas Brasil a fora pelo MP? Oferecimento de denúncia por fato atípico enseja multa por litigância de má-fé, ou não? Pau que bate em Chico bate em Francisco. Sobre isso, certa vez um juiz, que não quis cumprir uma liminar, quis acusar um aluno meu de doutorado de litigância de má-fé. Evidentemente que não foi acatada, com base nesse posicionamento do STJ:
“PENAL. PROCESSUAL PENAL. ART. 299 DO CÓDIGO PENAL. FALSIDADE IDEOLÓGICA. EMBARGOS DE DECLARAÇÃO. LITIGÂNCIA DE MÁ-FE NA SEARA PENAL. APLICAÇÃO DE MULTA. IMPOSSIBILIDADE. APELAÇÃO PROVIDA. 1. De acordo com entendimento do Superior Tribunal de Justiça, não se admite a imposição de multa por litigância de má-fé na seara penal, uma vez que sua aplicação constitui analogia in Malan partem. Além disso, tal imposição não prevista expressamente no Processo Penal, implicaria prejuízo para o réu na medida em que inibiria a atuação do defensor” (AgRg nos EDcl nos EAREsp 316.129/SC; PET no AgRg no AgRg nos EAREsp 619.952/SP) 2. Apelação provida (ACR 0040331-13.2011.4.01.3900, desembargadora federal MONICA SIFUENTES, TRF-1 – 3ª Turma, e-DJF1 29/3/2019).
c) O STJ deixa claro essa questão. Trata-se de analogia in malam partem. E nesse tipo de caso, o STJ é o encarregado de dar sentido à lei ordinária. De todo modo, a multa pela inadmissibilidade é destinada à parte agravada, isto é, ao MP. Só aí já se vê a impossibilidade de se fazer a analogia. Por qual razão o MP poderia ser o destinatário da multa a ser paga pelo recorrente? Se sim, então também terá que pagar multa em casos em que manejar agravos de forma inadmissível. Ou o MP não interpõe recursos manifestamente incabíveis? No ponto, o STF não faz apenas analogia in malam partem, como também cria uma figura que é inadmissível no direito brasileiro, inclusive invadindo a competência do Poder Legislativo.
Numa palavra, tudo isso confirma aquilo que venho escrevendo aqui na ConJur e em outros foros: há uma contínua subversão das garantias constitucionais ao acusado em processo penal. Há uma fragilização do direito de defesa, bastando ver as recentes decisões relacionadas ao Tribunal do Júri. Aplicar uma multa de Direito Processual Civil no processo penal é retroceder alguns anos, em que se fazia uma indevida teoria geral do processo, que muitos males causou ao Brasil. Como é possível defender uma teoria geral do processo, quando a matéria penal e a matéria civil têm objetos tão díspares? Se a defesa ingressar com agravo manifestamente incabível, não parece ser a melhor resposta a aplicação de multa pecuniária. Não parece adequado usar o direito processual civil para resolver problemas do processo penal. Deve haver modos próprios do processo penal para isso. Bens disponíveis são bem diferentes de direitos de liberdade.
Além disso, o Poder Judiciário não está autorizado a construir jurisprudências defensivas. Mesmo que seja por unanimidade.
Tudo contra a defesa. Ao mesmo tempo, nenhum ônus é imposto ao Estado-Acusador. Recentemente, um Procurador Regional Eleitoral, diante de uma sentença absolutória, pediu a juntada de provas em segundo grau, acreditem, em nome da “verdade real” e ainda “determinou” que o MP de primeira instância reabrisse a investigação. O que pode ser mais ilegal que isto? Isso não é manifestamente inadmissível? Isso não é litigância de má-fé? Não deve haver multa nesse caso, fazendo uma analogia da analogia?
A necessária discussão no plenário do STF para uma resposta adequada ao processo penal e a CF
Em termos de papel doutrinário – e a presente coluna tem, como sempre tem sido, o objetivo de buscar o diálogo e a sadia crítica acadêmica -, penso que o STF deveria enfrentar essa questão para, em plenário, sedimentar o entendimento do óbvio: multa só se admite em direito processual civil. Estender essa intelecção para o penal constitui analogia in malam partem. Para além dos julgamentos automáticos em plenário virtual, necessitamos de uma discussão aberta em plenário.
A propósito, vi uma decisão do STJ indeferindo, monocraticamente e de plano, um habeas corpus elaborado com excesso de páginas. OK. A questão é: uma denúncia com mais de 100 ou 150 páginas…pode? É caso de inépcia?
Chicos e Franciscos…
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