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Indefinição sobre cadeia de custódia para provas digitais gera risco de nulidades

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14 de novembro de 2024, 8h49

Cabe ao Estado comprovar a integridade e a confiabilidade das provas por ele apresentadas, inclusive quando elas tiverem natureza digital. O problema é que ele não sabe, nem decidiu ainda, como fazer a devida cadeia de custódia do material probatório virtual.

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Órgãos de investigação ainda não têm procedimento estabelecido para garantir cadeia de custódia da prova digital

O debate sobre a forma de coleta, manuseio e apresentação de evidências digitais já alcançou as cortes superiores brasileiras, mas vem esbarrando em dificuldades técnicas e normativas.

A necessidade de conservação do corpo de delito é uma premissa fixada na redação original do artigo 158 do Código de Processo Penal. A partir dela, o Judiciário já vinha anulando provas desastradamente manuseadas por investigadores.

A cadeia de custódia só foi sistematizada de maneira expressa pelo pacote “anticrime” (Lei 13.964/2019), com uma listagem de procedimentos para garantir a confiabilidade e, consequentemente, a prestabilidade da prova.

As provas digitais, porém, carecem de uma sistematização parecida. A partir da inserção do artigo 158-A e seguintes no CPP, é possível dizer que a cadeia de custódia digital precisa ser devidamente documentada. A dúvida é como fazer isso.

O tema foi abordado na palestra da ministra Daniela Teixeira, do Superior Tribunal de Justiça, durante o XVII Congresso Internacional de Direito Constitucional, sediado pelo Instituto Brasileiro de Ensino, Desenvolvimento e Pesquisa (IDP), em Brasília.

Ela destacou que sem lei, normativas ou mesmo jurisprudência, os órgãos de persecução penal não sabem como resguardar a prova digital, nem conseguem antever como o Judiciário vai entender o que deveria ter sido feito com esse material.

“É muito urgente que a legislação trate do tema. Temos de ter uma lei que diga o que fazer com as provas digitais, qual o meio correto de registrá-las, para que tenha validade e não seja anulada lá na frente por não ter sido feito da maneira correta”, disse a magistrada.

Código hash e ABNT

Enquanto a normativa não sai, o STJ vem traçando diretrizes. No RHC 143.169, a 5ª Turma da corte anulou as provas digitais contra uma organização criminosa especializada em furtos eletrônicos contra instituições financeiras.

Naquele caso, houve uma busca e apreensão autorizada judicialmente. O problema é que as máquinas apreendidas foram periciadas primeiro pelos bancos vítimas dos furtos e, depois, pela polícia. Por esse motivo, o colegiado reconheceu a quebra da cadeia de custódia.

Autor do voto vencedor no julgamento, o ministro Ribeiro Dantas apontou que mesmo a perícia da polícia não teve a mínima documentação de como foi feita. O voto não indicou os caminhos que deveriam ter sido seguidos, mas citou uma possibilidade: o uso do código hash.

Trata-se de uma espécie de marca d’água eletrônica aplicada sobre determinadas informações digitais e que corresponde exclusivamente a elas. Ao final do trânsito dessas informações, qualquer alteração vai gerar um código hash diferente.

Já no HC 828.054, a mesma 5ª Turma declarou inadmissíveis como provas os prints da tela do celular de um homem condenado por tráfico de drogas. Com autorização judicial, os policiais abriram um aplicativo de conversas e fotografaram a tela.

Daniela Teixeira 2024

Ministra Daniela Teixeira, do STJ, discursa sobre o tema em evento do IDP

Relator daquele caso, o ministro Joel Ilan Paciornik sugeriu um método fixado pela Associação Brasileira de Normas Técnicas (ABNT) no NBR ISO/IEC 27037:2013 como forma de padronizar o tratamento de evidências digitais.

O método da ABNT inclui o uso de código hash e de software confiável, auditável e amplamente certificado para extração. É importante documentar cada etapa da cadeia de custódia, inclusive para saber quem manipulou a prova.

O uso de softwares adequados para a extração e registro de provas digitais foi o que levou a 6ª Turma do STJ a validar conversas obtidas em telefones celulares de suspeitos no julgamento do RHC 195.921. Naquele caso, a defesa se insurgiu contra a ausência de perícia. No entanto, o relator, ministro Rogerio Schietti, apontou que, com ajuda do programa, a extração de dados de aparelho celular é uma atividade de mero espelhamento da informação ali existente, para a qual não se exige formação específica.

Melhor definir logo

Para Juliana França David, criminalista sócia do escritório França David e Barreto Advogados, é extremamente necessário que se estabeleça um procedimento específico que torne a cadeia de custódia da prova digital auditável.

“Precisamos considerar a volatilidade e facilidade de alteração de arquivos digitais. Caso tenhamos o passo a passo para manuseio dessa prova já pré-estabelecido, e seja imposta a obrigação de documentar todas as instâncias de manejo dessa prova, a verificação acerca da manutenção da cadeia de custódia se torna mais fácil.”

Segundo a advogada Giovanna Zanata Barbosa, sócia do Zanata & Calbucci Advogados Associados, é exatamente o fato de as provas digitais serem facilmente alteráveis que torna recomendável a adoção de procedimentos como o uso do código hash.

“Para que se obtenha uma prova lícita e legítima, há de haver a documentação de todo o caminho percorrido por esse elemento probatório, desde a sua colheita até a sua apreciação pelo Poder Judiciário.”

“E, por se tratar de prova digital, é essencial que, após a realização da perícia, o equipamento do qual a prova foi extraída não seja descartado, a fim de que seja possível às partes contestar a perícia realizada”, acrescenta Giovanna.

Na mesma linha, o delegado de Polícia Leonardo Marcondes Machado sugere que o tema seja motivo de resolução do Ministério da Justiça, para evitar que a cadeia de custódia continue como uma grande “pedra de tropeço” para o sistema de Justiça Criminal.

“As polícias, em geral, dada a enorme demanda e a precária estrutura, acabam atuando de forma completamente amadora na instrução dos casos penais, o que representa um sério risco à própria ideia de justiça pela fragilidade do conjunto probatório que é tomado por base para as decisões criminais.”

Espelhamento do WhatsApp

Entre as maneiras de tratar a cadeia de custódia da prova digital no processo penal, há uma que gera especial preocupação: o método do espelhamento do aplicativo de mensagens WhatsApp.

Ele ocorre nos casos em que os investigadores utilizam um QR Code para acessar o aplicativo por meio de um segundo dispositivo. Ao fazerem isso, eles ganham não apenas o acesso às conversas mais recentes, mas também a possibilidade de editar, alterar ou criar conteúdo.

Apesar disso, até o momento a postura do Judiciário tem sido de presumir a validade das provas recolhidas dessa maneira. O STJ tem acórdãos adotando essa posição e até o Tribunal Superior Eleitoral seguiu essa linha.

Para Giovanna Barbosa, no entanto, o método do espelhamento do WhatsApp invalida a prova produzida, pois esse tipo de colheita fere a cadeia de custódia, uma vez que as ações não deixam vestígios.

“O aplicativo é criptografado e não deixa salvas eventuais modificações”, afirma ela. Contestar a presunção de validade dessa prova, por outro lado, pode ser extremamente difícil. “Seria exigir da parte a produção da chamada prova diabólica.”

Leonardo Machado defende que simplesmente não há como presumir a validade de uma prova digital. “Isso não significa pressupor a má-fé de quem quer que seja, mas simplesmente fazer valer a exigência legal de controle epistêmico e admissibilidade probatória pela via da cadeia de custódia.”

E Juliana David define o método do espelhamento como terreno muito fértil para ilegalidades e, certamente, um cenário temerário para qualquer um que seja alvo de uma autorização dessa natureza.

“Como se pode presumir a integridade de uma prova independentemente da adequada documentação da sua cadeia de custódia? E, pior, exigir que se demonstre a adulteração dessa prova — a qual, pela própria natureza da prova digital, costuma ser indetectável?”, indaga a advogada.

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