ADI nº 2.135/DF: da decisão do STF sobre regime jurídico único
14 de novembro de 2024, 8h00
Em 1988, quando promulgada a Constituição, havia a previsão, no artigo 39, caput, do Regime Jurídico Único (RJU), expressão jurídica que causou, de pronto, imensa polêmica. Tendo em vista a ausência de clareza do texto constitucional, parcela dos estudiosos defendeu, por exemplo, que o ente federativo poderia adotar o regime que compreendesse adequado na administração pública direta, autárquica e fundacional, desde que único; e, lado outro, havia também, ilustrativamente, quem entendesse que, com o comando constitucional, imposto estava o regime jurídico estatutário [1].
Enfim, foram várias foram as correntes doutrinárias a respeito. Prevaleceu a que entendia que o RJU seria sinônimo de regime estatutário. Ou seja, excetuadas as empresas estatais, que, por sua natureza de pessoas jurídicas de direito privado, teriam vínculos trabalhistas — regidos pela CLT —, as demais pessoas jurídicas da administração pública teriam que adotar o regime estatutário.
Estatutários são os que, ao tomarem posse em seus respectivos cargos, após aprovação em concurso público, aderem ao conjunto de deveres, direitos e benefícios constantes das leis específicas municipais, estaduais e federal. Assim, a eles não se aplica a CLT, mas um regime fundamentado em um estatuto próprio que, por sua vez, deve ser criado por intermédio de lei; por conseguinte, enquanto o regime celetista é baseado em uma relação contratual, o regime estatutário é lastreado por uma relação funcional.
Em 1998, por meio da Emenda Constitucional nº 19/98, a expressão referente à unicidade dos regimes foi eliminada da Constituição. Em sintonia, a mesma EC deixava claro a quem se destinava a estabilidade — apenas aos servidores públicos ocupantes de cargo efetivo — e quais as hipóteses taxativas em que o benefício (não privilégio!) seria perdido, quais sejam:
1) em virtude de sentença judicial transitada em julgado;
2) mediante processo administrativo em que respeitada a ampla defesa;
3) mediante procedimento de avaliação periódica de desempenho, nos termos a serem delimitados em lei complementar;
4) para fins de respeito aos limites de gastos financeiros firmados em legislação complementar, tão somente se insuficientes a exoneração de servidores não estáveis e a redução em pelo menos 20% das despesas com cargos em comissão e funções de confiança (hipótese contida no artigo 169).
Clareava-se, ademais, em definitivo, que o instituto da estabilidade não se estenderia aos empregados públicos, não importando que a eles também se aplicasse o ingresso via concurso público.
De toda sorte, fato é que a EC nº 19/98 tinha como objetivo principal a expressa inclusão do princípio da eficiência na lista de princípios vetores da administração pública e, com ele, várias alterações irmanadas pela busca de flexibilidade e de contenção de gastos com pessoal. Nesse sentido, buscou a reforma administrativa de 1988, especialmente, a adoção de uma administração pública gerencial, preocupada com o rendimento funcional, com a presteza, com o controle de gastos e, em suma, com a eficiência administrativa.
Mudança na Constituição
A específica mudança na Constituição, com a retirada do texto que mencionava o RJU, foi levada ao STF (por intermédio da ADI nº 2.135/DF, sustentada pelo PT, pelo PDT, pelo PCdoB e pelo PSB), curiosamente, em função da mesma EC 19/98. Isso porque o argumento era de um intrínseco vício formal na produção da referida emenda, qual seja, a ausência da aprovação em dois turnos por três quintos dos votos dos parlamentares na Câmara dos Deputados e no Senado, procedimento imprescindível para a alteração do texto constitucional.
Em 2007, o STF conferiu liminar suspendendo temporariamente a eficácia da alteração, retornando-se, pois, o RJU; e, recentemente, o colegiado decidiu o mérito da ação de controle concentrado, e, por maioria, entendeu constitucional a Reforma Administrativa de 1998, julgando improcedente o pedido formulado na ADI.
E quais são as consequências?
Com o fim do RJU, abre-se em definitivo a porta para a adesão do regime celetista no serviço público, que não gera estabilidade, aproximando-se a realidade dos entes federados, suas autarquias e fundações públicas àquele cenário adotado nas empresas estatais. Portanto, é possível que novos concursos públicos prevejam o emprego público como o regime a ser seguido, ainda que outras parcelas do serviço público da mesma unidade federada sejam guiadas pelo regime estatutário. Ou seja, permite-se a mescla de regimes jurídicos na administração pública, algo que o Regime Jurídico Único pretendeu, inicialmente, abolir.
Como fica a ausência de estabilidade
A ausência de estabilidade não significa, claro, dispensa sem motivo e nem autoriza perseguições políticas e pessoais. O ato de demissão de um empregado público é um ato administrativo e, por isso, deve respeitar os princípios da motivação e da finalidade: as razões de fato e de direito devem ser expostas e, além disso, obviamente, são vedadas demissões lastreadas em caprichos individuais, sendo o interesse público, sempre, a finalidade última a ser perseguida.
O ingresso continua a ocorrer via concurso público, salvo nas hipóteses constitucionalmente previstas, a exemplo dos cargos comissionados, nos termos do artigo 37, II, da Constituição:
“A investidura em cargo ou emprego público depende de aprovação prévia em concurso público de provas ou de provas e títulos, de acordo com a natureza e a complexidade do cargo ou emprego, na forma prevista em lei, ressalvadas as nomeações para cargo em comissão declarado em lei de livre nomeação e exoneração.”
São impertinentes, portanto, as afirmações leigas no sentido de que a decisão do STF teria o condão de acabar com a exigência do concurso público, regra constitucional que, em si, resta intacta.
Os atuais servidores estatutários continuarão a sê-lo. Não entendemos possível a produção retroativa de efeitos. No caso, vale dizer, não pode ser aplicada a jurisprudência já consolidada segundo a qual o servidor público não tem direito adquirido a regime jurídico: isso porque não se está a defender a imutabilidade da relação funcional do servidor público estatutário, senão a manutenção dos pressupostos que, anteriormente, foram previstos em um edital de concurso público, o que deve ser respeitado à luz dos princípios da confiança legítima e da vinculação ao instrumento convocatório.
Assim, os direitos e deveres previstos na relação estatutária podem até ser modificados, todavia, a natureza do vínculo, bem como a sua essência, o seu âmago, devem ser resguardados. Não há como equiparar a magnitude da alteração dos direitos e deveres de um vínculo de trabalho com a alteração da natureza jurídica de uma relação que foi fundada por um legítimo e preliminar instrumento convocatório. De qualquer modo, doravante, os estatutários conviverão (se é que já não convivem) com empregados públicos que exercerão a mesma atividade. A discussão sob o argumento da isonomia pode persistir.
Risco do fim do vínculo estatutário
Sob o ponto de vista prático, é de se pensar sobre os efeitos desaparecimento paulatino do vínculo estatutário, que tem na independência funcional, essencial para a consecução do interesse público, nota distintiva. Sobre isso, destacam-se as acertadas lições de Fabrício Motta, que merecem transcrição:
“A estabilidade é instituto jurídico com vocação instrumental, concebido para garantir o desempenho impessoal do servidor público. Trata-se de meio imaginado para impedir que a influência política (notadamente político-partidária) comprometa o desempenho da missão de bem servir o público, por temor de qualquer tipo de represália ou consequência negativa.” [2]
O cenário é ainda mais tenso em relação aos cargos que possuem funções inerentes ao controle administrativo, a exemplo dos advogados públicos municipais, dos fiscais locais, dos auditores, dentre outros [3].
São inimagináveis os prejuízos para o Estado democrático de Direito caso tais funções não tenham a devida estabilidade, justamente porque o exercício delas de maneira plena exige, exatamente, a segurança na manutenção do cargo, o que apenas a devida estabilidade confere [4]. Nesse sentido, se, por um lado, aos servidores estáveis desidiosos é preciso um maior controle, bem como punições a tempo e modo, estamos certos de que o fim paulatino da estabilidade também preocupa,
Por fim, importa relembrar que os empregados públicos estão jungidos ao Regime Geral de Previdência Social (RGPS), diversamente dos servidores ocupantes de cargo público efetivo, que, como sabido, estão vinculados, em regra, ao Regime Próprio de Previdência Social (RPPS).
Se, com a decisão do STF, os efeitos pragmáticos apontarem para uma diminuição gradual do regime estatutário — o que, embora possível, apenas o tempo poderá confirmar —, igualmente paulatina será a extinção dos regimes previdenciários próprios, sobretudo considerando que a Emenda Constitucional nº 103/19, a reforma da Previdência, proibiu a criação de novos Regimes Próprios de Previdência Social (RPPS).
Resta-nos aguardar. Desde já, entretanto, é preciso nos atentar que a questão decidida na 2.135/DF ultrapassa, e muito, as fronteiras da (in)constitucionalidade formal ou material: a sensibilidade reside, especialmente, nos aspectos práticos da decisão.
[1] Sobre isso, as reflexões de José dos Santos Carvalho Filho: “Em sua redação originária, dispunha o art. 39, caput, da CF, que União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios deveriam instituir, no âmbito de sua competência, regime jurídico único e planos de carreira para os servidores da administração pública direta, das autarquias e das fundações públicas. Muita polêmica se originou desse mandamento, porquanto, não tendo sido suficientemente claro, permitiu o entendimento, para uns, de que o único regime deveria ser o estatutário, e para outros o de que a pessoa federativa poderia eleger o regime adequado, desde que fosse único. Na verdade, nunca foi dirimida a dúvida.” Conferir: CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de Direito Administrativo. 17. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007, p. 527.
[2] MOTTA, Fabrício. Estabilidade de servidores na administração pública não é privilégio. Revista Consultor Jurídico, 31 de outubro de 2019.
[3] Há funções que, por força constitucional, naturalmente não podem ser materializadas por empregos públicos, a exemplo dos juízes, dos agentes políticos eletivos, dos conselheiros, dos ministros, dos secretários municipais e estaduais, dos defensores públicos e dos membros do órgão ministerial. Destaca-se também que há quem compreenda que os professores igualmente não podem ter os seus respectivos vínculos materializados por emprego público, mas apenas por cargo público (estatutário, portanto), diante de uma interpretação literal e gramatical do art. 40, §5º, da CF, que versa: “os ocupantes do cargo de professor terão idade mínima reduzida em 5 (cinco) anos em relação às idades decorrentes da aplicação do disposto no inciso III do § 1º, desde que comprovem tempo de efetivo exercício das funções de magistério na educação infantil e no ensino fundamental e médio fixado em lei complementar do respectivo ente federativo.”
[4] Novamente, concordamos integralmente com Fabrício Motta: “Um fiscal de rendas pode ser pressionado pelo chefe para fiscalizar e autuar empresas que não tenham contribuído para a campanha do atual Chefe do Executivo. Um agente ambiental pode ser aconselhado a fazer vistas grossas para um contundente desmatador que é parente de um Deputado. Um professor de universidade pública pode ser perseguido porque tem convicções econômicas liberais, da mesma forma que um professor de escola pública pode ser ameaçado por suas opiniões que o ligam à esquerda. Juntamente com outros instrumentos, a estabilidade configura sistema de garantia reconhecidos ao servidor em prol da sociedade: o servidor público sabe que, exercendo corretamente e de forma impessoal suas atribuições, não será demitido, punido, não terá seu salário reduzido e – eventualmente – terá até direito a uma aposentadoria justa. Só cedem os que querem; não há razão para qualquer temor jurídico-político. Se essas garantias são utilizadas por alguns como escudo para não trabalhar ou fazê-lo de forma ineficiente, o ordenamento jurídico prevê outros remédios. Só não dá para culpar o remédio pelos excessos do paciente.” Conferir: MOTTA, Fabrício. Estabilidade de servidores na administração pública não é privilégio. Revista Consultor Jurídico, 31 de outubro de 2019.
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