Papel do STF na homologação do acordo de reparação do desastre de Mariana
13 de novembro de 2024, 19h20
O plenário do Supremo Tribunal Federal referendou a homologação de acordo de grande abrangência para a reparação dos danos causados pelo rompimento da barragem de Fundão, em Mariana (MG) (Petição 13.157/DF). Este acordo, que denominamos de “acordo guarda-chuva” ou ainda “acordo de abrangência nacional”, estabelece um marco para a reparação dos danos ambientais e sociais em escala nacional, fornecendo uma estrutura jurídica robusta que permite que as vítimas do desastre, incluindo comunidades indígenas e quilombolas, optem por uma adesão voluntária.
Esse modelo de resolução de conflitos, amplamente explorado no nosso livro “Mediação nas Cortes Superiores: Da Teoria à Prática”, lançado pela Editora Thoth em 2023 [1], demonstra a importância da celebração de acordos nacionais para a eficiente resolução de demandas coletivas. A homologação, referendada pelo plenário do STF, dá respaldo a um modelo capaz de extinguir milhares de ações individuais pela adesão a este acordo abrangente e definitivo, trazendo significativas implicações para o sistema judicial.
A homologação pelo STF garante segurança jurídica especialmente para as fontes pagadoras das indenizações. Para aqueles que aderirem terão suas demandas individuais resolvidas sem a necessidade estabelecer tentativas de acordos individualizados. Esse modelo de “acordo guarda-chuva” permite, assim, que os tribunais se concentrem em litígios ainda não julgados e desonera o Judiciário, facilitando o encerramento das controvérsias de maneira mais célere e padronizada. O STF, ao chancelar essa solução coletiva, reafirma o valor do diálogo e da autocomposição na jurisdição constitucional, para questões de interesse público, especialmente em casos de grande impacto social e ambiental.
O objeto do acordo é a renegociação de todas as medidas, programas, responsabilidades e obrigações assumidas pela Samarco, por suas acionistas e pela Fundação Renova em decorrência do rompimento da barragem e seus desdobramentos. O acordo prevê o desembolso total de R$ 170 bilhões [2].
Garantia para aplicação de recursos
Além de agilizar a reparação, esses acordos garantem um mecanismo de monitoramento, por meio da governança judicial, que é essencial para a transparência e para assegurar que os recursos sejam efetivamente aplicados conforme o planejado. Esse monitoramento será conduzido pelo Tribunal Regional Federal da 6ª Região, o que oferece uma camada adicional de supervisão sobre a execução das medidas reparatórias [3], a exemplo do caso Brown II [4], julgado pela Suprema Corte Americana, que também determinou o monitoramento do cumprimento da decisão pelos tribunais inferiores.
Importante também levantar algumas críticas ao acordo. A validade e a legitimidade desse modelo de acordo podem ser questionáveis, considerando a ausência de escuta prévia e adequada das comunidades indígenas e quilombolas durante as negociações.
Esses povos não foram ouvidos para a construção do acordo. Para eles não há que se falar em acordo, mas, sim, uma mera oferta pública de pagamento de valores, os quais foram estabelecidos sem participação dessas comunidades. A participação do Ministério Público Federal e das Defensorias Públicas não legitima a representação dos indígenas e dos quilombolas porque não se pode confundir legitimidade de parte com representação adequada nos processos estruturais, conforme alertam Martin H. Redish e William J. Katt [5], Victor Petrescu [6], Vitorelli [7], Mark A. Perry [8], E. Samuel Geisler e R. Jason Richards [9], Melina Faucz Kletemberg [10], Robert G. Bone e David S. Evan [11], Sérgio Arenhart [12] e tantos outros.
Nesta mesma ação estrutural decorrente da barragem de Mariana já há exemplos de ausência de representação adequada das vítimas. As deficiências do TTAC firmado em 2016 quanto à participação inefetiva dos atingidos na construção da solução extrajudicial do litígio e sobretudo no que diz respeito a sua representatividade adequada por meio das instituições de justiça do Ministério Público Estadual e Federal e da Defensoria Pública, as quais foram igualmente deixadas de fora da elaboração do acordo foi analisada também por Giselly Moreira e Mendes Gomes [13].
Correção de falhas no acordo inicial
Segundo os autores, o aditivo assinado em 2018 corrigiu falhas do primeiro acordo, porque, no segundo, houve a participação de Ministério Público Federal, Ministério Público Estadual de Minas Gerais, Ministério Público Estadual do Espírito Santo, Defensoria Pública da União, Defensoria Pública de Minas Gerais e Defensoria Pública do Espírito Santo, representando uma mudança no paradigma de escuta das vozes dos atingidos e na estrutura de governança pensada anteriormente para a Fundação Renova, através da implementação de mecanismos externos de controle da Fundação como as Comissões Locais, Câmaras Regionais e Fórum e Observadores [14]. Contudo, passados alguns anos, os problemas continuaram e transbordaram neste novo acordo firmado no STF.
A consulta às comunidades indígenas e quilombolas só após a homologação do acordo é insuficiente, pois serve apenas para verificar se elas aderirão a uma transação da qual não participaram ativamente. As petições apresentadas indicam que estas comunidades não foram consultadas adequadamente antes da homologação. Portanto, ouvi-las somente após o fato reduz o processo a um mero teste de adesão, o que não constitui um diálogo legítimo que sustente a autocomposição na jurisdição constitucional. A verdadeira autocomposição requer uma participação ativa e significativa desde o início das negociações, não apenas no momento de adesão ao acordo finalizado.
Afirmar que o acordo só produzirá efeitos para aqueles que aderirem voluntariamente não aborda o impacto mais amplo que tais acordos têm sobre a comunidade como um todo. Esse modelo pode legitimar um “discurso de solução do problema”, mas na verdade não é construído sobre uma base de negociação direta e equitativa com todas as partes afetadas. A situação é agravada pelo fato de que várias associações que representam essas comunidades vulneráveis peticionaram contra a homologação do acordo, o que foi negado, levando à sua homologação.
O acordo celebrado só produzirá efeitos sobre ações judiciais em que pessoas atingidas (ou associações que as representem) postulem a indenização de danos individuais, se os titulares dos direitos aderirem às cláusulas pactuadas voluntariamente. A adesão também é voluntária no que diz respeito aos municípios atingidos (anexo 15, cláusula 7, doc. 7, fl. 16) [15]. Isto não se representa a legitimação postergada ou diferida do acordo, mas, sim, a um teste de adesão do acordo.
Demarcação de terras indígenas
Por outro lado, na mediação da ADC 87, o cacique Raoni Metuktire, líder indígena do povo Kayapó, tem desempenhado um papel ativo nas discussões sobre a demarcação de terras indígenas no Brasil. Em 2 de outubro de 2024, ele participou da audiência de mediação no Supremo Tribunal Federal (STF) sobre a Lei do Marco Temporal (Lei 14.701/2023). Nessa ocasião, estava ao lado da ministra dos Povos Indígenas, Sônia Guajajara, além de diversos outros líderes que possuem assento efetivo à mesa de negociação. A ouvida prévia para a construção de uma solução dialogada é fundamental.
A homologação pelo Supremo Tribunal Federal do acordo de reparação do desastre de Mariana representa um marco significativo na aplicação da mediação e autocomposição em conflitos de grande impacto social e ambiental. Esse acordo, ao estabelecer uma ampla abrangência e a possibilidade de adesão voluntária das vítimas, incluindo comunidades tradicionais, demonstra a potencialidade de resolver milhares de litígios individuais e desafogar o sistema judiciário. No entanto, as críticas sobre a efetiva participação e representação das comunidades afetadas nas negociações destaca a necessidade de uma evolução metodológica que assegure a legitimidade e a equidade nos processos de construção de acordos.
A decisão do STF reafirma a importância do diálogo na jurisdição constitucional, mas também sublinha que ainda há espaço para melhorar a representação adequada dos interesses das vítimas, para que o acordo transcenda a oferta pública de pagamento e se consolide como uma verdadeira solução colaborativa e inclusiva.
[1] VEIGA, Guilherme. Mediação nas cortes superiores: da teoria à prática. Editora Thoth, 2023.
[2] Item 45 do voto de homologação da Pet. de acordo.
[3] Item 226 do voto de homologação da Pet. de acordo.
[4] “The following year, the court would issue its implementation decision in Brown II, ordering federal district courts to carry out school desegregation ‘with all deliberate speed’”. WARREN, Chief Justice Earl. Brown v. board of education. United States Reports, v. 347, n. 1954, p. 483, 1954.
[5] MARTIN, H. Redish; WILLIAM, J. Katt. Taylor v. Sturgell, procedural due process, and the day-in-court ideal: resolving the virtual representation dilemmas, 84, Notre Dame L. Rev. 1877, 2009. Disponível em: [http://scholarship.law.nd.edu/ndlr/vol84/iss5/1]. Acesso em: 24.03.2021.
[6] PETRESCU, Victor. Crash and Burn: Taylor V. Sturgell’s Radical Redefinition of The Virtual Representation Doctrine, 64 U. Miami L. Rev., 735, 2010. Disponível em: [https://repository.law.miami.edu/umlr/vol64/iss2/11]. Acesso em: 24.03.2021.
[7] LIMA, Edilson Vitorelli Diniz. O devido processo legal coletivo: representação, participação e efetividade da tutela jurisdicional. Faculdade de Direito da Universidade Federal do Paraná, UFPR, 2015. p. 331.
[8] MARK, A. Perry. Issue Certification under Rule 23(c)(4): A Reappraisal, 62 DePaul L. Rev. 733, 2013. Disponível em: [https://via.library.depaul.edu/law-review/vol62/iss3/7]. Acesso em: 21.03.2021.
[9] Ibidem, p. 772.
[10] “Outra visão formalista de representação é a da representação por responsabilização a posteriori (accountability view), ou seja, pela necessidade de prestar contas ou ser responsável frente a alguém. (KLETEMBERG, Melina Faucz. A representação adequada no incidente de resolução de demandas repetitivas. 2019, p. 82. Disponível em: [https://core.ac.uk/download/pdf/225576612.pdf]. Acesso em: 22.03.2021).
[11] BONE, Robert G.; EVANS, David S. Class certification and the substantive merits. Duke LJ, v. 51, p. 1262, 2001. Disponível em: [https://heinonline.org/HOL/LandingPage?handle=hein.journals/duklr51&div=45&id=&page]. Acesso em: 27.03.2021.
[12] ARENHART, Sergio Cruz. O Ministério Público e a tutela coletiva: o advogado que queria ser juiz. MPMG Jurídico, 2008.
[13] MOREIRA, Giselly Gomes; MENDES, Ingrid Lopes Evaristo Duarte. TAC-GOV e os desafios da participação social e institucional: um olhar sobre o Caso Rio Doce. In: Anais do Congresso de Processo Civil Internacional. 2019. p. 316.
[14] MOREIRA, Giselly Gomes; MENDES, Ingrid Lopes Evaristo Duarte. TAC-GOV e os desafios da participação social e institucional: um olhar sobre o Caso Rio Doce. In: Anais do Congresso de Processo Civil Internacional. 2019. p. 316.
[15] Item 206 do voto de homologação da Pet. de acordo.
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