Execução imediata das penas do Júri: da necessária modulação dos efeitos da decisão
13 de novembro de 2024, 16h17
A recente decisão do Supremo Tribunal Federal no Tema 1.068, que estabelece a execução imediata das penas impostas pelo tribunal do júri, marca uma mudança abrupta e significativa no panorama jurídico brasileiro. Trata-se, em minha visão, de entendimento equivocado, cujos fundamentos já não vem ao caso, uma vez que, como se diz no jargão jurídico, “o Supremo tem o direito de errar por último”.
Esta decisão, com repercussão geral, fundamenta-se no princípio da soberania dos veredictos do júri, visando reforçar alegadamente a eficácia e a celeridade do processo penal. Contudo, sua aplicação a fatos anteriores à sua vigência levanta sérias dúvidas sobre sua compatibilidade com a Constituição e sobre a preservação da segurança jurídica.
A Constituição, ao consagrar o princípio da irretroatividade da lei penal mais gravosa, protege o cidadão contra o arbítrio do Estado, garantindo que alterações que agravem a punição ou as condições de execução penal não tenham efeitos sobre fatos passados. O artigo 5º, inciso XL, da Constituição, é claro ao dispor que “a lei penal não retroagirá, salvo para beneficiar o réu”.
A interpretação do referido dispositivo legal, porém, não deve se limitar às mudanças na lei penal escrita; ela deve alcançar também os precedentes vinculantes dos tribunais superiores, especialmente aqueles que constituem mudanças significativas no campo penal e que impactam os direitos fundamentais dos acusados.
Alguns poderiam dizer que a decisão do Supremo no tema 1068 teria caráter eminentemente processual, já que “apenas” adequou o previsto no artigo 492 do CPP, suprimindo a limitação da execução imediata para penas iguais ou superiores a 15 anos ampliando-a qualquer pena. Sendo assim, incidiria em processos em trâmite, regrando processualmente fatos anteriores a sua vigência (artigo 2º do CPP).
No entanto, é inegável que a referida decisão, ao antecipar a execução de pena, configura uma “novatio legis in pejus”.
Não por outra razão o próprio ministro Luís Roberto Barroso, relator do caso, enfatizou em seu voto o que, em sua visão, estava em jogo: “A hipótese é de aplicação direta e imediata da norma originária do texto constitucional, que reconheceu a instituição do Tribunal do Júri, assegurada a soberania dos seus veredictos, com a competência expressa para o julgamento dos crimes dolosos contra a vida”. E arrematou: “Considero que os fundamentos até aqui apresentados, extraídos diretamente da constituição (artigo 5o, XXXVIII, da CF/88), são suficientes para legitimar a execução imediata de condenação proferida pelo Tribunal do Júri, tendo em vista a soberania dos seus veredictos. A matéria, portanto, nem sequer necessitaria de intermediação legislativa” [1].
Decisão deve observar a irretroatividade
Fica claro que, aqui, não estamos tratando de processo penal ou de prisão cautelar, mas sim de prisão como pena definitiva. Alterações jurisprudenciais que agravem a situação do réu não podem retroagir contra ele, pois isso rompe a confiança no sistema jurídico e desrespeita a expectativa legítima de direitos, além de violar as “regras do jogo” previamente estabelecidas.
A distinção clássica entre normas penais e processuais penais, utilizada para justificar a aplicação imediata das normas processuais, esbarra em críticas importantes, como demonstra os estudos de Fernando Cesar de Oliveira Faria e Diego Renoldi Quaresma de Oliveira [2]. O sistema penal não pode ser fragmentado a ponto de dissociar as consequências processuais de uma norma dos seus efeitos sobre o direito de punir e a liberdade do indivíduo. Uma vez que a execução imediata da pena afeta a liberdade do réu antes do trânsito em julgado definitivo, torna-se impossível afirmar que essa mudança seja puramente processual, uma vez que ela impacta substancialmente o direito material à liberdade e à presunção de inocência.
O princípio da segurança jurídica impõe que o cidadão consiga prever as consequências jurídicas de seus atos conforme as normas vigentes à época em que foram praticados. Essa confiança na estabilidade do ordenamento jurídico é essencial para a legitimidade das decisões judiciais. Por isso, jurisprudências desfavoráveis ao réu devem ser aplicadas apenas de forma prospectiva, assim como ocorre com as leis penais.
Portanto, uma decisão que altera de forma substancial o tratamento da liberdade de um réu condenado no tribunal do júri deve observar o princípio da irretroatividade. Exatamente por isso, deveria o STF ter modulado os efeitos dessa nova orientação jurisprudencial (CPC, artigo 927, §3º), estabelecendo que ela só se aplique aos fatos ocorridos após a sessão de julgamento de 12 de setembro de 2024.
Com isso, o Supremo protegeria a segurança jurídica, evitaria surpresas indesejadas aos jurisdicionados, assim como coibiria o voluntarismo de alguns, que passaram a pedir a prisão de casos selecionados e já julgados [3]. A modulação garantiria que decisões desfavoráveis ao réu, como no caso do Tema 1.068, se aplicassem apenas a situações futuras, resguardando aqueles que, até então, confiavam no entendimento consolidado.
O que dizem a doutrina e a jurisprudência
Nelson Nery Júnior e Rosa Maria de Andrade Nery [4] destacam que “pelos princípios em que se baseiam o direito brasileiro, o ‘overruling’ sempre demandará modulação dos efeitos, não sendo tal modulação facultativa”. Se isso se aplica no processo civil, em que os direitos em jogo são majoritariamente patrimoniais, sua importância se intensifica no processo penal, no qual o que está em discussão é o bem maior: a liberdade do indivíduo.
Além disso, a jurisprudência internacional também sustenta a proteção do réu contra retroatividade. O Tribunal Europeu de Direitos Humanos, por exemplo, afirma que a jurisprudência consolidada integra o conceito de “direito” para os efeitos da proibição de retroatividade. Ou seja, uma alteração interpretativa que implique em gravame ao réu, mesmo que advinda de tribunal superior, não pode retroagir, preservando o indivíduo contra alterações imprevisíveis que afetem sua liberdade [5].
Este entendimento é corroborado por diversos doutrinadores [6], dentre os quais destacamos os dizeres de Juarez Tavarez, para quem “[q]uando ocorre uma variação jurisprudencial, de tal sorte que se modifique o próprio sentido da proibição ou determinação, opera-se nesses sujeitos também uma alteração quanto à orientação que devam seguir na vida social. A retroatividade dessa nova interpretação integradora implica uma verdadeira quebra de confiança na ordem jurídica, o que afeta diretamente sua liberdade de escolha e orientação. Está, claro, então, que essa alteração não pode retroagir” [7].
Nada do que está sendo exposto até aqui é novidade para o Supremo Tribunal Federal, que no julgamento do Tema 788, em que se definiu o termo inicial para a contagem da prescrição da pretensão executória do Estado a partir do trânsito em julgado para todas as partes, modulou os efeitos da decisão para que só fosse aplicada prospectivamente, jamais retroativamente.
Ao não modular os efeitos da decisão no Tema 1.068, o STF corre o risco de criar um cenário de grave insegurança jurídica, surpreendendo réus, que foram condenados com base em entendimento distinto, com uma execução penal repentina e precipitada. Além de não se coadunar com uma postura garantista do processo penal e colocar em risco equilíbrio essencial entre a efetividade da Justiça e a proteção dos direitos fundamentais.
Em conclusão, a aplicação retroativa da execução imediata das penas do tribunal do júri conflita com princípios constitucionais inegociáveis, como a segurança jurídica e a irretroatividade da lei penal gravosa. A decisão do STF deve, portanto, ser aplicada somente para fatos posteriores ao seu julgamento.
[1] STF – RE 1235340 RG, Min. Rel. Luís Roberto Barroso, Tribunal Pleno, julgado em 12/9/2024. Voto Pgs. 23/24.
[2]Disponível em <https://www.conjur.com.br/2021-set-18/opiniao-quando-prejudicial-lei-processual-penal-irretroativa/>
[3]Exemplificativamente: https://www.metropoles.com/distrito-federal/mpdft-pede-prisao-imediata-de-adriana-villela-apos-decisao-do-stf
[4] NERY JUNIOR, Nelson: NERY, Rosa Maria de Andrade. Comentários ao Código de Processo Civil. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2015, p. 1.843.
[5] MELO, João Marcos Braga. Jurisprudência mais gravosa não retroage em matéria penal. In: <https://www.conjur.com.br/2019-out-29/joao-melo-jurisprudencia-gravosa-nao-retroage-materia-penal/>
[6] SILVA, Thaila Fernandes da, e TORRES, João Guilherme Gualberto. Precedente edsfavorável não retroage. In: <https://www.conjur.com.br/2022-jun-11/opiniao-precedente-desfavoravel-nao-retroage/>
[7] TAVARES, Juarez. Fundamentos da teoria do delito. 2. ed. São Paulo: Tirant lo Blanch, 2020. p. 75.
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