Distribuidoras de combustíveis: atividade de fabricação ou revenda?
13 de novembro de 2024, 8h00
A definição da natureza das atividades desempenhadas pelas distribuidoras de combustíveis tem gerado intensos debates no cenário tributário nacional, uma vez que essa classificação impacta diretamente o regime de créditos de PIS e Cofins aplicável a essas empresas.
A atividade de mistura e formulação de combustíveis, envolvendo a combinação de gasolina Tipo A com etanol para produzir a gasolina Tipo C ou de Diesel Tipo A com biodiesel para criar o diesel Tipo B, levanta a questão: trata-se de mera revenda de combustíveis ou de uma atividade de fabricação de bens?
Essa distinção não é meramente teórica. Possui implicações diretas no regime tributário aplicável, especialmente no que tange ao aproveitamento de créditos de PIS e Cofins. A possibilidade de apuração de créditos sobre insumos e determinados gastos incorridos na atividade das distribuidoras está intimamente ligada à natureza jurídica atribuída a essas operações.
Se admitida como atividade industrial, as distribuidoras poderiam aproveitar créditos de insumos e despesas associados ao processo de formulação. Por outro lado, se caracterizadas apenas como revendedoras, esse aproveitamento de créditos seria limitado, restringindo o benefício fiscal.
No âmbito administrativo, existe um dissenso entre os órgãos fazendários sobre essa questão. A Receita Federal, como órgão fiscalizador, adota uma visão restritiva ao classificar as atividades das distribuidoras de combustíveis como meras operações de revenda, o que inviabiliza a apuração de créditos de PIS e Cofins.
Em contrapartida, o Carf (Conselho Administrativo de Recursos Fiscais), enquanto órgão julgador, reconhece o caráter transformador dessas operações e aproxima a atividade das distribuidoras do conceito de industrialização, possibilitando o aproveitamento de créditos relacionados.
Essa divergência de entendimentos evidencia a complexidade do tema e seus impactos significativos para as distribuidoras de combustíveis, que desempenham um papel essencial na transformação e adequação dos produtos antes da revenda.
A análise dessas controvérsias envolve não só aspectos tributários, mas também questões regulatórias, como as normas estabelecidas pela ANP (Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis), que definem as etapas de formulação obrigatórias para que o combustível chegue ao consumidor final com as especificações exigidas. Dessa forma, a definição da natureza dessas atividades passa pela análise jurídica dos conceitos de industrialização e fabricação, conforme definidos na legislação do IPI (Imposto sobre Produtos Industrializados), além dos regimes específicos do PIS e Cofins.
Atividades desenvolvidas pelas distribuidoras
A atividade das distribuidoras de combustíveis no Brasil envolve muito mais do que uma simples operação de compra e revenda. As distribuidoras realizam etapas no processo produtivo fundamentais para que os produtos finais — gasolina Tipo C e diesel Tipo B — atendam aos requisitos técnicos e de qualidade necessários para o abastecimento de veículos automotores.
Diferentemente de outros distribuidores atacadistas, como os de medicamentos ou alimentos, que apenas compram e revendem produtos acabados em larga escala, as distribuidoras de combustíveis desempenham uma função complexa que abrange a manipulação direta do produto-base, alterando suas características e adequando-o para o uso final. Essas operações exigem tanques e instalações específicas, controle de temperatura, cumprimento a proporções exatas de produção e o trabalho de profissionais com conhecimento técnico especializado.
Assim, embora sejam denominadas “distribuidoras”, essas empresas exercem um papel central na transformação dos matéria-base, gasolina Tipo A e diesel Tipo A, em combustíveis prontos para o consumo.
A regulamentação da ANP esclarece clara diferenciação entre os tipos de gasolina. A Resolução nº 807/2020 [1], em seu artigo 3º, define as classificações dos tipos de gasolina, destacando a especificidade de cada produto:
Classificação
Art. 3º – Resolução ANP nº 807/2020:
Gasolina A Comum: combustível produzido a partir de processos utilizados nas refinarias, nas centrais de matérias-primas petroquímicas e nos formuladores, destinado aos veículos automotivos dotados de motores de ignição por centelha, isento de componentes oxigenados;Gasolina A Premium: combustível de elevada octanagem, produzido a partir de processos utilizados nas refinarias, nas centrais de matérias-primas petroquímicas e nos formuladores, destinado aos veículos automotivos dotados de motores de ignição por centelha cujo projeto exija uma Gasolina com maior octanagem, isento de componentes oxigenados;
Gasolina C Comum: combustível obtido a partir da transformação da Gasolina A comum com Etanol anidro combustível, nas proporções definidas pela legislação em vigor; e
Gasolina C Premium: combustível obtido a partir da transformação da Gasolina A premium com Etanol anidro combustível, nas proporções definidas pela legislação em vigor.
A gasolina Tipo A, portanto, é o produto-base que, embora essencial, não pode ser utilizado diretamente em veículos, assumindo papel de matéria-base, que, ao passar pelo processo de produção que envolve a adição de etanol, se torna a gasolina Tipo C, pronta para abastecer os veículos e possibilitar o seu funcionamento.
O papel exclusivo das distribuidoras nesse processo é regulamentado pela ANP, que estabelece normas rígidas para cada etapa da cadeia de abastecimento. A agência define que cada agente — refinarias, formuladores, distribuidores e postos de revenda — possui funções específicas e restritas, podendo atuar apenas nos limites definidos pela agência e mediante licenciamento.
Segundo o artigo 4º da Resolução ANP nº 807/2020, “somente os distribuidores de combustíveis líquidos poderão realizar a adição de Etanol anidro combustível à Gasolina A para fabricação da Gasolina C,” reiterando que essa etapa de produção é reservada exclusivamente às distribuidoras.
Nesse cenário, o processo de transformação da gasolina Tipo A em gasolina Tipo C evidencia que a atuação das distribuidoras não se limita ao simples comércio. Essas empresas desempenham um papel essencial na cadeia de abastecimento, ao transformar o produto-base em um combustível específico e adequado ao uso veicular.
Dessa forma, o trabalho das distribuidoras transcende o simples armazenamento e transporte, configurando-se como um elo de produção que garante a qualidade e a segurança dos combustíveis que chegam ao consumidor final.
Divergência de entendimentos
A Receita Federal, nas Soluções de Consulta Cosit nº 99002/2022 [2] e nº 3/2021 [3], adota uma interpretação restritiva sobre a natureza das atividades realizadas pelas distribuidoras de combustíveis, classificando-as como operações de “mera revenda”.
Segundo esse entendimento, as atividades das distribuidoras, que incluem a adição de etanol à gasolina Tipo A para produzir a gasolina Tipo C e de biodiesel ao diesel Tipo A para obter o diesel Tipo B, não configurariam um processo de produção ou industrialização, mas seriam consideradas etapas da atividade de “revenda”.
Na visão da Receita, apenas as operações realizadas por refinarias, centrais petroquímicas e formuladoras — responsáveis pela produção dos produtos-base, gasolina Tipo A e diesel Tipo A — seriam reconhecidas como atividades de produção. Assim, por entender que a atividade das distribuidoras não alteraria substancialmente o produto-base, a Receita nega a essas empresas o direito ao crédito de PIS e Cofins sobre insumos e despesas relacionados a essas operações.
Em contrapartida, o Carf vem adotando uma interpretação que reconhece o caráter transformador das atividades das distribuidoras. No Acórdão nº 3401-012.024[4], a 3ª Seção de Julgamento entendeu que o processo de adição de etanol e biodiesel realizado pelas distribuidoras constitui uma etapa de transformação essencial para adequar o combustível ao consumo final.
Esse entendimento aproxima a atividade das distribuidoras do conceito de industrialização, e, nesse sentido, o Carf reconheceu o direito ao crédito de PIS e Cofins sobre insumos e despesas como parte do processo de produção.
Para o Carf, a transformação executada pelas distribuidoras é uma etapa indispensável para que os combustíveis estejam em conformidade com as especificações exigidas para uso final. Esse posicionamento reforça que as distribuidoras exercem um papel fundamental no processo produtivo dos combustíveis, em oposição à visão da Receita de que essas operações seriam meramente comerciais.
Parecer Cosit/RFB nº 05/2018 e legislação do PIS e da Cofins
A definição do conceito de insumo no contexto das contribuições ao PIS e à Cofins tem sido objeto de discussões significativas, e o STJ (Superior Tribunal de Justiça) teve um papel fundamental ao fixar diretrizes gerais para essa interpretação. No julgamento do Recurso Especial nº 1.221.170/PR, o STJ estabeleceu uma interpretação abrangente ao afirmar que “o conceito de insumo deve ser aferido à luz dos critérios de essencialidade ou relevância, ou seja, considerando-se a imprescindibilidade ou a importância de determinado item — bem ou serviço — para o desenvolvimento da atividade econômica desempenhada pelo Contribuinte”.
Sem entrar no mérito de que a Receita, interpretando essa decisão, ofereceu um entendimento mais restritivo para o conceito de insumo fixado pelo STJ, é de se destacar que no Parecer Cosit/RFB nº 05/2018[5], o órgão esclareceu os conceitos de operações de produção e fabricação. Expressos no artigo 3º das Leis nº 10.637/2002 e nº 10.833/2003.
O entendimento do órgão administrativo foi de que, para efeitos da legislação do PIS e da Cofins (Leis nº 10.637/2002 e nº 10.833/2003), a “fabricação de produtos” é interpretada como equivalente ao conceito de industrialização estabelecido pela legislação do Imposto sobre Produtos Industrializados – IPI, definido no artigo 4º do Regulamento do IPI — Ripi 2010.
Já a “produção de bens” envolve atividades que, embora não se enquadrem no conceito de industrialização, acarretam a transformação de insumos em novos bens destinados à venda, o que inclui processos que alteram significativamente a natureza do insumo, conferindo-lhe uma nova utilidade.
No contexto da distribuição de combustíveis, essa interpretação da Receita Federal é particularmente relevante pois, ao vincular a “fabricação de produtos” à industrialização e a “produção de bens” à transformação de insumos em novos produtos, traz uma definição que se aplica diretamente às atividades desenvolvidas pelas distribuidoras de combustíveis.
Dentro desse conceito, as atividades das distribuidoras de combustíveis, ao realizarem um processo que altera substancialmente o produto, contribuindo para a criação de um bem específico e pronto para o mercado, atendem os conceitos de produção e fabricação previstos na legislação para fins de fruição do direito aos créditos de PIS e Cofins.
Legislação do IPI e o conceito de industrialização
A análise das atividades das distribuidoras de combustíveis, considerando o conceito de produção e fabricação delineado pela própria Receita no Parecer Cosit/RFB nº 05/2018, encontra suporte ainda na legislação do IPI (Imposto sobre Produtos Industrializados), que constitui norma federal específica sobre o tema, sendo mais detalhada e especializada que outras normas e cujos conceitos não podem ser modificados por interpretações dos órgãos fazendários.
O Decreto nº 7.212/2010 [6], que regulamenta o IPI, define as operações de industrialização e inclui, entre elas, aquelas que modificam a natureza ou composição de um produto, tornando-o apto para consumo final.
O artigo 4º do Ripi descreve industrialização como:
Art. 4º Caracteriza industrialização qualquer operação que modifique a natureza, o funcionamento, o acabamento, a apresentação ou a finalidade do produto, ou o aperfeiçoe para consumo, tal como (Lei nº 4.502, de 1964, art. 3º, parágrafo único, e Lei nº 5.172, de 25 de outubro de 1966, art. 46, parágrafo único):
I – a que, exercida sobre matéria-prima ou produto intermediário, importe na obtenção de espécie nova (transformação);
II – a que importe em modificar, aperfeiçoar ou, de qualquer forma, alterar o funcionamento, a utilização, o acabamento ou a aparência do produto (beneficiamento);
III – a que consista na reunião de produtos, peças ou partes e de que resulte um novo produto ou unidade autônoma, ainda que sob a mesma classificação fiscal (montagem);
IV – a que importe em alterar a apresentação do produto, pela colocação da embalagem, ainda que em substituição da original, salvo quando a embalagem colocada se destine apenas ao transporte da mercadoria (acondicionamento ou reacondicionamento);
V – a que, exercida sobre produto usado ou parte remanescente de produto deteriorado ou inutilizado, renove ou restaure o produto para utilização (renovação ou recondicionamento).
Com base nessas disposições, a legislação do IPI considera como industrialização não apenas a transformação completa de um insumo em um novo bem, mas também atividades de beneficiamento, acondicionamento e renovação, desde que alterem as características originais do produto para uma nova utilidade ou finalidade.
No contexto das distribuidoras de combustíveis, operações como a adição de etanol à gasolina Tipo A para a obtenção de gasolina Tipo C, e de biodiesel ao diesel Tipo A para formar o diesel Tipo B, exemplificam uma modificação que altera a composição e a finalidade dos produtos-base, adequando-os para o consumo final.
Esses processos claramente se enquadram nas hipóteses de transformação e beneficiamento descritas no artigo 4º do Ripi, uma vez que a gasolina e o diesel resultantes são produtos distintos, específicos e próprios para o abastecimento de veículos automotores.
A operação de transformação realizada pelas distribuidoras, portanto, corresponde ao conceito de industrialização, pois altera o produto-base (gasolina Tipo A e diesel Tipo A) em bens finais específicos e adequados para uso. Essa atividade de transformação é fundamental para a cadeia de combustíveis, e a classificação das distribuidoras como empresas que executam uma atividade fabril reforça seu papel essencial na produção de bens.
Os conceitos e enquadramentos trazidos pela legislação do IPI não podem ser modificados pela Receita Federal para fins de glosa dos créditos de PIS e Cofins, visto que essa legislação é específica e detalhada sobre o tema. Como tal, as operações de transformação e produção realizadas pelas distribuidoras, ao se encaixarem nas definições do IPI, sustentam a caracterização de suas atividades como industriais, com direito ao crédito de PIS e Cofins sobre os insumos utilizados no processo.
Conclusão
A análise das atividades das distribuidoras de combustíveis revela que seu papel na cadeia produtiva vai muito além de uma mera revenda de produtos.
O processo de transformação, que envolve a adição de etanol à gasolina Tipo A para obter a gasolina Tipo C e de biodiesel ao diesel Tipo A para produzir o diesel Tipo B, configura uma atividade de industrialização conforme as definições estabelecidas pela legislação do IPI.
O Parecer Normativo Cosit/RFB nº 05/2018 e as normas do PIS e Cofins, ao serem analisados em conjunto com a legislação do IPI, reforçam que as operações das distribuidoras configuram um processo industrial com valor agregado, resultando em bens próprios para o consumo.
A interpretação conjunta desses dispositivos e normas, revela as distribuidoras de combustíveis como verdadeiros agentes industriais essenciais na cadeia de combustíveis, restando expressa a importância de um tratamento tributário adequado para essas atividades principalmente no que diz respeito ao PIS e à Cofins.
Esse enquadramento encontra amparo na legislação federal específica, que traz conceitos claros de produção e industrialização e que não podem ser alterados por interpretações administrativas restritivas por parte da Receita Federal.
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[1] Disponível em: https://atosoficiais.com.br/anp/resolucao-n-807-2020
[2] Disponível em: http://normas.receita.fazenda.gov.br/sijut2consulta/link.action?idAto=126643
[3] Disponível em: http://normas.receita.fazenda.gov.br/sijut2consulta/link.action?visao=anotado&idAto=115711
[4] Disponível em: https://acordaos.economia.gov.br/acordaos2/pdfs/processados/13161901081201712_6945030.pdf
[5] Dispnível em: http://normas.receita.fazenda.gov.br/sijut2consulta/link.action?idAto=97407
[6] Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-2010/2010/decreto/d7212.htm
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