Direito e contabilidade: voltando os olhos para o legado de Nilton Latorraca
13 de novembro de 2024, 8h00
Há 35 anos, em 24 novembro de 1989, morria em São Paulo, aos 57 anos, Nilton Latorraca, então presidente da PriceWaterhouse, o qual se tornou um ícone em matéria de planejamento tributário, influenciando gerações, pois segue, reiteradamente, citado em artigos, dissertações e teses, ainda nos dias de hoje.
Conheci Latorraca quando, ao terminar minha primeira especialização em Direito Tributário, na PUC-SP, após graduar-me na USP, decidi direcionar-me, profissionalmente, de forma diversa de meus companheiros do curso jurídico, para uma empresa de auditoria, a então Price Waterhouse Peat Co., hoje simplesmente PWC. Tinha interesse em contabilidade e finanças, coisa rara nos bacharéis em Direito naqueles tempos. Fui feliz em minha escolha.
Privilégio
Fui admitida em PWC, no ano de 1974, após entrevista com Nilton Latorraca que liderava o então departamento de consultoria legal e tributária. Era uma figura impressionante, pois naturalmente educado, gentil, culto, elegante, era de uma cortesia ímpar.
Dotado de dupla formação, direito e contabilidade, era professor na FGV de São Paulo, dando cursos de Legislação Tributária, nome de seu primeiro livro sobre a matéria, depois alterado, na década de1980, para “Legislação Tributária, Uma Introdução ao Planejamento Tributário” e, por fim, passando a designar-se apenas Direito Tributário.
Na edição de 1985 alerta, na introdução, que esse livro fugia à maneira tradicional de estudar Legislação Tributária, num esforço de apresentá-la de forma mais “funcional”, especialmente no trato do Imposto sobre a Renda, em que as inferências tributárias são estudadas por ele mediante exame do patrimônio de uma empresa, segundo a classificação contábil dos bens, direitos e obrigações.
Internamente, em PwC, dava-nos cursos de Imposto sobre a Renda de Pessoas Jurídicas que observavam a metodologia de suas aulas nos cursos externos: associava questões tributárias às demonstrações financeiras. A última edição por ele atualizada é de 1988.
Sua morte, em 1989, subtraiu de nosso mundo tributário uma inteligência rara. Porém, dentre seus muitos méritos, está a visão de futuro de formar os primeiros profissionais oriundos de escolas de Direito que se interessaram por contabilidade, pois entenderam que só atua, de fato, na área de Imposto sobre a Renda de Pessoas Jurídicas aquele que dispõe de mínimos conhecimentos de contabilidade. Não viveu para ver a adoção dos IFRS, no Brasil, e a importância que o conhecimento de contabilidade adquiriu para os estudiosos do Direito Tributário.
Outras lições: reforma tributária
Lamentável é que de suas lições tenhamos apenas os registros dos livros acima comentados, bem como a participação no volume 6, do livro de Modesto Carvalhosa, Comentários à Lei das Sociedades Anônimas, na parte atinente aos arts. 175 a 205 da Lei n. 6.404/1976, em sua primeira edição, no ano de 1977. Não está fácil, hoje, localizar matérias levadas, por ele, à publicação, em periódicos, contudo logramos acessar “Reforma tributária e prestação de contas”, que integrou a coluna Opinião Econômica, em 31.05.1987, do jornal Folha de S. Paulo.
Nesse trabalho Nilton Latorraca, escrevendo sobre a reforma constitucional que então se processava, afirma, no que tange à matéria tributária, que o Código Tributário Nacional, que ainda é o mesmo hoje, com poucas alterações, regula todos deveres e obrigações do contribuinte, contudo, não dispõe como seus representantes devem prestar contas sobre o emprego dos recursos que lhes foram confiados.
Reitera que o instituto da prestação de contas era, então, desconhecido pela legislação brasileira, a despeito do trabalho desenvolvido pelos Tribunais de Contas. Sugere, nesse sentido, uma prestação de contas nos moldes em que se praticava, então, nos Estados Unidos e na Europa, ou seja, que estabelecesse a relação entre custos e benefícios relevantes do uso que se faria de tais montantes, juntamente com uma avaliação dos riscos do que se pretendia financiar. Isso levaria a uma utilização eficaz, eficiente e econômica dos recursos públicos.
Além disso, propugnava no sentido de que a prestação de contas, pelo agente público, fosse um relato transparente e acessível ao homem simples, que informasse as realizações e a sua adequação às finalidades e ao planejamento que se construiu. Conclui que uma reforma tributária que desfrute de apoio popular deveria, antes de tudo, regular a prestação de contas e utilizar o tributo como instrumento de política voltada para o desenvolvimento social.
No que concerne aos tributos com finalidade extrafiscal (terminologia então adotada para tributos com referibilidade, como hoje ocorre com as contribuições) sugeria que se condicionasse sua efetiva incidência à obrigação de planejar seu destino e aplicar os recursos tributários na realização de metas políticas que visassem ao verdadeiro desenvolvimento nacional.
A Constituição de 1988 legislou, de alguma forma, sobre esses temas em seus arts. 70 e 71, que tratam da fiscalização contábil, financeira e orçamentária da União, além do controle externo pelo Tribunal de Contas, entidade subordinada ao Congresso.
É de se destacar que a comprovação da referibilidade é tema que persiste ainda hoje, em nossos tribunais, como é o caso das discussões que envolvem as contribuições de intervenção no domínio econômico para as quais a própria destinação está sob discussão nos tribunais.
O que Latorraca não viu: Lei 12.973/2014 e suas dificuldades
Com a edição da Lei nº 11.638/2007 que introduziu os padrões contábeis internacionais, os IFRS [1], no país, alguns eventos novos modificaram o ambiente tributário brasileiro no que concerne ao Imposto sobre a Renda deixando claro que as novas práticas contábeis não teriam efeitos tributários e tampouco gerariam impactos na arrecadação tributária. Esclareça-se a razão dessa cautela.
Desde a Lei nº 4.625/1922, que introduziu o Imposto sobre a Renda no Brasil, dispondo em seu art. 31 que ele seria devido por toda pessoa física ou jurídica, residente no território do “país”, incidindo, em cada caso, sobre o conjunto líquido dos rendimentos de qualquer origem.
Com a Lei nº 4.984/1925, estabeleceram-se as distinções entre a tributação das pessoas físicas e das pessoas jurídicas, dispondo o seu artigo 18 que a renda tributável, nos dois casos, seria composta pelos rendimentos das atividades exercidas no todo ou em parte dentro do “país”. As sociedades, em geral, pagariam o imposto sobre os rendimentos líquidos calculados com base em balanço por elas levantado, ou seja, a primeira base de cálculo eleita para o Imposto sobre a Renda, no caso das pessoas jurídicas, foi o balanço, o que demonstra a parceria entre o tributo e a contabilidade o que, a rigor, segue até os dias de hoje.
Com o passar do tempo diversas práticas fiscais foram incorporadas, para fins tributários, de tal sorte que a ciência contábil não era mais observada em sua integridade.
Vigente a Lei nº 11.638/2007 e adotados os IFRS tudo se alterou pois resultou vedado o uso de práticas fiscais. A Lei n. 12.973/2014, adaptou e alterou, no que pertinente, a legislação tributária a essas novas práticas contábeis, contudo, por premissa, neutralizando-as. As novas práticas contábeis estão suportadas em princípios que se afastam daqueles que orientam a tributação brasileira, inscritos na Constituição.
Ocorre que os IFRS são padrões contábeis aplicáveis a demonstrações financeiras consolidadas, logo, para fins contábeis, no Brasil, prevalecem práticas que não se aplicam a balanços individuais, utilizados para o cálculo do Imposto sobre a Renda e da Contribuição Social sobre o Lucro. Além disso, os IFRS se orientam pela essência econômica dos negócios e seus efeitos prospectivos, a avaliação a valor justo, o julgamento do contador, os fluxos de caixa, dentre outros.
O contrato e seus reflexos jurídicos podem não prevalecer se as partes, do ponto de vista econômico, não desejarem as consequências para ele previstas em lei ou se houver uma determinação de assim proceder, como é o caso do arrendamento mercantil.
As normas que regularam as sociedades por ações no Brasil sempre destinaram um capítulo para dispor sobre a escrituração mercantil e as demonstrações financeiras, o que vem sendo criticado, ao longo do tempo, pelas autoridades em matéria contábil, mas que sempre serviu de parâmetro para orientar as práticas fiscais.
Além disso, a partir da Lei nº 11.638/2007, as práticas contábeis são objeto de manifestações do Comitê de Pronunciamentos Contábeis (CPC), entidade despersonalizada composta por autoridades em matéria contábil, manifestações essas neutralizadas para fins fiscais, inclusive os pronunciamentos editados após a Lei nº 12.973/2014, os quais devem observar as determinações de seu art. 58, no sentido de não gerarem implicação na apuração dos tributos federais até que lei tributária regule a matéria.
Essa neutralidade propugnada pela Lei n. 11.638/2007 e pela Lei nº 12.973/2014, quando voltada à associação direito e contabilidade, entretanto, não tem sido observada, muitas vezes, por parte das autoridades fiscais, gerando entendimentos e efeitos outros que não foram por elas desejados, mostrando um certo viés incoerente no que respeita à sua interpretação. Como se vem manifestando esse fenômeno?
Há uma indecisão propositada entre a contabilidade e a lei, em detrimento do contribuinte?
A despeito da Lei n 12.973/2014 ter completado dez anos, ainda há diversas situações não resolvidas, causando dúvidas para os contribuintes e abrindo espaço para que o Fisco emita interpretações perigosas como se verá.
Um dos casos mais relevantes sobre a equivocada adoção das práticas contábeis e não da lei, é o tratamento que o Fisco pretende dar à OPA (Oferta Pública de Aquisição de Ações), instituto regulado pela Lei de Sociedade por Ações, o qual objetiva a aquisição de controle de companhia aberta, com a retirada de suas ações do mercado.
A nomenclatura da operação, de per si, já mostra o seu significado, ou seja, que o controlador que já detém participação na entidade, vai aumentá-la e para tanto está adquirindo ações que estão no mercado.
Para fins fiscais, o artigo 20 do Decreto-lei n. 1.598/77 sempre determinou que o custo de aquisição de investimentos avaliados pela Metodologia de Equivalência Patrimonial (MEP), logo em controladas e coligadas, seja desdobrado entre o valor de patrimônio líquido contábil das participações e o montante do sobrepreço pago ou do desconto obtido, ágio ou deságio, por ocasião da aquisição do investimento, a primeira vez ou em qualquer outra subsequente.
Com a entrada em vigor dos IFRS, as operações de aquisição societária passaram a ser designadas pela contabilidade como combinação de negócios, objeto do pronunciamento do CPC (Comitê de Pronunciamentos Contábeis) nº 15, instituto próprio das demonstrações consolidadas, voltada, porém, apenas à aquisição de um negócio, sendo que o ágio, para fins contábeis passou a ser designado por goodwill e o deságio por compra vantajosa.
A Lei nº 6.404/1976 e o Decreto-Lei nº 1.598/1977 não foram alterados para tratar da aquisição de negócios, continuando a aplicar o desdobramento ágio/deságio na hipótese de aquisição de participações societárias, embora tenham incorporado a terminologia contábil.
A partir da Lei nº 12.973/2014, a aquisição de participação societária sujeita à avaliação pelo valor do patrimônio líquido, para fins fiscais, exige o reconhecimento e a mensuração dos ativos identificáveis adquiridos e dos passivos assumidos a valor justo e, após, do ágio por rentabilidade futura (goodwill) ou do ganho proveniente de compra vantajosa.
Ou seja, apurados os ativos líquidos a valor justo e alocado o preço pago, o montante que não encontre correspondência entre os ativos adquiridos será tratado como goodwill/ágio por rentabilidade futura.
Ocorre que a Secretaria da Receita Federal, por entender que há uma prevalência das regras contábeis sobre a lei, no caso o CPC nº 15, manifestou-se na Solução de Consulta Cosit nº 39/2010 no sentido de que a exclusão do goodwill apurado em aquisição de participação societária, para fins cálculo do lucro real e da contribuição social sobre o lucro, somente pode ser feita desde que o goodwill seja existente e registrado em conformidade com as normas contábeis.
Ora, o Decreto-Lei n. 1.598/1977, com alterações da Lei nº 12.973/2014 trata a matéria, para fins fiscais, de forma diversa, afastando a aplicação do CPC nº 15. Ou seja, a segregação pretendida entre contabilidade societária e práticas contábeis, na Lei nº 11.638/2007 e na Lei nº 12.973/2014, não está sendo respeitada pelo próprio Fisco e em seu favor.
Esse tema vem sendo objeto de seguidos autos de infração, ainda que as OPAs tenham sido examinadas pela CVM e tido seus dados tornados públicos por força das exigências regulatórias sobre a matéria, assim gerando insegurança no mercado.
Outro aspecto que chama a atenção na Lei nº 12.973/2014, é que o ágio somente poderá ser considerado como integrante do custo do bem ou direito que lhe deu causa em operações de incorporação, cisão e fusão relacionadas a aquisição de participação societária entre partes não dependentes, para efeito de determinação de ganho ou perda de capital e do cômputo da depreciação, amortização ou exaustão.
A origem dessa regra pauta-se no uso de demonstrações consolidadas que foram adotadas para fins contábeis e tributários no Brasil. Essa regra pautada em critérios contábeis ofende princípios constitucionais, em especial o princípio da renda líquida, pois todo custo é dedutível se a operação é legítima.
Algumas vezes os institutos contábeis é que são afastados, como é o caso do IPO (Initial Public Offering), transação de capital, operação entre sócios com a finalidade de abrir o capital de subsidiária de sociedade brasileira, no exterior, que não afeta o balanço da sócia original, não podendo ser computada como ingresso tributável, mas que as Soluções Cosit nº 198/19 e nº 99.012/19 entenderam como sujeitas à tributação afastando, nesse caso, o tratamento contábil.
Embora sempre próximas, tributação e contabilidade seguiram caminhos diversos. A Contabilidade hoje está pautada em conceitos muito diversos, mas o preocupante é que, em certas situações, o quase império dos preceitos contábeis propugnado pelas autoridades fiscais, vêm em detrimento do Direito e dos princípios constitucionais. Isso Nilton Latorraca não viu.
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[1] International Financial Reporting Standards
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