Garantias do Consumo

Possibilidade da audiência assíncrona no artigo 104-A do CDC

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  • é procurador do estado do Espírito Santo mestre em Direito Difusos e Coletivos pela PUC-SP professor de diversos cursos e autor de diversas obras jurídicas tendo atuado como assessor do relator no Senado do projeto de lei do superendividamento.

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13 de novembro de 2024, 8h00

A audiência prevista no artigo 104-A do CDC é uma medida destinada ao consumidor superendividado que deseja repactuar suas dívidas e buscar uma solução conciliatória para sua situação financeira. Esse processo pode ser iniciado a pedido do próprio consumidor, que deve ser uma pessoa natural, e tem como objetivo reunir todos os credores para uma audiência de conciliação. A audiência pode ser conduzida pelo juiz ou por um conciliador credenciado pelo Juízo, e nela o consumidor apresenta uma proposta de plano de pagamento das dívidas, com prazo máximo de cinco anos para quitação.

A implementação da audiência assíncrona [1] no artigo 104-A do CDC representa uma resposta inovadora e necessária frente à realidade do superendividamento no Brasil. Este formato de audiência, que permite o envio do plano de pagamento ao fornecedor via e-mail, plataforma digital ou até mesmo aplicativos de mensagens como o WhatsApp, com a exigência de comprovação de recebimento, não só oferece maior eficiência processual, mas também reduz consideravelmente o constrangimento e desgaste emocional que impacta o consumidor superendividado. [2]

Esse modelo estabelece, ainda, um prazo razoável (exemplo: dez dias) para que o fornecedor avalie a proposta e manifeste sua concordância ou apresente justificativas detalhadas para eventual discordância, o que assegura um espaço de reflexão e tomada de decisão sem a pressão do formato presencial.

A notificação ao credor deve, inclusive, conter a advertência de que, caso o fornecedor permaneça inerte, sem se manifestar sobre a proposta de plano de pagamento, isso terá os mesmos efeitos do não comparecimento injustificado, conforme disposto no §2º do artigo 104-A, acarretando a aplicação das sanções previstas nesse parágrafo. Dessa forma, o processo assegura que o credor participe ativamente da negociação, evitando que a ausência de resposta obstrua a repactuação de dívidas e a solução do superendividamento do consumidor.

Os três anos de vigência da Lei do Superendividamento deixaram claro que o formato presencial de audiência, adotado amplamente no Judiciário, nos Procons e nas Defensorias, muitas vezes sobrecarrega o consumidor. Devido à complexidade desses casos, onde frequentemente há múltiplos credores, as audiências tradicionais têm se mostrado exaustivas, com duração de quatro a cinco horas, expondo o consumidor a uma situação prolongada de desgaste e até mesmo de humilhação.

A condição de superendividamento já envolve uma carga emocional significativa, gerada pela percepção de insucesso financeiro e pela pressão das dívidas acumuladas. Ser confrontado com essa realidade diante de vários credores, que podem questionar ou pressionar o consumidor, aumenta esse fardo psicológico, expondo-o a uma posição vulnerável que agrava seu estresse e seu desgaste mental.

Audiência tradicional sem efetividade

Além do impacto emocional, a audiência tradicional não tem sido efetiva para o cenário de endividamento que caracteriza boa parte dos consumidores superendividados no Brasil. Na maioria dos casos, a única possibilidade de pagamento que esses consumidores podem oferecer é o valor principal da dívida, com dificuldade ou até impossibilidade de pagar juros e encargos.

Isso ocorre porque a renda de muitos consumidores nessa condição é baixa, restrita ao mínimo necessário para manter o sustento básico. Com poucas ou nenhuma reserva financeira, o superendividado tem capacidade limitada para cobrir mais do que o valor principal, o que reduz a margem para negociações amplas de valores.

A audiência assíncrona, por outro lado, permite que o fornecedor tenha o tempo e a tranquilidade necessários para avaliar a proposta à luz da realidade financeira do consumidor, possibilitando inclusive que o credor busque informações adicionais para confirmar a veracidade da renda declarada, evitando a imposição de condições inviáveis que agravariam ainda mais a situação de vulnerabilidade do consumidor.

Além disso, esse formato elimina a necessidade de comparecimento presencial dos advogados dos credores em diferentes cidades do país, permitindo que as negociações sejam centralizadas na matriz do credor, o que otimiza a gestão e avaliação das propostas. Esse aspecto é especialmente vantajoso para os credores que, em muitos casos, enviam representantes sem autonomia para negociar, limitando-se a comparecer para evitar as sanções previstas no §2º do artigo 104-A. A audiência assíncrona, portanto, propicia uma análise mais aprofundada e eficaz das propostas, em vez das respostas superficiais e padronizadas que se verificam em muitas audiências presenciais, nas quais o representante do credor não tem poderes para propor ou aceitar acordos ajustados à situação do consumidor.

Transparência no processo de negociação

Outro aspecto fundamental que a audiência assíncrona favorece é a transparência e o registro contínuo do processo de negociação. Nos formatos presenciais, é comum que as atas de audiência apresentem um relato lacônico, indicando apenas se houve ou não acordo, sem registrar contrapropostas, justificativas de recusas de acordo ou o posicionamento detalhado dos credores.

Em um formato assíncrono, no entanto, as negociações ficam documentadas integralmente, permitindo um histórico detalhado das interações, com registros das propostas, contrapropostas e respostas que foram trocadas entre consumidor e fornecedor. Esse registro contínuo e objetivo das tratativas é um instrumento essencial para a boa-fé objetiva, permitindo que o magistrado analise, com base no comportamento das partes, a disposição para um acordo e a colaboração do credor no processo de resolução da dívida.

Esse histórico tem ainda um valor significativo para a decisão judicial no caso de necessidade de um plano compulsório, nos termos do artigo 104-B, uma vez que o magistrado poderá considerar a postura do credor durante as tratativas, ponderando a adequação de suas exigências e a razoabilidade de suas respostas, fatores que são cruciais para a configuração de um plano que atenda ao princípio da proporcionalidade.

A audiência assíncrona também traz um impacto positivo nos recursos operacionais do Judiciário e dos órgãos de defesa do consumidor, gerando economia substancial. Em comparação com as audiências presenciais, o formato remoto reduz drasticamente a necessidade de espaços físicos adequados para receber grande volume de pessoas, além de aliviar a demanda por mediadores e conciliadores para sessões extensas e complexas.

Com um índice estimado de 20% da população brasileira em situação de superendividamento, a manutenção de um sistema de audiências presenciais é insustentável, uma vez que geraria sobrecarga nos sistemas de atendimento e na infraestrutura física dos órgãos envolvidos, resultando em uma resposta insuficiente à demanda existente.

Em contrapartida, a audiência assíncrona promove uma economia que se alinha com os princípios de eficiência administrativa e otimização de recursos, valores essenciais para o funcionamento de um Sistema de Justiça acessível e sustentável. Além disso, o formato digital permite que as partes estejam em contato direto, sem a necessidade de intermediários ou de deslocamentos, o que agrega agilidade e facilita a comunicação entre consumidor e fornecedor.

Solução equilibrada para consumidor vulnerável

É importante ressaltar que o CDC, ao prever a possibilidade de realização de audiência para os casos de superendividamento, tem como um de seus princípios norteadores a busca por uma solução equilibrada e digna para o consumidor vulnerável. A adoção de um modelo assíncrono concretiza esse princípio ao mitigar os efeitos psicológicos negativos das audiências presenciais e ao promover um processo que seja economicamente viável e operacionalmente eficaz.

Em um país com altos índices de endividamento, a audiência assíncrona não apenas representa uma inovação necessária para a proteção do consumidor, mas é uma medida prática que contribui para a desburocratização do Sistema de Justiça, facilitando o acesso dos consumidores a soluções de renegociação de suas dívidas sem prejudicar sua dignidade.

Assim, a audiência assíncrona, ao permitir um contato mais reservado e uma análise detalhada das propostas e contrapropostas por meio de meios digitais, permite que a negociação se desenrole com um grau de transparência e registro que até então não era possível nas audiências presenciais tradicionais.

Em última análise, essa inovação cumpre os objetivos da legislação ao resguardar os direitos do consumidor de forma digna, transparente e eficaz, com benefícios amplos para o próprio Judiciário e para os órgãos de defesa do consumidor, que poderão dar uma resposta mais rápida e eficiente ao problema crescente do superendividamento no Brasil.

 


[1] Uma audiência assíncrona é uma audiência em que não há necessidade de interação em tempo real, ou seja, não requer que o emissor e o receptor estejam interagindo ao mesmo tempo.

[2] Tive oportunidade de abordar aqui nesta Conjur como a utilização de plataformas virtuais podem ser extremamente efetivas no tocante ao tratamento do superendividamento, inclusive com a utilização das audiências assíncronas.

Autores

  • é procurador do estado do Espírito Santo, mestre em Direitos Difusos e Coletivos pela PUC-SP, membro do GT de acompanhamento da Lei do Superendividamento no CNJ, autor dos livros Código de Defesa do Consumidor Comentado (2024) e Lei do Superendividamento Comentada e Anotada (2024), ambos pela Editora Juspodivm.

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