Controvérsias Jurídicas

Prescrição virtual: está na hora de rever a Súmula 438 do STJ

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  • é procurador de Justiça do MP-SP mestre pela USP doutor pela PUC autor de obras jurídicas ex-presidente da Assembleia Legislativa de SP presidente do Procon-SP e secretário de Defesa do Consumidor.

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11 de novembro de 2024, 13h18

Fundamento para a existência do processo criminal

Spacca

Inútil é tudo aquilo que não serve ao fim a que se destina. O Estado é o detentor exclusivo do direito de punir. Tal direito independe da prática de qualquer infração penal, sendo um atributo exclusivo de sua soberania. Sem um território, um povo, ordem jurídica, soberania e poder coercitivo, não existe Estado. Por essa razão, o direito de punir, chamado de jus puniendi, existe independentemente da prática da infração penal, como condição inderrogável do poder soberano.

Quando o crime é praticado, este poder/direito que existe abstratamente em estado potencial, se concretiza e se transforma em uma pretensão concreta, dirigindo-se específica e individualmente ao infrator. Por imposição constitucional (CF, artigo 5º, LIV) e civilizatória, a pretensão punitiva deve ser satisfeita por meio do devido processo legal, no qual se assegure ao acusado ampla defesa e contraditório, julgamento imparcial por um juiz previamente indicado de acordo com regras objetivas (princípio do juiz natural) e mediante o emprego de provas lícitas.

Essa é a razão que justifica a existência do processo: tornar possível a punição de alguém acusado de cometer um crime. Sem pretensão punitiva, não existe processo. Faltará interesse para sua instauração, ou seja, justificativa para sua existência.

Prazo para extinção do processo: prescrição

A pretensão punitiva deve ser satisfeita dentro de prazos, sob pena de extinção, pois o Poder Público precisa ser compelido a atuar com eficiência e rapidez, punindo-se sua lentidão. Além disso, ninguém pode ficar permanentemente sob a ameaça de punição. Costuma-se dizer que, muito tempo após o crime, se está julgando outra pessoa, diante da transformação provocada pelo passar dos anos. A extinção da pretensão punitiva, diante da inércia do Estado durante determinado período, denomina-se prescrição. Os prazos prescricionais encontram-se previstos, como regra, no artigo 109 do Código Penal, e são calculados de acordo com a pena máxima cominada à infração.

Assim, por exemplo, um crime punido com uma pena variável entre um mínimo de dois e um máximo de oito anos de reclusão, prescreverá em 12 anos, pois penas superiores a quaro e que não excedam a oito, prescrevem em 12 (CP, artigo 109, III). O Estado terá, portanto, 12 anos para que o Ministério Público ofereça a denúncia criminal e tenha esta denúncia recebida. Neste momento, o prazo será zerado e recomeçará do primeiro dia.

É a primeira causa interruptiva da prescrição. A partir deste momento, no exemplo apresentado, o Estado terá novamente 12 anos para obter uma sentença condenatória, pois a publicação da sentença condenatória interromperá novamente a prescrição. Imposta a pena ao caso concreto, se o Ministério Público dela não recorrer, será ela que passará a orientar o cálculo da prescrição, e não mais a pena máxima abstratamente cominada.

Em outras palavras, enquanto não se sabe qual a pena que será aplicada ao crime, a prescrição será calculada com base na maior pena possível, ou seja, a pior das hipóteses, que é a pena máxima prevista para o crime. Quando se tem conhecimento de qual pena foi aplicada ao caso concreto, não há mais razão para calcular a prescrição com base nesse máximo. Assim funciona o sistema do cálculo prescricional.

Prescrição virtual: na verdade, ela é a prescrição real

Imaginemos agora o seguinte exemplo: um crime punido abstratamente com pena de 02 a 08 anos, no qual o recebimento da denúncia tenha ocorrido há dez anos sem que haja sentença condenatória. Pelo raciocínio tradicional, não ocorreu ainda a prescrição, pois o prazo é calculado de acordo com o máximo previsto, que é de oito anos de reclusão, e tal montante prescreve em 12 anos (CP, artigo 109, III).

Como somente decorreram 10 anos desde o recebimento da denúncia, primeiro marco interruptivo, ainda não houve a prescrição. Não houve porque seu prazo é calculado com base na pena máxima cominada, e oito anos só prescreverão após o período de 12 anos, o qual se reiniciou após o recebimento da denúncia.

Ocorre que, na realidade prática, e não no mundo fictício da presunção legal, nenhuma pena, em regra, é fixada no máximo.  De acordo com os critérios legais de dosimetria, a sanção penal comumente fica mais próxima do mínimo do que do máximo. A dosimetria tem um percurso previamente fixado pelo artigo 68 do CP.

É o critério trifásico proposto por Nelson Hungria: partindo-se sempre do mínimo previsto, já que todo aumento precisa ser justificado, na primeira fase, levam-se em conta as chamadas circunstâncias judiciais, com destaque para os antecedentes e a personalidade do agente, ambas de caráter subjetivo e, portanto, preponderantes; na segunda fase, partindo-se do montante que resulta da primeira operação, incidem as circunstâncias elencadas em lei como agravantes e atenuantes, com destaque para a agravante da reincidência e a atenuante da menoridade relativa (ser menor de 21 anos ao tempo do fato); finalmente, na terceira e última fase, incidem as causas de aumento e diminuição, aquelas que aumentam em proporções fixas (um terço, dois terços, metade, o dobro etc).

No exemplo proposto, já decorreram dez anos desde o recebimento da denúncia, e a única razão pela qual não se reconheceu ainda a prescrição é o fato de ela ser calculada com base na pena máxima cominada abstratamente (oito anos de reclusão). Se o acusado tiver bons antecedentes, for primário e não existirem causas legais de aumento da pena, não haverá nenhuma razão para que esta seja imposta acima do mínimo legal.

No Estado democrático de Direito, há previsibilidade porque prevalecem regras objetivas sobre o desejo pessoal do julgador. No devido processo legal e constitucional, não pode o magistrado criar justificativas retóricas para fazer uma conta de chegar na aplicação da pena, com o fim exclusivo de evitar a prescrição. A

dosagem do quantum a ser aplicado tem regras claras e objetivas, ou seja, um caminho previsível a ser percorrido. Neste caso, a pena a ser aplicada não poderá resultar acima do mínimo previsto em lei, já que não há circunstâncias judiciais e legais que assim o permitam. Calculando-se a prescrição em bases realistas, e não em presunções legais irrealizáveis, deve-se levar em conta a futura e provável pena mínima de dois anos, e não o máximo previsto de 08 anos.

Assim, o prazo prescricional será de quatro anos, pois penas iguais a um e que não excedam a dois noas, prescrevem em quatro (CP, artigo 109, IV). Não havendo justificativa para que a pena supere o mínimo, o prazo prescricional de quatro anos já se ultimou, pois o recebimento da denúncia ocorreu há dez anos.

Foi com base neste inexorável raciocínio prático, o qual leva menos em conta o caráter ideológico do direito de punir e mais a eficácia do sistema, que surgiu o instituto da prescrição calculada com base na futura, factível e provável pena a ser imposta na sentença condenatória. É a chamada prescrição projetada, antecipada, perspectiva ou virtual. Se o réu é primário e portador de bons antecedentes, com quais critérios sancionatórios o juiz contará para impor o máximo previsto em lei? Isto não ocorrerá.

O processo, portanto, já está fadado à extinção. Se a punibilidade já está virtualmente extinta pelo decurso do tempo, não há justificativa para manter-se acesa a chama da pretensão punitiva. Nisso se baseia o instituto da prescrição virtual. Se o processo está irremediavelmente extinto pela prescrição que ocorrerá fatalmente, sua preservação por motivo de ordem moral, às custas do desperdício de tempo, dinheiro público e eficiência, não se justifica.

Prescrição virtual: medida de eficiência e economia processual

De acordo com o relatório “Justiça em Números”, divulgado pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ), no ano passado, o Poder Judiciário custou R$ 132,8 bilhões, ou seja, 1,2% do Produto Interno Bruto nacional, gasto com o julgamento de mais de 30 milhões de processos. Naquele ano, 2023, entraram mais de 35 milhões de casos novos, número que, somado aos processos já existentes, atinge a inacreditável soma de quase 85 milhões de processos pendentes para serem decididos.

Somente nos 91 tribunais brasileiros, estaduais, trabalhistas, militares, eleitorais e federais, existem 446.534 servidores, dentre os quais 18.265 mil magistrados, 275.581 servidores e 145 mil colaboradores, cobrindo todo o país. O tempo médio de um processo tramitando na primeira instância é de quatro anos e seis meses, e em segundo grau, dois anos e dois meses.

O relatório não informa o tempo de duração nos tribunais superiores. Esses números impressionantes dão conta do enorme desafio que há pela frente na busca por maior racionalidade e eficiência no exercício da jurisdição. Não é que os integrantes do Poder Judiciário não trabalhem, nem que o CNJ não cobre produtividade.

A real questão é o alto nível de contenciosidade de nossa sociedade e da elevada conflituosidade nas relações sociais do cotidiano. Nossa CF, em seu artigo 5º, LXXVIII, assegura a todos os brasileiros e estrangeiros residentes no Brasil, o direito à “razoável duração do processo, com os meios que garantam a celeridade de sua tramitação”.

Por razoável deve se entender tudo aquilo que se adeque ao senso comum do que deve ser tolerado como justificável diante da necessidade do cidadão em receber do Poder Público, a tutela e restauração do seu direito violado. Evidentemente, que tal justificativa deve ser cotejada com a excessiva demanda por justiça da população e as limitações orçamentárias do Estado.

Dessa equação entre o ideal e o possível é que surge o conceito de razoabilidade. Dentre os caminhos, necessariamente há a necessidade de ativar com cada vez mais frequência os mecanismos de jurisdição consensual, substituindo-se os vetustos conceitos de jurisdição inflexível, pelo de jurisdição eficaz.

Eficácia processual e pragmatismo versus ideologia penal

No Direito Penal, a exaltação de dogmas do século passado, como a obrigatoriedade da ação penal e sua indisponibilidade, está cedendo espaço à negociação processual, dentro de um sistema de discricionariedade regrada, no qual não existe liberdade ilimitada de negociação, mas dentro de balizas e hipóteses legais. Alcança não apenas as infrações de menor potencial ofensivo, mas até mesmo crimes de elevada lesividade, como as organizações criminosas, o tráfico de drogas e os crimes hediondos.

A Justiça acadêmica, ideológica, imaginária ou ideal, passa a ser substituída pelo pragmatismo da Justiça eficaz, focada na solução razoável do litígio dentro de um prazo também razoável. Das Ordenações Filipinas, cujo Livro V, Título CXVI, cuidava do perdão ao malfeitor que delatasse os comparsas, até sua incipiente adoção pela Lei nº 7.492/1986 (Dos Crimes contra o Sistema Financeiro Nacional), seguiram-se: Lei nº 8.72/1990 (Lei dos Crimes Hediondos), Lei nº 8.137/1990 (Crimes contra a Ordem Tributária), Lei nº 9.034/1995 (primeira Lei do Crime Organizado), Lei nº 9.099/1995 (Lei dos Juizados Especiais), Lei nº 9.613/1998 (Lavagem de Dinheiro), Lei nº 9.807/1999 (Proteção a Vítimas e Testemunhas), Lei nº 11.343/2006 (Lei de Drogas) e finalmente, Lei nº 12.850/2013 (Lei das Organizações Criminosas).

Releitura da Súmula 438 do STJ

Dentre dessa linha de evolução, na permanente busca pela eficiência e eficácia da prestação jurisdicional, surge a necessidade de uma reavaliação da Súmula 438 do Superior Tribunal de Justiça, publicada há quase 15 anos, em 13 de maio de 2010, segundo a qual, “é inadmissível a extinção da punibilidade pela prescrição da pretensão punitiva, com fundamento em pena hipotética, independentemente da existência ou sorte do processo penal”.

O entendimento sumular foi reafirmado pelo Supremo Tribunal Federal por meio da Repercussão Geral n 602.527/RS. Embora, correta do ponto de vista acadêmico e dogmático, o entendimento sumular do STJ, reafirmado pelo STF, encontra-se em descompasso com a realidade do cotidiano da primeira instância.

Como bem afirmou Alexandre Morais da Rosa em lúcido artigo publicado aqui mesmo nesta ConJur, “não reconhecer a prescrição antecipada no crime é jogar dinheiro fora”.

Quando um processo está fadado à ineficácia desde o seu nascedouro, não há justificativa legal e constitucional para sua manutenção. O princípio constitucional da eficiência, aplicável a todo e qualquer área ou órgão público, não se compadece com o consumo inútil de tempo, servidores e recursos públicos com um processo inviável.

A exigência constitucional de duração razoável do processo reclama foco e concentração de esforços para a eficiente e eficaz satisfação das pretensões punitivas dotadas de idoneidade para serem atendidas. A prescrição virtual foi concebida por uma visão de vanguarda, que tem íntima relação com a tendência moderna de pragmatismo e eficácia, evitando o funcionamento inútil da dispendiosa máquina do Poder Judiciário. A falta de interesse de agir elimina uma das condições da ação e obstaculiza sua existência, retirando-lhe justificativa para sua manutenção.

Justiça comum dos estados já começou a revisão da Súmula 438

Não é por outra razão, que a jurisprudência dos tribunais estaduais por todo o país tem consagrado o instituto:

“(…) por economia processual, rapidez da Justiça, possibilidade de aceleração de outros procedimentos penais pendentes, entre outros motivos, cabível a declaração da prescrição antecipada.  A mera falta de previsão legal para tanto em nada poderia evitar tal decretação”. (TJ-SP – APL: 00902230520078260050 SP 0090223-05.2007.8.26.0050, Relator: Otávio Henrique, Data de Julgamento: 30/01/2014, 9ª Câmara de Direito Criminal, Data de Publicação: 06/02/2014).

A colocação do desembargador Fábio Gouvêa bem retrata o tema: “De fato, não se concebe, na concepção atual da instrumentalidade do processo, que se movimente a máquina judiciária para o nada, o inócuo, em imarcescível apego ao formalismo, quando se sabe, de antemão, que a persecução penal irá desaguar em decreto de prescrição“ (RSE nº 1.019.639.3/2, julgado em 09.05.2007).

O direito de ação de que dispõe o Estado para punir os infratores de uma lei penal só pode ser exercitado se presentes as suas condições (art. 395 do Código de Processo Penal): possibilidade jurídica do pedido, legitimidade de parte e interesse de agir, este, nas suas três vertentes, a necessidade de obtenção da tutela jurisdicional, a adequação do procedimento escolhido e a utilidade da atividade persecutória estatal. Ora, verificado, desde logo, que inútil a dedicação estatal porque a sanção almejada nunca irá ser imposta ao réu, há que se decretar a carência da ação, ausente o requisito do interesse-utilidade da prestação jurisdicional” (RSE n° 990.08.044103-5 – Rel. Designado Edison Brandão, j. 22.06.2010). No mesmo sentido: TJ-SP – RSE: 00128629620018260477 SP 0012862-96.2001.8.26.0477, Relator: Roberto Midolla, Data de Julgamento: 10/02/2011, 9ª Câmara de Direito Criminal, Data de Publicação: 10/02/2011). TJ-SP – APR: 00116297720148260196 SP 0011629-77.2014.8.26.0196, Relator: Márcia C. Teixeira Branco Mendonça, Data de Julgamento: 29/09/2017, Turma Recursal Criminal, Data de Publicação: 04/10/2017). Na prática, a prescrição virtual já é uma realidade, sendo recomendável a revisão da Súmula 438 do STJ.

Autores

  • é advogado, procurador de Justiça aposentado do MP de SP, mestre pela USP, doutor pela PUC, autor de obras jurídicas, ex-presidente da Assembleia Legislativa de SP, do Procon-SP e ex-secretário de Defesa do Consumidor.

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