Desafios da PEC da Segurança Pública
11 de novembro de 2024, 19h37
Depois de meses de notícias que davam conta de uma proposta de emenda constitucional sobre segurança pública, o anteprojeto da PEC foi apresentado, no último dia 31 de outubro, pelo ministro da Justiça e Segurança Pública, Ricardo Lewandowski, em reunião com o presidente Lula e governadores de estado.
A proposta era aguardada com relativa ansiedade pelos operadores de segurança pública, de várias instituições, e profissionais do direito, sobretudo entre aqueles que atuam na esfera criminal e de execução penal.
Em primeira análise, o anteprojeto da PEC visa corrigir algumas distorções na arquitetura da segurança pública brasileira. Verdadeiros anacronismos que ainda perduram no modelo de segurança pública e defesa social. A arquitetura proposta ganha contornos de um microssistema de segurança pública constitucional.
O ponto central do anteprojeto guarda relação com a necessidade de constitucionalizar o tema da segurança pública. Para tanto, é possível identificar na construção da PEC três subtemas que servem de substrato normativo para a estruturalidade de uma nova arquitetura constitucional de segurança pública.
O primeiro ponto guarda relação com a inclusão no texto constitucional da previsão do Sistema Único de Segurança Pública (Susp). A questão, atualmente, encontra-se disciplinada (“apenas”) na Lei 13.675, de junho de 2018, que não só institui o Susp, como também criou a Política Nacional de Segurança Pública e Defesa Social (PNSPDS).
No entanto, em relação ao Susp e ao PNSPDS, a despeito das iniciativas dos diversos entes da federação, sabe-se que há limitações de ordem técnica, operacional e orçamentária. O tema ainda encontra certa timidez, não conseguindo alcançar a envergadura operacional e normativa necessária para fazer frente aos desafios da segurança pública brasileira, cada vez mais complexa e desafiadora para os profissionais de segurança pública e os operadores do direito com atuação na área, a exemplo de juízes, promotores, advogados e defensores públicos.
O segundo aspecto que merece destaque guarda relação com a proposta de ajustes nos artigos 21, 22, 23 e 24 da Constituição. São ajustes pontuais, mas de grande significado jurídico. Vejamos, uma a uma, as alterações propostas.
No artigo 21, por exemplo, a União passa a ter competência para “estabelecer a política nacional de segurança pública e defesa social” e “coordenar o sistema único de segurança pública e defesa social e o sistema penitenciário mediante estratégias que assegurem a integração, cooperação e interoperabilidade dos órgãos que o compõem nos três níveis político-administrativos da Federação”.
Trata-se de iniciativa importante, na medida em que o tema da segurança pública e defesa social passa a ter uma nova arquitetura interfederativa, com o governo federal assumindo um papel de destaque na coordenação e fomento de política nacional sobre o tema. A rigor, não há novidade, já que tais competências já constam na Lei 13.675/1998 (que instituiu o Susp). O diferencial é trazer a proposta do Susp para o texto constitucional, proporcionando uma “força normativa” sobre o tema até então inexistente.
O artigo 22 dá nova redação e explicita a competência privativa da União para legislar sobre a competência da polícia federal, da polícia ostensiva federal e da polícia penal federal. Trata-se de medida que merece atenção, sobretudo ao retirar do texto original a polícia ferroviária federal (definitivamente extinta pela nova PEC) e inserir a polícia penal federal.
No mesmo artigo, acrescenta-se o inciso XXXI, definindo a competência privativa da União para legislar normas gerais de segurança pública, defesa social e sistema penitenciário [1], em inequívoca demonstração do compromisso programático que a União pretende assumir no atual contexto da segurança pública brasileira.
No artigo 23 faz-se referência à competência comum da União, dos estados, do Distrito Federal e dos municípios, com o compromisso constitucional de que os entes devem “prover os meios destinados à manutenção da segurança pública e defesa social nas respectivas áreas de competência”. Expressa-se uma garantia de envergadura constitucional, até então implícita, para os órgãos e entidades de segurança pública e defesa social.
Por sua vez, o artigo 24, ao tratar da competência concorrente entre União, estados e Distrito Federal acrescenta novo inciso, trazendo previsão expressa de competência legislativa concorrente para tratar de “segurança pública e defesa social”. O tema, até então, era lacunoso, vez que não havia previsão específica no texto constitucional, dando margem a interpretações dúbias e recalcitrantes sobre o tema.
Todas as propostas acima elencadas visam inserir, vez por todas e com lugar de destaque, o tema da segurança pública e defesa social no texto constitucional brasileiro. Significa constitucionalizar o tema, propondo uma arquitetura normativa de assento constitucional que seja compatível com a relevância que o tema requer na contemporaneidade da sociedade brasileira em seu singular processo civilizatório. Vivemos um momento social que carrega as marcas de um modelo reconhecidamente em fase de transição para outro modelo que ainda não tem seus traços definidos.
Mas não só
A PEC vai além, buscando corrigir outras questões importantes.
O melhor exemplo é a proposta de criação da Polícia Ostensiva Federal. Seguramente busca-se uma simetria no âmbito federal de um modelo aplicado há décadas no âmbito estadual, nos quais se preconiza a atuação de uma polícia judiciária e de uma polícia ostensiva, ambas com atuação específica e nos limites de suas competências.
No âmbito federal não há uma polícia ostensiva com competências constitucionais abrangentes, muito embora a Polícia Rodoviária Federal, de forma cada vez mais frequente, seja chamada para atuar nessa condição. E o faz com extremo zelo e profissionalismo, apesar da insegurança jurídica que permeia intervenções dessa natureza.
É justamente nesse contexto que se concentra o segundo substrato da chamada PEC da Segurança Pública. A alteração do artigo 144, criando uma Polícia Ostensiva Federal a partir da (atual) Polícia Rodoviária Federal, permite uma importante e necessária reconfiguração na distribuição de competências constitucionais dos órgãos policiais, possibilitando uma atuação mais abrangente de uma força policial ostensiva federal, com atuação em rodovias, ferrovias e hidrovias federais (modais), ou seja, mantendo a característica histórica e a expertise de uma polícia ostensiva concentrada no binômio segurança pública e mobilidade.
Ainda, segundo a proposta do § 2º-A, seria possível a atuação da Polícia Ostensiva Federal, sob autorização da autoridade federal responsável, “exercer o policiamento ostensivo na proteção de bens, serviços e instalações federais”, exigindo uma leitura conjunta com o art. 20 da CF, que define quais são os bens da União. [2]
Ademais, abre-se a possibilidade de “prestar auxílio, emergencial e temporário, às forças de segurança estaduais e distritais, quando requerido por seus governadores”. Neste segundo ponto, trata-se de mais uma inovação, que se assemelha à atuação de uma Polícia de Pronta Resposta para situações emergenciais, cada vez mais frequentes na realidade brasileira, papel atualmente desempenhado com dificuldade pela Força Nacional.
Por sua vez, a Polícia Federal tem suas competências constitucionais mantidas no § 1º, ao longo dos incisos I a IV. Há um aprimoramento das competências descritas no inciso I para apurar “infrações penais contra a ordem política e social ou em detrimento de bens, serviços e interesses da União, inclusive em matas, florestas, áreas de preservação, ou unidades de conservação, ou ainda de suas entidades autárquicas e empresas públicas, assim como outras infrações cuja prática tenha repercussão interestadual ou internacional e exija repressão uniforme, como as cometidas por organizações criminosas e milícias privadas, segundo se dispuser em lei”.
No que toca à Polícia Federal, dá-se ênfase na PEC, sobretudo, às infrações penais relacionadas aos crimes ambientais de interesse da União, além das infrações penais pelo chamado “crime organizado” e “milícias privadas” cuja prática exija repressão uniforme e tenha repercussão interestadual ou internacional. As demais competências definidas nos incisos II a IV do § 2º (tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins; contrabando e descaminho; polícia marítima, aeroportuária e de fronteiras; e polícia judiciária da União) permanecem inalteradas.
Ponto importante
Não há propostas de alterações nas competências das polícias estaduais [3] e das guardas municipais. Vale dizer, não há qualquer alteração nas competências das polícias civis, militares, penais e, no âmbito dos municípios, das guardas. Por outro lado, a Polícia Ferroviária Federal — cuja previsão remonta ao texto original promulgado em 1988 — seria definitivamente extinta, vez que nunca foi estruturada na cena da segurança pública brasileira.
Chegamos, então, ao terceiro substrato da PEC. Busca-se constitucionalizar o tema referente aos recursos para a execução de programas ou ações de segurança pública e defesa social. É nesse sentido que a PEC visa incluir no texto constitucional a previsão de que “[a] União instituirá o Fundo Nacional de Segurança Pública e Política Penitenciária, com o objetivo de garantir recursos para apoiar projetos, atividades e ações em conformidade com a política nacional de segurança pública e defesa social, sendo vedado o contingenciamento de seus recursos”.
Chamo a atenção ao fato de que não há previsão dessa natureza no texto constitucional. Outro ponto relevante é que a PEC faz referência à vedação do contingenciamento de recursos do Fundo supracitado. Como mencionado anteriormente, a PEC busca, sobretudo, corrigir pontos sensíveis na arquitetura constitucional da segurança pública brasileira, tendo como vetor o modelo de atuação de forma integrada e coordenada, a partir da configuração de uma política nacional de segurança pública e defesa social. A integração, cooperação e interoperabilidade são vetores presentes na PEC, que encontram correspondência no princípio federativo e seus corolários.
E de onde surgem as críticas à PEC? Fazendo uma análise meramente técnico-jurídica, a partir de um debate ético, parece-me que há uma relativa incompreensão quanto ao objetivo da proposta. Talvez se busque atribuir à PEC uma natureza que o instrumento não possui. Essencialmente, uma proposta de emenda constitucional manifesta o desejo de alteração do texto constitucional, que pode ser concretizado por força do poder constituinte derivado.
É justamente por essa ótica jurídica que uma proposta de emenda constitucional deve ser compreendida, para compatibilizar o texto da Constituição ao desenvolvimento histórico da nação. A expressividade da força normativa de uma PEC reside em sua capacidade de construir o substrato que sirva de base e vetor para uma questão de relevância constitucional.
Não devemos nos iludir ao tentar trazer para a metalinguagem constitucional elementos do cotidiano da segurança pública. A rotina da atuação policial no Brasil é um campo extremamente desafiador para os profissionais de segurança pública. Talvez por isso se queira atribuir à PEC da segurança pública uma expressividade pragmática que ontologicamente o instrumento jurídico não possui.
A PEC, em uma primeira análise, tem um objetivo específico, buscando constitucionalizar o tema da segurança pública por intermédio de uma nova arquitetura constitucional. Os ajustes propostos, que para alguns podem parecer tímidos, visam fortalecer a segurança pública, reconfigurando a matriz de responsabilidades dos entes federativos. A PEC diz mais do que parece dizer à primeira vista, o que só pode ser percebido a partir da lente jurídica e analítica do valor (axiológico) contido na proposta de reforma constitucional.
Ademais, a rigor, não parece haver pontos que possam ferir a autonomia de estados ou municípios. Almeja-se, em outro sentido, garantir uma maior participação (e compromisso constitucional) do ente federal com a agenda da segurança pública, que tanto aflige a sociedade brasileira, de todas as raças, gêneros, credos, ideologias e regiões do país.
Não há dúvida de que a segurança pública no Brasil é um tema de primeira ordem. No entanto, a PEC apresentada não pode ser confundida com um demiurgo ou uma panaceia que solucionará todos os problemas da segurança pública. Não existem soluções fáceis para problemas complexos. E os dilemas da segurança pública no Brasil são, inequivocamente, uma questão complexa. Portanto, devemos pensar na PEC como um ajuste necessário, um redesenho do modelo constitucional de segurança pública, com potencial para produzir avanços no sistema de segurança pública de nosso país. Constitucionalizar o tema é uma medida necessária.
Muito embora já houvesse a previsão do capítulo da segurança pública no texto constitucional, estruturado por intermédio do artigo 144 da CF/88, faltava um fechamento normativo que garantisse coerência e integridade no tratamento do tema. As alterações que ocorreram anteriormente no artigo 144, por força das Emendas Constitucionais nº 19/98, 82/14 e 104/19, visavam corrigir ou atualizar questões pontuais. A PEC, em sua configuração integral, representa um significativo avanço dogmático, com aptidão para gerar efeitos na segurança pública e na justiça criminal.
É a partir da constitucionalização do tema que poderemos garantir novos alicerces e avançar para reformas estruturantes, implementando atualizações na legislação infraconstitucional. Decerto, em momento futuro, poderemos avançar para outros temas importantes, a exemplo do ciclo completo. No âmbito infraconstitucional, seguramente há temas a serem enfrentados, e a PEC vocaliza e reforça essas necessidades ao constitucionalizar verdadeiramente o tema da segurança pública no Brasil.
A chamada “PEC da Segurança Pública”, que está em seu estágio inicial de discussão, pode ser o ponto de partida para uma guinada na segurança pública brasileira. Não há dúvidas de que ainda há uma longa caminhada, mas a PEC se revela um importante vetor de transformação na realidade da segurança pública brasileira.
[1] Não confundir “sistema penitenciário”, que pela proposta seria de competência legislativa privativa da União, com “direito penitenciário”, previsto no art. 24, I, como competência legislativa concorrente da União, aos Estados e ao Distrito Federal.
[2] Com destaque para “as terras devolutas indispensáveis à defesa das fronteiras”; “vias federais de comunicação e preservação ambiental”; “potenciais de energia hidráulica”; “recursos minerais”; “sítios arqueológicos e pré-históricos” e “terras tradicionalmente ocupadas pelos índios”. Registre-se, no entanto, que nem todos os bens da União descritos no rol do art. 20 da CF poderiam contar com a atuação da Polícia Ostensiva Federal, como, por exemplo, “fortificações e construções militares”; “recursos naturais da plataforma continental e da zona econômica exclusiva”; “mar territorial” e “funções de polícia marítima, aeroportuária e de fronteiras”, pois já existem órgãos responsáveis por essas atividades. Daí a necessidade de uma lei formal para disciplinar essa nova atuação, possibilitando o policiamento ostensivo federal nas áreas de interesse da União (bens, serviços e instalações federais).
[3] É importante destacar que, recentemente, foram publicadas as Leis 14.735/23 (Lei Orgânica Nacional das Polícias Civis) e 14.751/23 (Lei Orgânica Nacional das Polícias Militares e dos Corpos de Bombeiros Militares), constituindo um importante marco legal para a organização das Forças Policiais dos Estados. A Polícia Federal e a (atual) Polícia Rodoviária Federal ainda não dispõem de Lei Orgânica para a organização de suas atividades e carreiras.
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