Novo capítulo sobre modulação de efeitos: STF permite ação rescisória na adequação do Tema 69
9 de novembro de 2024, 15h19
O plenário do Supremo Tribunal Federal revisitou a jurisprudência sobre a Tese do Século, seguindo o rito dos julgamentos em repercussão geral, e autorizou o ajuizamento de ações rescisórias para adaptar sentenças já transitadas em julgado às novas regras estabelecidas pela Suprema Corte no julgamento do Tema 69, que reconheceu o direito dos contribuintes à exclusão do ICMS das bases de cálculo de PIS/Cofins.
O julgamento do Tema 69 representou uma vitória para os contribuintes em 2017, mas o STF modulou seus efeitos em 2021, limitando a aplicação da decisão a partir de março de 2017. Na prática, somente os contribuintes que tinham ajuizado ações antes de março de 2017 puderam recuperar o que havia sido pago nos cinco anos anteriores à distribuição das ações.
E como ficaram aqueles contribuintes que tinham ações após março de 2017 e obtiveram decisão favorável transitada em julgado antes de 2021?
Muitos desses contribuintes haviam sido autorizados, por decisão transitada em julgado, a promover a recuperação de valores pagos nos cinco anos anteriores ao ajuizamento dos processos, tendo inclusive se aproveitado do decidido e realizado compensações. Porém, por estarem em desacordo com o decidido pelo STF em 2021, entraram na mira da Fazenda Nacional, que passou a ajuizar ações rescisórias, buscando impedir que estes contribuintes obtivessem a restituição dos valores em discussão.
Após o recente julgamento do Superior Tribunal de Justiça (STJ) em sede de recursos repetitivos sobre o mesmo tema, o STF também reconheceu a repercussão geral da questão, devido ao grande impacto financeiro, e manteve o entendimento do STJ pelo cabimento de ação rescisória contra decisão transitada em julgado em desacordo com a modulação dos efeitos da tese de repercussão geral do Tema 69.
Defesa da Fazenda Nacional
A Fazenda Nacional defendia que não poderiam prevalecer as decisões transitadas em julgado em processos ajuizados após março de 2017 que permitiram a exclusão do ICMS da base de cálculo do PIS/Cofins nos cinco anos anteriores.
A Fazenda sustentava que, após a modulação, seria cabível a rescisão dessas decisões para evitar prejuízo ao erário, alegando que a manutenção desses julgados implicaria uma ofensa à ordem pública e ao princípio da isonomia tributária, já que permitiria que estes contribuintes permanecessem em situação “privilegiada” em relação aos demais.
A legislação prevê que a ação rescisória é cabível para desconstituir decisões fundadas em leis ou atos normativos considerados inconstitucionais pelo STF, ou na interpretação, consideradas como incompatíveis com a Constituição. Porém, a jurisprudência havia se consolidado no sentido de que não cabe ação rescisória quando a decisão transitada em julgado se baseou em interpretação controvertida à época. (Súmula STF 343).
O tema tem implicações e impacta diretamente a arrecadação fiscal e na segurança das finanças das empresas.
Segurança jurídica
No entanto, a medida também suscita um debate sobre a eficácia da coisa julgada e os limites da ação rescisória. Será que esse recurso processual é a melhor forma de lidar com as mudanças de jurisprudência? Como fica então a segurança jurídica?
No voto vencedor, o ministro Luiz Roberto Barroso apontou que, no caso de Tema 69, não houve alteração de orientação do STF, tendo em vista que a primeira vez em que o tribunal se manifestou sobre a modulação dos efeitos foi ao apreciar os embargos de declaração, de modo que a modulação deve ser aplicada mesmo que já exista decisão judicial transitada em julgado em data anterior ao julgamento da modulação.
Houve divergência dos ministros Luiz Fux e Edson Fachin. Em seu voto, o ministro Fux defendeu a necessidade de preservar a coisa julgada e a segurança jurídica, argumentando que as decisões proferidas entre 2017 e 2021, isto é, antes da modulação dos efeitos, estavam de acordo com a jurisprudência do período, concluindo que a coisa julgada não pode ser desconsiderada pela nova decisão do Supremo que entendeu pela modulação dos efeitos da decisão, sob o risco de invalidar decisões legítimas proferidas por outros tribunais.
No mesmo sentido do decidido agora pelo STF, o STJ já havia se pronunciado recentemente firmando a tese de que é cabível a ação rescisória com fundamento no Código de Processo Civil (artigo 535, § 8º) para a adequação dos efeitos da modulação definida na Tese do Século (Tema 1.245).
Precedente para o transitado em julgado
Apesar desses julgamentos serem aplicáveis apenas para adequar decisões pautadas no Tema 69, os tribunais superiores acabaram por abrir um precedente para que decisões transitadas em julgado sejam questionadas com base em mudanças interpretativas posteriores em sede de repercussão geral via ação rescisória.
Para outros temas em que houver divergência entre a coisa julgada e a decisão posterior em repercussão geral, ou, como é o caso, a sua modulação, as sentenças até então definitivas poderão ser revistas e mudar o deslinde de casos que, pelo passar do tempo, podiam ser considerados encerrados.
A título de exemplo, temos o caso de um terço de férias constitucional que ainda assombra os contribuintes. O risco de que decisões individuais se tornem definitivas antes da finalização do julgamento do leading case justifica a briga para que todos os processos sejam sobrestados no país todo quando um tema é eleito para ser julgado em sede de recurso repetitivo até o seu trânsito em julgado. O objetivo é evitar, assim, que processos caminhem isoladamente e se encerrem enquanto o tema ainda não foi definitivamente apreciado pelas cortes superiores.
Em tese, a modulação dos efeitos visa justamente a preservar o equilíbrio entre a evolução do direito e a estabilidade das decisões judiciais. O que deveria ser uma exceção pontual pode acabar se tornando uma válvula de escape para revisar questões que, pela lógica jurídica, deveriam ser imutáveis. E o pior, as decisões de modulação são em sua maioria proferidas muito posteriormente às decisões de mérito e no limbo desse período os processos individuais caminham com a aplicação do precedente e há encerramento de muitos casos antes do tema ser definitivamente julgado pelos tribunais superiores.
Flexibilização da coisa julgada
Essa nova interpretação do STF parece distanciar-se da concepção tradicional da coisa julgada e se aproxima da força dos precedentes que passa a se destacar no direito brasileiro. Isso poderá permitir a reabertura de novos litígios, levantando questões importantes sobre a estabilidade das decisões judiciais e o impacto dessa medida no sistema tributário, caminhando perigosamente para a violação do princípio da segurança jurídica.
Ao flexibilizar a coisa julgada via cabimento de ação rescisória para se alinhar a novos entendimentos, a decisão da Suprema Corte pode gerar um ambiente de maior incerteza, onde o encerramento de uma disputa judicial se torna mais suscetível a mudanças em futuras decisões dos tribunais superiores.
Embora esse movimento possa ser visto como um mecanismo de justiça adaptativa, é importante considerá-lo com cautela e avaliar seus efeitos, especialmente visando a evitar que processos sejam julgados enquanto as cortes superiores não se pronunciem sobre o tema. Estaríamos promovendo um Judiciário que busca atender às especificidades de cada caso ou comprometendo a previsibilidade e a confiança no sistema judiciário? Torcemos para que não.
Encontrou um erro? Avise nossa equipe!