moeda na rede é vendaval

CriptoJud deve agilizar penhora de criptoativos, mas não evita fraudes

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9 de novembro de 2024, 17h43

O CriptoJud, sistema em desenvolvimento pelo Conselho Nacional de Justiça, sinaliza um importante esforço do Judiciário para agilizar a penhora e liquidação de criptoativos em processos de execução fiscal e cível e em falências.

tela de investimento em criptoativos

CriptoJud irá depender da adesão de cada exchange para ceder informações à Justiça

No entanto, a iniciativa é insuficiente para evitar fraudes de grandes devedores, que conseguem se furtar de credores e escoar o patrimônio com uso desses ativos digitais, como ocorreu no caso do “Faraó dos Bitcoins”.

A avaliação é de especialistas em Direito Digital e Falimentar ouvidos pela revista eletrônica Consultor Jurídico.

O novo sistema do CNJ está vinculado a um acordo de cooperação técnica celebrado em setembro com a Associação Brasileira de Criptoeconomia (Abcripto). A entidade reúne diversas exchanges (corretoras de cripoativos) atuantes no Brasil, entre outros atores interessados nesse mercado, como bancos e escritórios de advocacia.

A ideia é que o CriptoJud funcione de modo equivalente ao SisbaJud, usado para o bloqueio de valores em contas bancárias e ativos mobiliários, como ações. A nova plataforma vai se ater a criptoativos, como as criptomoedas. Para funcionar, será necessária a adesão de cada exchange ao sistema.

Atualmente, antes de eventualmente ordenar a penhora, a Justiça precisa oficiar cada exchange, geralmente as mais conhecidas, para identificar se guarda algum ativo do devedor. O CriptoJud deverá, portanto, encurtar esse caminho.

“O ponto mais importante do acordo é a possibilidade de cumprimento rápido das determinações judiciais que visam a localização e o bloqueio dos criptoativos”, resume a advogada e administradora judicial Lívia Gavioli Machado, sócia da Ativos Administração Judicial.

“É mais um passo dado no relevante percurso do sistema econômico brasileiro para que as operações com criptomoedas se tornem mais transparentes e acessíveis ao poder público”, diz Oreste Laspro, sócio da Laspro Consultores e também professor de Direito Processual da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP).

“A grande maioria dos usuários ainda adquire os criptoativos e os mantém nas corretoras, sendo certo que as maiores do mercado nacional irão cooperar com o Judiciário. Desse modo, o CriptoJud pode se mostrar um importante aliado, subsidiário, na localização de ativos de devedores insolventes”, acrescenta Eduardo Pellaro, sócio da banca Nelson Wilians Advogados e responsável técnico pela filial dela no Distrito Federal.

“Como ex-coordenadora do Grupo de Atuação Especial de Combate ao Crime Organizado (Gaeco) para a lavagem de dinheiro do Ministério Público do Rio Grande do Sul (MPRS), celebro o acordo pela sua contribuição à tutela dos bens jurídicos protegidos pela Lei de Lavagem de Capitais”, afirma ainda a promotora de Justiça Júlia Schütt.

Limitações do sistema

O alcance do CriptJud deverá ter, ainda assim, limitações, segundo explicam os especialistas. Isso se deve ao fato de que os criptoativos não precisam necessariamente estar custodiados nas corretoras online.

No caso do Bitcoin, por exemplo, que inaugurou o mercado das criptomoedas e se tornou a mais famosa das milhares já existentes, cada carteira digital que agrega o ativo conta com uma chave pública e uma outra privada.

A primeira dessas chaves é uma espécie de endereço que permite identificar a carteira na blockchain, como é chamada a rede de dados que registra as transações da criptomoeda. Já a segunda chave opera como uma senha, sobre a qual apenas o dono tem ciência, para que possa efetivamente transacionar os recursos dos quais dispõe.

Essa chave privada pode ser guardada pelo investidor em um dispositivo físico e offline, chamados de cold wallets (ou “carteiras frias”), algo como um pen drive ou um computador, o que, portanto, vai escapar do CriptoJud.

Deve-se levar em conta ainda que a blockchain de cada criptomoeda funciona como um livro contábil que registra as transações entre os investidores daquele ativo, mas não dispõe de uma autoridade central de emissão e regulação — como, por exemplo, o Banco Central atua junto ao real — capaz de bloquear os recursos ali transacionados.

Cada blockchain é descentralizada, amparada pelos computadores dos usuários que operam aquela criptomoeda. Cada máquina ligada à rede empresta sua capacidade de processamento para validar as transações entre os investidores e garantir que não houve fraudes nem gastos duplicados, em troca de novas unidades emitidas do ativo.

Ou seja, mesmo que seja possível rastrear o caminho de uma criptomoeda e identificar sob posse de qual usuário ela está, não há como efetivamente “colocar as mãos” no ativo encontrado.

Aplicação em falências

Essa dificuldade ficou evidente, por exemplo, no caso de Glaidson Acácio dos Santos, conhecido como “Faraó dos Bitcoins” e acusado de liderar uma organização criminosa que movimentou R$ 38 bilhões em um esquema de pirâmide financeira envolvendo criptomoedas.

As vítimas do caso teriam repassado dinheiro a ele a título de uma espécie de contrato coletivo para “prestação de serviços para investimento em Bitcoin”, sob a promessa de ganhos vultuosos para os clientes. Isso ainda ocorreu à margem de registro ou autorização de qualquer órgão regulatório.

Glaidson está preso preventivamente desde 2021, após a Polícia Federal ter deflagrado a operação “kryptos”. Tramitam agora processos sob dois juízos distintos, um criminal e outro falimentar, já que a empresa com a qual teria operado o esquema, a GAS Consultoria e Tecnologia, teve a falência decretada pela Justiça do Rio de Janeiro em fevereiro de 2023.

No mês passado, a 2ª Seção do Superior Tribunal Justiça decidiu ser de competência da 5ª Vara Empresarial da Comarca do Rio de Janeiro lidar com os bens constritos de Glaidson e da esposa, a venezuelana Mirelis Yoseline Diaz Serpa, também sócia da GAS e presa nos Estados Unidos no início deste ano, nas ações penais em que são réus.

Em junho de 2023, o jornal O Globo noticiou que ainda permanecia intacto na Superintendência da PF no Rio de Janeiro um notebook de Glaidson apreendido em agosto de 2021. O aparelho mantinha uma “carteira fria” de criptomoedas avaliada em mais de R$ 400 milhões, mas protegida por senha. O “Faraó dos Bitcoins” se negava a entregar o acesso mesmo diante da possibilidade de acordo para redução de pena.

Além disso, segundo o Ministério Público Federal, nos dias seguintes à operação “kryptos”, Mirelis Serpa, então foragida nos Estados Unidos, conseguiu movimentar mais de R$ 1 bilhão em Bitcoin em uma carteira de Glaidson.

Há hoje cerca de 120 mil credores da GAS, em sua maioria pessoas de baixa renda. Todas elas estão ainda à espera de reaver cerca de R$ 9,3 bilhões somados. A massa falida é gerida pelo escritório Zveiter.

Cultura de colaboração

O advogado Eduardo Pellaro diz que, por conta da limitação do CriptoJud às exchanges aderentes, o sistema deverá ajudar apenas com a localização de criptoativos de devedores que são ou foram investidores pontuais.

“Os reais investidores, que aplicam somas mais vultosas e que conhecem o mercado, apenas mantêm em corretoras os valores que estão movimentando, sendo que a guarda dos ativos é realizada em cold wallets. Então, nesse ponto em específico, para os chamados ‘devedores profissionais’, acredito que a ferramenta terá pouca utilidade”, explica.

Para a promotora de Justiça Júlia Schütt e advogada Lívia Gavioli Machado, a idealização do sistema pelo CNJ é ao menos um primeiro passo, com potencial para fomentar uma cultura de colaboração e transparência nesse mercado.

“Na insolvência ainda temos mais alguns desafios a ser enfrentados, como a liquidação de carteiras frias e classificação dos credores que realizaram aportes em dinheiro, sem a identificação de propriedade e de titularidade do ativo específico”, reconhece Lívia.

“Embora a descentralização dos criptoativos represente um desafio, a parceria com a Abcripto e a implementação do sistema de custódia e liquidação do CriptoJud reforçam a capacidade do Judiciário de intervir de maneira mais eficaz e organizada na gestão de criptoativos em processos de insolvência​”, diz a promotora.

Clique aqui para ler o acordo de cooperação do CNJ
ACT 133/2024

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