Opinião

Efeito 'cartaz' e 'primazia' da presunção de inocência no Tribunal do Júri

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  • é advogado inscrito na OAB-SP pós-doutorando em Ciências Jurídico-Criminais pela Universidade de Coimbra doutor em Direito pela Fadisp mestre e especialista em Ciências Jurídico-Criminais pela Universidade de Coimbra/USP avaliador do Inep/MEC e autor de livros capítulos e artigos jurídicos.

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8 de novembro de 2024, 11h23

A avaliação das relações causais pela primeira impressão dos jurados no julgamento pelo Tribunal do Júri pode inferir impacto negativo ao princípio da presunção de inocência ante o fato da defesa do réu se pronunciar posteriormente à acusação nos debates da sessão plenária nos termos do artigo 476 do Código de Processo Penal? [1]

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Sala do Tribunal do Júri vazia

A resposta é afirmativa. Evidentemente, o efeito primazia constatado experimentalmente por Solomon Asch, concluindo que através da primeira linha de raciocínio que a pessoa poderá prever uma característica mais comum [2].

Ao se analisar a ordem dos elementos (adjetivos) expostos no experimento de Solomon Asch, e considerando a ordem de inteligente para invejoso, os alunos sob análise aplicaram tal atributo classificando a pessoa mais positivamente. Os alunos que receberam os adjetivos em ordem inversa o classificaram negativamente.

Para David Myers, a “informação anterior pareceu tingir sua interpretação da informação posterior, produzindo o efeito de primazia” [3].

Com este raciocínio, as informações inicialmente apresentadas serão mais persuasivas. A cognição da pessoa liga as primeiras impressões como as mais importantes e carrega tal conclusão para outras situações semelhantes.

Tomada de decisões do conselho de sentença

Neste cenário, a teoria festingeriana [4] e da confirmation bias são atraídas pelo contexto do Tribunal do Júri.

A dissonância cognitiva e outros vieses cognitivos não se afastam daquele momento da tomada de decisões pelos jurados do conselho de sentença, considerando a incessante procura das relações causais que vinculam as provas apresentadas na instrução e nos debates em plenário.

As provas serão analisadas dentro do mesmo conjunto, no qual foram inseridas todas as partes consideradas importantes para a confirmação cognitiva (acusação e defesa) e reativadas pela memória do jurado quando do seu veredicto:

Os jurados quando confrontados com um complexo de provas, tendem a incorporá-las em estruturas coerentes de memória relativas a histórias causais em detrimento de considerar a prova fragmentariamente. Em outras palavras, a fragmentariedade de cada elemento de prova é desprezada para se levar em conta, no momento decisório, o conjunto de inúmeras parcialidades, o que garante, por exemplo, como aponta a jurisprudência, que ‘um conjunto de indícios possa servir como elemento de condenação’ [5].

Esse efeito psicológico causado na afiliação pela primeira impressão [6] é considerado pelos jurados e interconectado com as regras axiomáticas (cenário do júri, prisão preventiva, prostração do acusado, roupas de prisioneiro, algemas, forte esquema de segurança, entre outros), contribuindo para a dissonância cognitiva.

Esta sequela cognitiva impacta a compreensão dos fatos inferidos na primeira palavra pela acusação, que se apresenta municiada com elementos cognitivos consonantes com a autoria e a materialidade, com a culpabilidade do réu em conjunto com o ímpeto de justiça do Ministério Público dentro do seu standard de moralidade pública e daquelas virtudes que ressoam no imaginário e que devem, por isso, ser admiradas, influenciando os jurados do conselho de sentença.

Redução dos estereótipos de culpa do réu

A dissonância cognitiva deverá ser desinvertida, possibilitando a ampliação da probabilidade da redução dos estereótipos de culpa do réu, ao ser oportunizada à defesa a primeira palavra através de uma breve exposição na qual poderá narrar os elementos que condicionam a sua presumível inocência, restabelecendo sua condição de pessoa em frente aos jurados, e não de mero objeto de análise a partir da fria imputação de seu desígnio atroz.

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Oportunidade que conduzirá ao “efeito cartaz” o efeito primazia do princípio da presunção de inocência, refletindo que no processo penal vigora a proteção das garantias processuais penais, o tratamento equânime de cidadão e sujeito processual e, quando na presença da dúvida, o réu deverá ser absolvido.

Tal reflexo se amolda à intenção contida no projeto de lei da Itália [7], que determina a fixação de um cartaz sobre a presunção de inocência no processo penal (presunzione di non colpevolezza) para conhecimento de todos os atores processuais, bem como da sua leitura interpretativa ao final da sentença penal condenatória.

O ciclo consonante será completado com a última palavra da defesa, a qual será lembrada pelos jurados. Sem esta disposição sequencial, os jurados podem não atribuir valor cognoscível aos elementos consonantes com a defesa, pois estarão bloqueados pelos elementos cognitivos produzidos pela acusação, contribuindo para uma decisão condenatória.

Necessidade de originalidade imparcial do julgador

Para o respeito ao princípio da presunção, afastando sua relativização, justifica-se a necessidade de uma originalidade cognitiva e imparcial do julgador no processo penal, também aplicável aos jurados do Conselho de Sentença, quando da tomada de decisão em seu veredicto.

Para Ruiz Ritter, a percepção das pessoas e a sua vinculação à primeira impressão (efeito primazia) faz nascer a denominada dissonância “pós-primeira impressão”, com decorrências cognitivo-comportamentais advindas e que sugerem ser estendidas às demais impressões posteriores, como “consequências cognitivo-comportamentais da fixação de uma primeira impressão em relação a outras posteriores a ela” [8].

Nesta direção, o “juiz das garantias é uma das principais evoluções na instrumentalização do processo penal em vista à imparcialidade no sistema acusatório, satisfazendo uma precípua função antidissonância cognitiva no processo penal brasileiro, e reconstruindo o signo de tratamento e de juízo contidos no princípio da presunção de inocência” [9], podendo afastar o efeito primazia das primeiras impressões que influenciam a tomada de decisão no processo penal.

Dentro desta interpretação aplicável ao procedimento ordinário e em alguns momentos como o ora destacado do rito do Tribunal do Júri, somente haverá garantia de uma originalidade cognitiva, afastando a primeira impressão quando o juiz tome conhecimento do caso posto na fase processual penal e o jurado no Conselho de Sentença perceba o “efeito cartaz” que conduz ao efeito primazia do princípio da presunção de inocência em seu duplo sentido:

O princípio da presunção de inocência em seu duplo significado, como norma de tratamento interna e externa conduz à proteção condigna do acusado, afastando a presunção de culpa, a antecipação de penas e a sua estigmatização social. Como regra de juízo atribui o onus probandi à acusação e reflete o equilíbrio da análise do standard probatório pelo juiz, afastado de vieses cognitivos e dos efeitos da dissonância cognitiva, e ao se constatar a presença da dúvida razoável procede à aplicação do axioma in dubio pro reo em vista à absolvição. [10]

O processo penal garantista nutre-se do significado e da razão de ser do princípio da presunção de inocência, afastando qualquer inanição às garantias processuais penais que agem consequentemente na construção do sistema acusatório.

 


[1] LIMA, Ricardo Alves de. Juiz das garantias: entre a dissonância cognitiva e a presunção de inocência. Londrina: Thoth, 2024, p. 237.

[2]ASCH, Solomon Ellioutt. Psicologia social. Tradução de Dante Moreira Leite e de Miriam Moreira Leite. 5. ed. São Paulo: Companhia Editorial Nacional, 1971, p. 176-186.

[3]MYERS, David G. Psicologia social. Porto Alegre: Grupo A, 2014, p. 195.

[4] Detalhes sobre a Teoria da Dissonância Cognitiva de Leon Festinger consultar: LIMA, Ricardo Alves de. op. cit., p. 37-100.

[5] GLOECKNER, Ricardo Jacobsen. Prisões cautelares, confirmation bias e o direito fundamental à devida cognição no processo penal. Revista Brasileira de Ciências Criminais. São Paulo, ano 23, v. 117, p. 263-286, nov.-dez. 2015p (p. 277-278).

[6]“A afiliação é determinada, em certa medida, pelas expectativas de uma pessoa acerca das interações com outras pessoas e pelos conhecimentos que tenha dela. […], as primeiras impressões são não só o começo da interação social mas também as suas principais determinantes”. FREEDMAN, Jonathan L; CARLSMITH, J. Merril; SEARS, David O. Psicologia social. Tradução de Álvaro Cabral. 3. ed. São Paulo: Cultrix, 1977, p. 40.

[7] ITÁLIA. Atto Camera n. 3304, de 05 de outubro de 2021. Roma: Câmara dos Deputados. Disponível em: https://parlamento18.openpolis.it/singolo_atto/55855. Acesso em: 05 nov. 2024.

[8]RITTER, Ruiz Daniel Herlin. Imparcialidade no processo penal: reflexões a partir da teoria da dissonância cognitiva. p. 195. Dissertação (Mestrado) – Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2016. Disponível em: https://tede2.pucrs.br/tede2/handle/tede/7262. Acesso em: 05 nov. 2024, p. 111.

[9] LIMA, Ricardo Alves de. op. cit., p. 260.

[10] LIMA, Ricardo Alves de. op. cit., p. 256.

Autores

  • é advogado, pós-doutorando em Ciências Jurídico-Criminais pela Universidade de Coimbra, doutor em Direito pela Fadisp, mestre e especialista em Ciências Jurídico-Criminais pela Universidade de Coimbra/USP, avaliador do Inep/MEC e autor de livros, capítulos e artigos jurídicos.

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