Opinião

Julgamento da ADI 2.135 e fim do regime jurídico único: o STF errou

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  • é advogado consultor legislativo do Senado mestre em Administração doutor em Ciências Sociais professor colaborador da Ebape/FGV e ex-subchefe de análise e acompanhamento de políticas governamentais da Casa Civil-PR (2003-2014)

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8 de novembro de 2024, 6h06

Em 6 de novembro de 2024, o Supremo Tribunal Federal retomou o julgamento do mérito da Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 2.135, ajuizada em 1999 pelo PT, PCdoB e PDT, questionando a validade de alterações promovidas no texto da Carta de 1988 pela Emenda Constitucional nº 19, de 1998 a reforma administrativa do governo FHC.

Marcello Casal Jr/Agência Brasil

No curso do debate sobre a PEC 173/95, que deu origem à EC 19, a Câmara dos Deputados, entre outras decisões relevantes, rejeitou, na votação de um destaque para votação em separado, a alteração ao caput do artigo 39 da Constituição, que previa que os entes federativos deveriam manter regime jurídico único e planos de carreira para os servidores da administração direta, autárquica e fundacional.

No entanto, ao elaborar a redação para o segundo turno, o relator da PEC 173/95, deputado Moreira Franco, desrespeitou a decisão dos deputados e converteu o § 2º do artigo 39 por ele proposto em caput do artigo 39, como se a rejeição da alteração ao caput do artigo 39 implicasse, por si, na rejeição do próprio texto constitucional aprovado pela Assembleia Nacional Constituinte.

Essa manobra foi imediatamente questionada por deputados da oposição em plenário, sendo a questão de ordem indeferida em 19 de outubro de 1997 pelo então presidente da Câmara, Michel Temer. Em seguida, foi ajuizado um mandado de segurança para impedir a votação em segundo turno do texto adulterado, mas o STF negou a liminar pleiteada sob o argumento de que a discussão ainda estava em curso na Câmara.

Ao ser votada a matéria em segundo turno, o texto adulterado pelo relator foi aprovado por 3/5 de votos e mantido pelo Senado, em dois turnos de votação e por 3/5 de votos.

Apenas em 12 de agosto de 1999, o STF determinou o arquivamento do mandado de segurança, sob argumento de que se achava prejudicado.

Ao ser ajuizada em janeiro de 2000 a ADI 2.135, da qual fomos o patrono [1], em nome do Partido dos Trabalhadores, apresentamos todos os elementos relativos ao debate travado, assim como precedentes comprobatórios de que a manobra redacional adotada era írrita, e apenas configurava fraude à decisão do plenário, na votação da matéria.

Spacca

Em 8 de novembro de 2001, o relator da ADI 2.135, ministro Neri da Silveira, em profundo e correto voto, reconheceu a fraude ocorrida, concedendo a liminar; contudo, pedidos de vistas da ministra Ellen Gracie (8/11/2001) e ministro Nelson Jobim (27/6/2002), este devolvido apenas em 23 de março de 2006, impediram a conclusão do julgamento.

Apenas em 2007, após o Poder Executivo haver, inclusive, regulamentado o “regime de emprego público” e implementado essa alternativa em alguns poucos órgãos, fragilizando a unicidade do regime jurídico, o plenário concluiu o julgamento da medida liminar, seguindo o voto do relator.

Assim, a demora no julgamento da liminar (de 2000 a 2007) decorreu de pedidos de vistas, mas ela não impediu que o plenário reconhecesse a correção do voto do relator e do próprio pedido formulado na ADI. Assim, restabeleceu-se o caput original do artigo 39 da Constituição, e a Carta Magna passou a ter 2 caputs nesse artigo: o original e o introduzido pela EC 19.

Liminar de 2007 confirmada

Em setembro de 2020, a nova relatora, ministra Carmen Lucia, apresentou seu voto, confirmando a liminar deferida em 2007 e acolhendo os argumentos dos partidos políticos autores da ADI 2.135.

Em 18 de agosto de 2021, retomado o julgamento, o ministro Gilmar Mendes (que era advogado-geral da União quando do início do julgamento da ADI, em setembro de 2001, e que, portanto, deveria julgar-se impedido, embora o Regimento da Corte não o exija) antecipou seu voto e defendeu, como ministro, a mesma tese que defendera como advogado-geral da União: que se tratava de matéria “interna corporis“, e que seria “legítima” a decisão do presidente da Câmara ao indeferir a questão de ordem, assim como a aprovação da redação final apresentada, suprimindo o caput do artigo 39, apesar da rejeição de sua alteração nos termos propostos pelo relator.

Pedido de vistas do ministro Kassio Nunes Marques suspendeu, então, novamente, o julgamento.

Retomado em 6 de novembro de 2024, a Corte, porém, por maioria de votos, acolheu a tese do voto do ministro Gilmar Mendes.

Em seu voto, Nunes Marques afastou os argumentos adotados para o deferimento e confirmação da liminar pelos ministros Neri da Silveira e Carmen Lucia, entendendo, singelamente, que a emenda referente ao artigo 39, caput fora de “natureza redacional sem qualquer alteração substancial”, ignorando, de forma surpreendente, a natureza dos fatos.

Passou despercebido ao ministro que, a nova redação então dada ao caput do artigo 39, que fora rejeitada, previa que “Lei de iniciativa de cada Poder da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios instituirá política remuneratória e planos de carreira obedecendo aos princípios do mérito e da capacitação continuada e à natureza, complexidade e atribuições dos respectivos cargos”, vedando, ainda, concessão de diversas vantagens ou “penduricalhos”.

Essa redação era acompanhada de alteração no artigo 37, IX, prevendo que “lei da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios disporá sobre o contrato de emprego público na administração direta, autárquica e fundacional”. Ambas foram rejeitadas na mesma votação, o que não implicou como não poderia a supressão do inciso IX do artigo 37 em vigor, assim como não poderia implicar a supressão do caput original do artigo 39.

Mudança em conteúdo do artigo 39

A redação adotada pelo relator da PEC 173/95, porém, colocando como caput do artigo 39 dispositivo que passaria a prever apenas que “a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios instituirão conselho de política de administração e remuneração de pessoal, integrado por servidores designados pelos respectivos Poderes” (regra, até hoje, não cumprida pela União), modificou essencialmente o conteúdo do artigo 39, num claro e cristalino “golpe de mão” que transformou a derrota da introdução do regime de emprego em lugar do RJU em uma “omissão constitucional”, permitindo qualquer regime de trabalho.

Porém, para o ministro Nunes Marques, isso não era “alteração substancial” … Nem haveria inconstitucionalidade formal, mas apenas “resistência” dos partidos de oposição que, ao impedirem a aprovação da nova redação do caput do artigo 39, não teriam afetado o novo § 2º, que magicamente foi “trasladado” para o caput. Nesse raciocínio, o que ocorreu a posteriori teria validado a manobra redacional, o que seria de competência do Legislativo no gozo de sua autonomia e normas regimentais, insuscetível de exame pelo Judiciário…

O ministro Flavio Dino, para nossa surpresa, considerou estar em debate matéria de exclusiva competência das Casas Legislativas e que o instrumento regimental adotado seria de natureza infraconstitucional. Nesse sentido, para o ministro, caberia à Casa Legislativa aplicar o entendimento que achar conveniente, e que a validação pelas Casas, em sequência, teria igualmente validade a manobra. Assim, como corolário dessa tese, uma vitória da oposição, rejeitando mudança promovido por PEC em primeiro turno, poderia ser objeto de “ressurreição” em segundo turno…

Dino apenas ressalvou a eficácia da flexibilização de regimes para o futuro, de modo a não serem afetados os novos servidores, de forma compulsória. Nesse ponto, não inova: ao reintroduzir o regime celetista em 1974, pela Lei nº 6.185, o próprio regime militar seguiu essa mesma tese e não alterou de forma compulsória o regime dos então servidores estatutários, apesar da consolidada jurisprudência da Corte de que não há direito adquirido a regime jurídico. A modulação de efeitos foi acolhida por Gilmar Mendes, que inaugurou a tese, que, ainda, acrescentou a possibilidade de que sejam diferenciadas as “carreiras de Estado” quanto ao regime jurídico.

Também os ministros Roberto Barroso, Alexandre de Moraes, André Mendonça, Dias Toffoli e Cristiano Zanin adotaram esse entendimento, não identificando violação ao processo legislativo, e que tudo teria ocorrido “na forma do regimento interno”, ou “mera formalidade” empregada para suprir um “caput que não existiria” igualmente ignorando os fatos e a natureza do texto constitucional e requisitos da própria Constituição para sua modificação.

Falta de argumentos jurídicos

Ignoraram tais votos que, se a Constituição não prevê a figura do destaque para votação em separado, ela tampouco permite que um texto rejeitado seja restabelecido, ou que, rejeitada uma alteração constitucional, outra seja posta em lugar do texto vigente, mediante “remanejamento” de posição, como se a intenção da emenda constitucional não fosse a de alterar um texto vigente, ou introduzir novo texto na Constituição, mas produzir “do zero” uma norma constitucional… A soberania do plenário, para aprovar redação final em qualquer matéria, não pode, por óbvio, subverter o próprio processo legislativo.

O próprio presidente da Corte, ministro Roberto Barroso, de forma curiosa, defendeu ainda a redação final adotada com argumentos que, de jurídicos, nada têm: sua Excelência arvorou-se em papel de “reformador do Estado”, defendendo que a extinção do RJU estaria “em consonância com as demandas atuais da administração pública e favorece a promoção da eficiência” e “ao reduzir o formalismo excessivo na gestão administrativa, a mudança oferece maior flexibilidade para as contratações públicas de pessoal” e “tem potencial de melhorar a qualidade dos gastos com pessoal por proporcionar modelos de contratação que considerem as particularidade e finalidades específicas de cada função e as necessidades da Administração”…

Apenas os ministros Luiz Fux e Edson Fachin reconheciam a inconstitucionalidade apontada e confirmada pela relatora, ministra Carmen Lucia, notadamente quanto à necessidade de observância do rito constitucional estabelecido para aprovação de emendas à Constituição. Como destacado pelo ministro Fachin, a questão de fundo é de extrema importância e gravidade, pois se trata da manutenção ou não do regime jurídico único, estatutário algo que, em primeira votação, a Câmara dos Deputados decidiu manter. Não se trata, assim, de matéria interna corporis, mas de reintrodução de matéria nova, não aprovada em primeiro turno, pela via da “redação final”.

Eloquente, ainda, o voto do ministro Fux, que apontou a não obtenção do quórum de aprovação para a alteração do caput do artigo 39, e que o ocorrido ultrapassa o limite das “adequações redacionais” decorrentes. Ou seja: foram feitas alterações de redação não emanadas do plenário.

Direito de errar por último

O STF é, como repetidamente dito, a instituição da República que tem o direito de errar por último. Mas também erra. E, no caso do julgamento da ADI 2.135, errou gravemente.

Esse erro, porém, é definitivo, no sentido de que o plenário não pode rever o julgamento proferido, exceto no que se refere a embargos de declaração.

E, nesse sentido, caberia aos partidos autores da ação apresentar esses embargos, para questionar:

a) se, ausente a limitação constitucional, é lícita a introdução de qualquer outro regime jurídico, ou apenas o regime de emprego público já objeto da Lei nº9.962, de 2000;
b) se, na hipótese de adoção do regime de emprego público, para futuros servidores, estarão eles sujeitos ou não à livre demissibilidade;
c) se, na mesma hipótese, sendo esses servidores regidos pela CLT e filiados ao regime geral de previdência social, a contribuição da União para esse regime deverá incidir, como ocorre com os demais empregados celetistas, sobre a totalidade da remuneração, visto que, no caso de servidores efetivos, ela incide apenas até o teto do RGPS, e corresponde ao dobro da contribuição do servidor;
d) se, nos termos do artigo 247 da Constituição, as garantias especiais contra a perda do cargo para servidores de atividades exclusivas de Estado implica, obrigatoriamente, a manutenção do regime estatutário.

Disputar a constitucionalidade de uma matéria legislativa no STF é parte do jogo democrático e expressão do sistema de freios e contrapesos. Ela depende, contudo, de o quanto a própria Corte se empenha no exercício dessa competência, o quanto preza pela sua autonomia e independência, ao enfrentar abusos de poder cometidos pelas maiorias no Poder Legislativo. Quando a Corte renuncia a esse poder, apegando-se a argumentos frágeis, sem apoio nos fatos e na própria Constituição, não é apenas a matéria em exame que sofre prejuízo. É todo o sistema constitucional e o próprio equilíbrio entre os Poderes.

Não desconhecemos o fato de que o Legislativo debate a supressão de poderes do STF, a limitação do poder dos Ministro de conceder medidas liminares, e até mesmo o seu impedimento, sempre sob o argumento de que a Corte extrapola suas prerrogativas. Mas a competência que a Constituição lhe atribuiu, como seu guardião, é missão indeclinável e que não comporta tergiversação, deferência ou submissão a quaisquer interesses, tanto mais quando presente a fraude ao processo legislativo.

Como dizia o grande brasileiro Darcy Ribeiro, ao mencionar as derrotas sofridas ao longo de sua produtiva e impressionante carreira acadêmica e política, “os fracassos são minhas vitórias. Eu detestaria estar no lugar de quem me venceu.”

 


[1] Ver artigo sobre o tema em https://www.migalhas.com.br/depeso/353065/a-adi-2-135-e-o-regime-juridico-unico e https://congressoemfoco.uol.com.br/blogs-e-opiniao/forum/a-adi-2-135-e-o-regime-juridico-unico-o-stf-como-guardiao-do-devido-processo-legislativo/

Autores

  • é advogado, mestre em Administração, doutor em Ciências Sociais, ex-subchefe de Análise e Acompanhamento de Políticas Governamentais da Casa Civil-PR (2003-2014), professor Colaborador da Ebape/FGV e sócio da Diálogo Institucional Assessoria e Análise de Políticas públicas.

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