Exclusão do IR do cálculo da margem bruta das distribuidoras de gás
8 de novembro de 2024, 15h18
O fato de que os contratos de concessão de serviços de distribuição de gás natural firmados por diversos estados, como Rio Grande do Sul, Alagoas, Bahia e Pernambuco, contêm cláusulas exorbitantes, consideradas por muitos ilegais e inconstitucionais, não é novidade para os que atuam no setor energético. Mas é preciso dar destaque a um ponto específico, que é a inclusão dos custos com Imposto de Renda no custo de capital e, consequentemente, na margem bruta (ganho) das concessionárias.
O pagamento desse custo pelos usuários do serviço, por meio das tarifas, deve ser rechaçado, e tal posição baseia-se em argumentos constitucionais, legais e econômicos que, em última análise, visam garantir a modicidade tarifária e a justiça na regulação dos serviços públicos.
A tarifa média praticada pelas distribuidoras é formada por uma parcela relativa ao preço de venda do gás (PV) e uma parcela relativa à margem bruta de distribuição da concessionária (MB). De modo geral, o cálculo da margem bruta está estruturado na avaliação prospectiva dos custos dos serviços, na remuneração e depreciação dos investimentos vinculados aos serviços objeto da concessão, realizados ou a realizar ao longo do ano de referência para cálculo e, finalmente, na projeção dos volumes de gás a serem vendidos durante o ano.
A revisão da margem bruta, por sua vez, é feita de acordo com uma fórmula que considera a soma (1) do custo do capital; (2) do custo operacional; (3) da depreciação; de (4) ajustes; e, em alguns casos, (5) do aumento de produtividade. O problema trazido à discussão reside no custo do capital, que considera, além de custos com investimentos realizados e a realizar ao longo do ano (com uma taxa de remuneração geralmente fixada em 20% a.a), os custos com o Imposto de Renda pago pela concessionária.
Afronta ao princípio da modicidade das tarifas
A inclusão do Imposto de Renda no cálculo da margem da distribuidora contraria não apenas a lógica econômica e regulatória — uma vez que não faz sentido algum o usuário de serviço público ser responsável pelo custo do imposto pago pela concessionária sobre o lucro por ela auferido, mas também todos os dispositivos constitucionais, legais e contratuais que determinam que a prestação de serviços deve garantir a modicidade das tarifas.
A Constituição Federal, em seu artigo 175, inciso IV, ao tratar do regime de concessão de serviços públicos, estabelece que a lei disporá sobre a obrigação de manter serviço adequado. Em atendimento ao dispositivo constitucional foi editada a Lei Geral de Concessões (Lei nº 8.987/1995), disciplinando o regime de concessões da prestação de serviços públicos previsto.
Segundo estabelece a Lei Geral, em seu artigo 6º, § 1º, serviço adequado é o que satisfaz as condições de regularidade, continuidade, eficiência, segurança, atualidade, generalidade, cortesia na sua prestação e modicidade das tarifas. Como é bem sabido, a Lei 8.987/1995 aplica-se também aos estados, que deverão promover “a revisão e as adaptações necessárias de sua legislação às prescrições desta Lei, buscando atender as peculiaridades das diversas modalidades dos seus serviços”, conforme rege o parágrafo único do artigo 1º.
As disposições da Lei Geral são acompanhadas pelas legislações dos estados. A Lei nº 15.648/2021, do estado do Rio Grande do Sul, por exemplo, que dispõe sobre a concessão dos serviços locais de gás canalizado, bem como estabelece os princípios, as diretrizes e as normas relativas ao serviço no Estado, também trata da modicidade das tarifas, estabelecendo, em seu artigo 3º, como princípio da exploração dos serviços de gás canalizado o “serviço adequado ao pleno atendimento dos usuários, realizado mediante a satisfação das condições de regularidade, de continuidade, de eficiência, de segurança, de atualidade, de generalidade, de cortesia na sua prestação e de modicidade das tarifas”.
Os contratos de concessão firmados pelas distribuidoras também apregoam a modicidade tarifária ao definir serviço adequado. Mantendo por exemplo o estado do Rio Grande do Sul, o item 2.1 do contrato de concessão da Sulgás estabelece que “por serviço adequado entende-se o que satisfaz as condições de regularidade, continuidade, eficiência, segurança, atualidade, generalidade na sua prestação, modicidade das tarifas e cortesia”.
Mas a ilegalidade da inclusão do Imposto de Renda nas tarifas não se limita à contrariedade a princípios como o da modicidade tarifária. A Lei nº 8.987/1995, ao tratar da política tarifária, expressamente segregou o Imposto de Renda dos encargos a serem suportados pelos usuários de serviço público, ao estabelecer, no § 3º do artigo 9, que ressalvados os impostos sobre a renda, a criação, alteração ou extinção de quaisquer tributos ou encargos legais, após a apresentação da proposta, quando comprovado seu impacto, implicará a revisão da tarifa, para mais ou para menos, conforme o caso.
No estado do Rio Grande do Sul, o artigo 41 da Lei nº 15.648/2021, prevê expressamente que o Imposto de Renda não deverá compor a tarifa: “As tarifas a serem aplicadas na delegação dos serviços públicos de distribuição de gás canalizado poderão ser reguladas por meio de metodologia de margem máxima de distribuição, visando a, sem prejuízo da modicidade tarifária, oportunizar à concessionária o justo retorno dos investimentos, bem como a obtenção de receitas suficientes para cobrir os custos adequados de operação, de manutenção e de impostos, exceto os impostos sobre a renda”.
Necessidade de ações dos estados e agências e possibilidade de revisão dos contratos
Estabelecida a contrariedade ao princípio da modicidade tarifária e às legislações que preveem especificamente a exclusão do Imposto de Renda da remuneração da concessão, é importante a adoção, pelos estados e agências reguladoras, de ações que coíbam a ilegalidade. Dentre os objetivos das agências estaduais, inclusive, está o de assegurar a prestação de serviços adequados, assim entendidos aqueles que garantem a modicidade nas suas tarifas.
Resta agora a discussão acerca da possibilidade ou não de revisão dos contratos de concessão, uma vez que, para muitos, a alteração da composição da tarifa implicaria em desequilíbrio econômico-financeiro, outro pressuposto essencial ao instituto da concessão de serviços públicos.
Neste aspecto, é importante destacar que a exclusão do Imposto de Renda não apenas é possível, como atende à determinação de modicidade tarifária, e não implica em desequilíbrio econômico-financeiro da concessão, conforme veremos.
O professor Arnoldo Wald, em artigo publicado na Revista de Informação Legislativa [1] defende que
“Muito embora o contrato de concessão contenha as regras regulamentares e econômicas da concessão, todas as normas que vierem a ser baixadas pela agência reguladora, dentro dos poderes que lhe foram delegados por lei, passam a ser aplicáveis aos contratos já firmados, considerando a prerrogativa do Poder Público de exercer o ius variandi, ou seja, de alterar unilateralmente as cláusulas regulamentares ou de serviço, desde que mantidas as cláusulas econômicas atinentes à remuneração da concessionária ou do permissionário, que são intangíveis por força de garantias constitucionais, legais e contratuais.”
Ou seja, normas posteriores devem ser aplicadas ao contrato de concessão anterior, desde que mantidas as cláusulas econômicas atinentes à remuneração da concessionária. O ponto é que o Imposto de Renda, embora parte da margem da distribuidora, não compõe a sua remuneração.
Alexandre Aragão [2], ao defender a possibilidade de o contrato de concessão criar direitos e obrigações, ainda que estes não estejam previstos em lei, aponta que isso não poderá ocorrer quando as disposições contratuais sejam contrárias às regras e princípios constitucionais ou legais.
‘‘Contudo, a possibilidade de os editais e contratos administrativos criarem direitos e obrigações sem base legal específica prévia não terá lugar quando forem contrários às regras e princípios constitucionais ou legais, ou quando a lei já estabelecer a consequência de determinada situação, não podendo o contrato estabelecer outra’’.
Ainda que o contrato de concessão seja anterior à Lei Geral de Concessões, e às legislações específicas dos Estados, entendemos que cabe à agência reguladora, ou ao estado, na ausência de agência, realizar a correção da distorção, adotando a exclusão do Imposto de Renda no cálculo da margem bruta.
Ao analisar o tema, o estado do Espírito Santo, bravamente, entendeu por afastar o Imposto de Renda do cálculo da margem da distribuidora. A Agência de Serviços Públicos do Estado do Espírito Santo (Aspe), ao realizar a análise do pleito de revisão tarifária anual da concessionária de gás canalizado para o ano de 2013, não apenas determinou a exclusão dos impostos associados a resultados do cálculo da margem de distribuição, mas também a provisão dos impostos relativos ao ano de 2013 [3].
Em suma, a defesa da exclusão do Imposto de Renda no cálculo do custo de capital está amparada por sólidos argumentos constitucionais, legais e econômicos. A regulamentação estadual e federal evidencia a necessidade de modicidade tarifária e o adequado retorno financeiro à concessionária sem que tributos incidentes sobre o lucro onerem os usuários. Portanto, ao adotar essa exclusão, estados e agências reguladoras podem promover uma estrutura tarifária justa e conforme a lei, beneficiando tanto os consumidores quanto a eficiência do setor.
[1] Brasília a. 36 n. 141 jan./mar. 1999, disponível em https://www2.senado.leg.br/bdsf/handle/id/457
[2] ARAGÃO, Alexandre Santos de. Direito dos Serviços Públicos. 4ª Edição Revista e Atualizada. Belo Horizonte. Fórum, 2017.p.303
[3] Resolução ASPE nº 008/2013
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