Consultar o processo eletrônico significa ciência de ato processual?
8 de novembro de 2024, 10h19
Quando os autos eram em formato analógico, a consulta física era a única forma de acesso aos autos, em geral, com o deslocamento até o cartório/secretaria. No entanto, com o processo eletrônico, as formas de acesso se ampliaram por meio acesso remoto ao conteúdo dos atos processuais. Com a alteração do ambiente (analógico para digital), as coordenadas de atuação exigem atualização para se evitar o comportamento das partes e/ou dos procuradores orientados à obtenção de vantagem competitiva por meio da ciência antecipada de atos processuais.
A questão é: quando um procurador consulta os autos eletrônicos antes da citação, intimação ou notificação, o acesso conta como marco inicial da contagem do prazo?
Antes de responder, no entanto, cabe destacar que a boa-fé objetiva [CPC, artigo 5º] orienta a atuação profissional em qualquer seara do Direito (processo civil, penal, trabalhista, eleitoral etc.), impondo deveres de conformidade explícitos e implícitos (compliance processual).
A “cláusula geral” da boa-fé objetiva associa-se ao “dever de conformidade” [compliance] e accountability (transparência; prestação de contas] das partes no exercício de direitos e deveres no processo. Consiste no dever de orientar o comportamento pela ética, lealdade, honestidade, lisura, probidade, confidencialidade, confiança, consideração, dever de informação, proporcionalidade, coerência e observância normativa.
Conjuga-se com diversos deveres implícitos ou extensivos, não decorrentes diretamente de regras jurídicas, deduzidos a partir dos pressupostos democráticos do exercício de poderes no domínio do processo [devido processo legal].
A partir da boa-fé objetiva pode-se corrigir/suplementar [função integradora: criação de deveres; obrigações; ônus], interpretar ou limitar o exercício de direitos subjetivos. A boa-fé objetiva se materializa, dentre outros institutos: [a] proibição de comportamento contraditório — venire contra factum proprium [vir contra fato próprio]; [b] dever de mitigar o próprio dano [duty to mitigate the loss]; [c] “cooperação processual”; [d] “supressio”; [e] “surrectio“; e, [f] “tu quoque”.
Logo, se a “comunicação dos atos processuais” destina-se a dar “ciência” às partes e seus procuradores do conteúdo dos atos judiciais, a consulta realizada diretamente aos autos eletrônicos significa a realização voluntária do efeito do ato pendente (intimação; notificação; citação), autovinculando-se ao comportamento antecedente (CABRAL, Antonio do Passo. Coisa Julgada e Preclusões Dinâmicas. Salvador: Juspodivum, 2019, p. 47-48), com a atração da consequência: início do prazo legal.
A diretriz foi adota no julgamento da apelação 5000792-56.2020.8.24.216, da qual fui relator, junto ao Tribunal de Justiça de Santa Catarina (5ª Câmara de Direito Público), assim ementado:
“PROCESSUAL CIVIL. QUERELA NULLITATIS INSABABILIS. SENTENÇA DE IMPROCEDÊNCIA. RECURSO DE APELAÇÃO DA PARTE AUTORA. PRETENDIDA ANULAÇÃO DA CITAÇÃO DE PROCESSO DIVERSO. REGISTROS DE ACESSOS EFETUADOS PELO SISTEMA EPROC [LOGS] QUE DEMONSTRAM PRÉVIA CIÊNCIA DO PROCURADOR COM RELAÇÃO AO SUSCITADO VÍCIO CITATÓRIO. ACESSO AO PROCESSO DOIS DIAS APÓS A DECRETAÇÃO DE REVELIA NAQUELES AUTOS. NOVAS CONSULTAS ANTES DO RECEBIMENTO DA INTIMAÇÃO NO CUMPRIMENTO DE SENTENÇA. INCIDÊNCIA DO ART. 278 DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL. TESE NÃO SUSCITADA NO PRIMEIRO MOMENTO POSSÍVEL. PRECLUSÃO. VIOLAÇÃO AO PRINCÍPIO DA BOA-FÉ OBJETIVA. O PROCESSO DEMOCRÁTICO REJEITA PRÁTICAS OPORTUNISTAS, DESTOANTES DO PADRÃO ÉTICO EXIGIDO PARA ATUAÇÃO EM CONFORMIDADE. SENTENÇA MANTIDA. RECURSO DESPROVIDO.
“1. A teor do art. 278 do Código de Processo Civil, a nulidade dos atos deve ser alegada pela parte na primeira oportunidade em que for possível se manifestar nos autos, sob pena de preclusão. Até mesmo as matérias de ordem pública, ressalto, sujeitam-se à preclusão consumativa ou temporal.
“É vedado à parte ter conhecimento de uma nulidade passível de ser sanada no processo, mas reservá-la para um momento posterior como estratégia processual em benefício próprio. Oportunismo configurado.
“A controvérsia deve ser analisada não apenas do ponto de vista processual, mas na perspectiva dos princípios gerais do direito, sobretudo da boa-fé objetiva [CPC, art. 5º], cuja função é a de estabelecer padrão ético de litigância orientador da conduta de todos os agentes envolvidos no processo.
“Se o procurador da parte consultou os autos por diversas vezes [logs no sistema], com o acompanhamento ativo dos atos processuais, no aguardo para suscitar a nulidade apenas quando a empresa fosse intimada para pagamento, com o fim deliberado de prolongar ainda mais a tramitação e a entrega definitiva da prestação jurisdicional, então está configurada a violação da boa boa-fé objetiva [flerta com a má-fé]. O comportamento viola os deveres inerentes à boa-fé objetiva e do interesse público subjacente, configurando “Nulidade de Algibeira” [“guardada na manga” para uso oportunista e destoante do padrão ético de litigância], autorizando a rejeição do pedido deduzido”. (j. 05/11/2024)
A orientação foi adotada em outros julgados da Corte:
‘‘AGRAVO DE INSTRUMENTO. CUMPRIMENTO DE SENTENÇA. AÇÃO MONITÓRIA. RÉU REVEL. IMPUGNAÇÃO REJEITADA. INSURGÊNCIA DO EXECUTADO. ALEGAÇÃO DE NULIDADE DA CITAÇÃO. INSUBSISTÊNCIA. ATO REALIZADO POR OFICIAL DE JUSTIÇA, VIA CONTATO TELEFÔNICO E MENSAGEM POR APLICATIVO, COM RESPOSTA CONFIRMATIVA. ADEMAIS, REGISTROS DE ACESSOS EFETUADOS PELO SISTEMA EPROC QUE DEMONSTRAM QUE O ATUAL PROCURADOR DO AGRAVANTE TEVE ACESSO AOS AUTOS EXATAMENTE NO DIA EM QUE SE ENCERRARIA O PRAZO PARA APRESENTAÇÃO DA PETIÇÃO DE DEFESA. NULIDADE NÃO EVIDENCIADA”. […] (TJSC, Agravo de Instrumento 5038255-93.2023.8.24.0000, Des. Volnei Celso Tomazini, 2ª Câmara de Direito Civil; j. 11/04/2024).
“AGRAVO DE INSTRUMENTO. “CUMPRIMENTO DE SENTENÇA”. DECISÃO HOSTILIZADA QUE REJEITOU A EXCEÇÃO DE PRÉ-EXECUTIVIDADE, A QUAL VISAVA A NULIDADE DA CITAÇÃO DO BANCO EXECUTADO NOS AUTOS DO PROCESSO DE CONHECIMENTO. INSURGÊNCIA DAQUELE. SUSTENTADA NULIDADE DO ATO CITATÓRIO, SOB A ASSERTIVA QUE ENCAMINHADO A INSTITUIÇÃO FINANCEIRA DIVERSA, A QUAL FORA EXTINTA ANTE A INCORPORAÇÃO EFETIVADA. INACOLHIMENTO. “AR” CITATÓRIO RECEBIDO POR FUNCIONÁRIO DA INSTITUIÇÃO FINANCEIRA QUE REVELA O CUMPRIMENTO DO RESPECTIVO ATO. ADEMAIS, CONHECIMENTO ACERCA DA INCORPORAÇÃO DO BANCO ORIGINÁRIO PELO AGRAVANTE QUE NÃO PODERIA SER EXIGIDO DO EXEQUENTE, SOBRETUDO PORQUE AUSENTE A RESPECTIVA INFORMAÇÃO A TEMPO E MODO NOS AUTOS. OUTROSSIM, PROCURADOR QUE REPRESENTA OS INTERESSES DO ORA RECORRENTE QUE TEVE ACESSO AOS AUTOS DE CONHECIMENTO ANTES MESMO DE ESCOADO O PRAZO PARA APRESENTAR CONTESTAÇÃO, CORROBORANDO, UMA VEZ MAIS, QUE AQUELE DETINHA PLENA CIÊNCIA DA PROPOSITURA DA DEMANDA. NULIDADE NA CITAÇÃO NÃO VERIFICADA. MANUTENÇÃO DA DECISÃO AGRAVADA QUE SE IMPÕE. RECURSO CONHECIDO E DESPROVIDO”. (TJSC, Agravo de Instrumento 5057310-30.2023.8.24.0000, Des. José Maurício Lisboa, 1ª Câmara de Direito Comercial, j. 30/11/2023).
“APELAÇÃO. EMBARGOS À EXECUÇÃO. SENTENÇA QUE NÃO CONHECEU DOS PEDIDOS INICIAIS, EM FACE DA INTEMPESTIVIDADE DA OPOSIÇÃO DOS EMBARGOS. RECURSO DA EMBARGANTE. PRETENDIDA ATRIBUIÇÃO DE EFEITO SUSPENSIVO AO RECURSO. PREJUDICIALIDADE EM VIRTUDE DA REALIZAÇÃO DO PRESENTE JULGAMENTO. ADUZIDA NULIDADE DA CITAÇÃO. INOCORRÊNCIA. EMPRESA EMBARGANTE LOCALIZADA EM CONDOMÍNIO EDILÍCIO. HIPÓTESE PREVISTA NO ART. 248, § 4º, DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL. ENTREGA DO AR DE CITAÇÃO NA PORTARIA, RESPONSÁVEL PELO RECEBIMENTO DA CORRESPONDÊNCIA. ATO VÁLIDO. ADEMAIS, ACESSO AOS AUTOS PELO ADVOGADO DA EMBARGANTE ANTES MESMO DE SE PERFECTIBILIZAR A CITAÇÃO. CIÊNCIA DA EXECUÇÃO EVIDENTE. OPOSIÇÃO DOS EMBARGOS APÓS O DECURSO DO PRAZO DO ART. 915 DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL. INTEMPESTIVIDADE CONFIGURADA. SITUAÇÃO QUE IMPEDE O CONHECIMENTO DAS DEMAIS QUESTÕES, ATÉ MESMO AS DE ORDEM PÚBLICA. PRECEDENTES DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. SENTENÇA MANTIDA. RECURSO PARCIALMENTE CONHECIDO E, NESTA EXTENSÃO, NÃO PROVIDO. HONORÁRIOS RECURSAIS. MAJORAÇÃO DESCABIDA NA HIPÓTESE. LIMITE LEGAL DE 20% (VINTE POR CENTO) JÁ ALCANÇADO, À LUZ DO SOMATÓRIO DAS VERBAS FIXADAS NO DESPACHO INICIAL DA EXECUÇÃO ADJETA E NA SENTENÇA DOS PRESENTES EMBARGOS. PRECEDENTES”. (TJSC, Apelação 5063786-49.2022.8.24.0023, Des. Tulio Pinheiro, 4ª Câmara de Direito Comercial, j. 14/11/2023).
No caso julgado, do histórico de acesso aos autos no sistema processual [logs], comprovou-se que o procurador consultou os autos eletrônicos por quatro vezes, realizando voluntariamente o ato de ciência do ato processual pendente e, por consequência, a partir da boa-fé objetiva (CPC, artigo 5º), considerou-se perfectibilizado o “direito de informação” que, em tempos digitais, não pode significar a obtenção de vantagem competitiva/informacional. Se o procurador acessa os autos eletrônicos, autovincula-se à consequência legal (intimado; citado ou notificado está).
Em resumo, se o procurador acessa os autos eletrônicos e toma ciência de ato pendente, ainda que não realizado formalmente (intimação; notificação ou citação), o marco inicial do prazo conta-se da prova do acesso (log). Do contrário, confere-se vantagem incompatível com o dever de boa-fé objetiva (CPC, artigo 5º), flertando-se com a má-fé.
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