Tragédias de Joelma e Kiss: dolo eventual como sintoma da flexibilização das regras de imputação
7 de novembro de 2024, 6h36
O caso da boate Kiss está repleto de reviravoltas desde seu início em 2013. Além dos envolvidos (acusados, familiares, vítimas sobreviventes), quem também sofre e apanha com a falta de critério é o direito (penal, processual penal, constitucional etc.).
A última reviravolta do caso foi a ocorrida no dia 2 de setembro de 2024, com o julgamento do Recurso Extraordinário 1.486.671/RS em decisão monocrática [1] pelo ministro Dias Toffoli, do STF, restabelecendo (validando) a decisão do Tribunal do Júri, que havia condenado os quatro réus pelo caso da boate Kiss determinando, ainda, imediato recolhimento dos réus à prisão (execução antecipada da pena) [2].
Em janeiro de 2013, um incêndio ocorrido nas dependências da casa de shows em Santa Maria (RS) levou à morte 242 pessoas e deixou feridas outras 636, tornando-se uma das mais comoventes tragédias ocorridas no Brasil. “O caso Boate Kiss” (ou somente “caso Kiss”) consternou toda a nação, cuja angústia se assemelha, em vários pontos, a uma outra tragédia, ocorrida há 50 anos, sendo considerado o segundo pior incêndio do mundo (apenas perdendo para o atentado ao World Trade Center em Nova York em 2001) [3].
A referência é ao incêndio no edifício Joelma, no centro de São Paulo, em 1º de fevereiro de 1974, provocando a morte de 187 pessoas (ou 191, o número varia devido a corpos totalmente carbonizados que não foram identificados até os dias de hoje) e deixou mais de 300 feridos [4]. O incêndio teve origem em curto-circuito em um aparelho de ar-condicionado instalado em um dos andares do prédio de escritórios. Uma das semelhanças com o caso Kiss é que a precariedade da construção e do sistema de infraestrutura elétrica contribuiu para o fogo se alastrar em poucos minutos, causando pânico e agrura na tentativa de evacuação das vítimas ocupantes dos dois estabelecimentos.
Do ponto de vista jurídico, a semelhança está na busca de responsabilização criminal das pessoas relacionadas com os fatos. No caso do edifício Joelma, o Ministério Público de São Paulo denunciou seis pessoas pela prática dos crimes de incêndio culposo (artigo 250, §2º, Código Penal), homicídio culposo (artigo 121, §3º, Código Penal), com a causa de aumento de 1/3 do §4º (inobservância de regra técnica de profissão, arte ou ofício), e lesão corporal culposa (129, §6, Código Penal), em concurso formal de crimes (antigo artigo 51, §1º. Atual artigo 70 do Código Penal). Os acusados foram condenados em abril de 1975 e, em novembro do mesmo ano, o TJ-SP (antigo Tribunal de Alçada Criminal de São Paulo) diminuiu as sanções penais afastando a aplicação do concurso formal.
Denúncia mais ousada no caso Kiss
A denúncia do caso boate Kiss foi muito mais ousada do que a denúncia do órgão da acusação oficial no caso edifício Joelma há 50 anos. No caso Kiss, o Ministério Público do Rio Grande do Sul buscou a responsabilização criminal dos envolvidos pela prática, em tese, de 242 homicídios qualificados — artigo 121, §2 º, I (motivo torpe) e III (meio cruel pelo emprego de fogo e asfixia) — combinado com o artigo 14, inciso II (tentativa por, no mínimo, 636 vezes), na forma dos artigos 29, caput, e 70, primeira parte, todos do Código Penal, com dolo eventual (mataram ou tentaram matar frequentadores e funcionários da boate) [5], levando os acusados ao Tribunal do Júri e cuja condenação pelos jurados resultou nas respectivas sanções penais de 18 a 22 anos e seis meses de reclusão.
Portanto, a maior diferença entre as duas tragédias reside, justamente, no clamor popular e pressão midiática pela responsabilização dos envolvidos, aliada à utilização pelo órgão da acusação oficial do dolo na sua modalidade (ou classificação) eventual, conceituação que será explicada mais adiante.
Diante desse contexto e proporção, no caso da tragédia da Boate Kiss, era de se imaginar que o direito penal, instrumento inadequado para a satisfação social, seria, de uma maneira tergiversada, utilizado como instrumento de poder (populismo penal). É dizer, em sua essência, o direito penal, se partirmos de um modelo liberal, toma como base, portanto, as regras do jogo de um Estado democrático e social de Direito, tendo a legalidade, a lesividade e a culpabilidade, como marcos tradicionais da teoria do delito e de proteção do cidadão perante o Estado.
O uso sem parâmetro legal da figura do dolo eventual além de claro excesso acusatório representa também uma expansão inadequada do direito penal. Sua utilização no caso boate Kiss se deu em desconformidade com a exigência prevista no Código Penal Brasileiro, em seu artigo 18, inciso I, quando atribui ao dolo os casos nos quais o agente deseja produzir o resultado ou assume o risco de produzi-lo [6].
Costuma-se designar o dolo como intenção, vontade na realização da conduta típica, havendo duas importantes teorias sobre os elementos constitutivos do dolo, sendo divididas entre a teoria normativa do dolo (dolo como sendo consciência e vontade da ilicitude) e teoria psicológica do dolo (dolo sendo tratado como consciência e vontade de se realizar os elementos do tipo penal). Dolo constitui-se, portanto, de elemento subjetivo do tipo (que é dividido em tipicidade dolosa e culposa) e compõe a teria do delito.
Elementos para definição de dolo
Da definição de dolo proposta por Francisco Muñoz Conde, por exemplo, dolo é composto de dois elementos: um intelectivo e outro volitivo. O intelectivo necessita que o sujeito ativo saiba o que faz e conhecer os elementos que caracterizam sua ação como ação típica [7]. Quanto ao elemento volitivo, isto é, a vontade consciente do autor pode, ainda, ser direto e indireto.
No primeiro, o agente quer e faz a previsão de determinado resultado. Dito de outro modo, o autor age para conseguir o resultado. No caso do dolo indireto, em que o resultado não é definido, ou preciso, fala-se em dolo alternativo ou dolo eventual. “No dolo eventual, não quer o agente, especificamente, o resultado, mas, conscientemente, o aceita como possível. Prevê ele que sua conduta poderá causar aquele resultado e, na dúvida quanto à sua superveniência, arrisca-se a produzi-lo” [8].
A doutrina (nacional e estrangeira) tradicionalmente apresenta as seguintes teorias para conceituar o dolo:
i. teoria da vontade: Denominada de doutrina clássica do dolo por Sebastián Soler, tem em Carrara e em von Hippel, seus maiores representantes [9]. Para eles, apenas tem dolo aquele que quer o resultado, que age e atua com o objetivo de alcançar o resultado típico;
ii. teoria do assentimento: para esta teoria, tem dolo o agente que, prevendo a provável ocorrência do resultado, aceita o risco de sua ocorrência;
iii. teoria da representação: age com dolo aquele que prevê com possível o resultado, e mesmo assim continua atuando;
iv. teoria da probabilidade: tem dolo aquele que prevê o resultado como provável.
Conforme dito anteriormente, prevalece o entendimento de que o Código Penal brasileiro, em seu artigo 18, inciso I, adotou a teoria do assentimento para conceituar o dolo, considerando-se o crime doloso quando o agente quis o resultado (dolo direito e alternativo) ou assumiu o risco de produzi-lo (dolo eventual).
Previsão do resultado e risco da produção
Dolo eventual é modalidade de dolo cujo agente faz a previsão do resultado e tolera o risco de sua produção. O agente sabe que pode matar se agir e arrisca a causar o resultado morte (“se matar, matei”). É o tradicional tô nem aí. Claro que ambas as categorias são simplificações e reduções da internalização do sujeito, cujos matizes e gradações nem sempre são nítidos. O dolo eventual é, portanto, fronteira entre o dolo e a culpa.
Deve-se, portanto, ter cuidado ao distinguir a possibilidade de representação do resultado e representação da possibilidade do resultado. Conforme expõe Soler citando M. E. Mayer, “são tão distintas como uma menina de escola e uma escola de meninas; uma é uma menina; a outra é uma escola. Primeiro era uma possibilidade, o segundo uma representação” [10].
No caso dos acusados do caso Kiss, se a linha de raciocínio proposto pelo órgão acusador fosse correta, a denúncia deveria ser adequada para que os acusados respondessem pela tentativa de homicídio com dolo eventual uns dos outros (figurando como autores e vítimas nos mesmos autos processuais). Dever-se-ia primeiro perguntar: Quiseram os sócios da boate matar seus clientes, funcionários e integrantes da banda? Quis o vocalista da banda e o assistente de palco matar o público que os prestigiava, funcionários da boate e os sócios da boate que estavam presentes no dia do fato? Quiseram morrer junto? Era um suicídio com liame subjetivo? De fato, assumiram o risco de produzir a tragédia que se sucedeu?
Limite entre dolo e culpa
O dolo, em todas as suas formas, não é a possibilidade, a probabilidade ou a necessidade do resultado, senão o assentimento do resultado típico. Por esse motivo que, quando da análise do limite entre dolo e a culpa (isto é, no âmbito da culpabilidade), é tão necessária a utilização da fórmula do professor alemão Heinhard Frank que se enuncia dizendo “hay dolo eventual, cuando la convicción de la necesidad del resultado previsto como posible no habría hecho desistir al autor”. Dito de modo mais simples, tem-se o dolo eventual quando há indiferença do autor quanto a produção do resultado típico.
Em completa divergência e dissociação com o aqui exposto, no júri da boate Kiss, a pedido do órgão da acusação oficial, quatro réus foram condenados pelo conselho de sentença pela prática de homicídio simples com dolo eventual por 242 vezes e 636 tentativas de homicídio. Divergência e dissociação porque sob qualquer prisma de teoria do delito que se olhe, não parece suficientemente possível identificar o dolo, ainda que eventual, já que não houve conduta orientada à produção dos lamentáveis resultados (mortes e lesões corporais diversas).
Tanto na tragédia do Joelma, quanto no caso da boate Kiss, a figura do dolo eventual, cujo limite é justamente a aceitação da possibilidade de produção do resultado, é inaplicável. Assim, em ambos os casos, onde os agentes não quiseram o resultado (como parte do plano), há que se falar então em resultados não pretendidos, portanto, culposos. Aliás, abraçando os ensinamentos de Zaffaroni, “quando se descreve uma conduta humana com base na realidade, os aspectos psíquicos não podem ser ignorados” [11]. Não pode o órgão da acusação oficial no momento de acusar valer-se de presunção de dolo como uma vulgata do velho brocado já defendido por Feuerbach: “facta lesinone praesumitur dolo, donec probetur contrariu”.
A condenação dos acusados no caso Kiss pode ser atribuída a muitos fatores como mídia, problemas crônicos de configuração do procedimento do júri brasileiro, falta de experiência técnica dos jurados etc. [12], mas deve ser debitada também na flexibilização das regras de imputação (e no próprio Direito Penal) e dos direitos e garantias fundamentais travestidas de aumento de proteção aos bens jurídicos.
[1] Já falamos sobre os problemas práticos das decisões monocráticas nos tribunais, aqui nesta ConJur: https://www.conjur.com.br/2023-out-17/renoldi-faria-decisoes-monocraticas-tribunais/.
[2] BRASIL. Supremo Tribunal Federal. STF restabelece condenações no caso da boate Kiss e determina prisão de réus.: https://noticias.stf.jus.br/postsnoticias/stf-restabelece-condenacoes-no-caso-da-boate-kiss-e-determina-prisao-de-reus/.
[3] BRASIL. Tribunal de Justiça de São Paulo. Incêndio no Edifício Joelma: https://www.tjsp.jus.br/PrimeiraInstancia/GestaoDocumental/Comunicado?codigoComunicado=39277&pagina=1.
[4] Sobre a tragédia no Joelma ver: Edifício Joelma: relembre tragédia que há 50 anos deixava 187 mortos e centenas de feridos em incêndio: https://g1.globo.com/sp/sao-paulo/noticia/2024/02/01/edificio-joelma-relembre-tragedia-que-ha-50-anos-deixava-187 mortos-e-centenas-de-feridos-em-incendio.ghtml ; Edifício Joelma: 50 anos depois, marcas do incêndio permanecem. Disponível em: https://agenciabrasil.ebc.com.br/geral/noticia/2024-01/edificio-joelma-50-anos-depois-marcas-do-incendio-permanecem; Sobre a divergência do número de vítimas do Edifício Joelma ver: Edifício Joelma: Como o trágico incêndio abalou a população paulista e mostrou a ineficácia das leis de prevenção e combate a incêndios. Disponível em: https://ofos.com.br/incendio-no-edificio-joelma/.
[5] Íntegra da denúncia do Ministério Público do Rio Grande do Sul em BRASIL. Denúncia Kiss: https://www.mprs.mp.br/media/areas/criminal/arquivos/denunciakiss.pdf.
[6] Verbis: “Art. 18 – Diz-se o crime: I – doloso, quando o agente quis o resultado ou assumiu o risco de produzi-lo;” Em: BRASIL. Lei nº 2.848, de 07 de dezembro de 1940. Institui o Código Penal: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del2848.htm.
[7] MUÑOS CONDE, Francisco. Teoria Geral do Delito. Tradução e notas de Juarez Tavares e Luiz Regis Prado. Porto Alegre, Fabris, 1988, p. 57-58.
[8] Nesse sentido: MIRABETE, Julio Fabbrini. Manual de Direito Penal. São Paulo. Atlas, 1993, p. 29.
[9] SOLER, Sebastián. Derecho Penal Argentino. Vol. II. Actualizador Guillermo J. Fierro. Buenos Aires, Tipografica Editora Argentina, 1992, p. 125.
[10] MAYER, M.E., 267 apud SOLER, Sebastián. Derecho Penal Argentino, ob. cit. p. 152: No original: “(…) Son tan distintas como una niña de escuela y una escuela de niñas; lo uno es una niña; lo otro es una escuela; lo primero era una posibilidad, lo segundo una representación”
[11] ZAFFARONI, Eugenio Raul; PIERANGELI, José Henrique: Manual de direito penal brasileiro, volume 1: parte geral. 6 ed. rev. e atual. São Paulo. Editora Revista dos Tribunais, 2006, p. 403.
[12] Como bem lembrado aqui na ConJur por NARDELLI, Marcela Mascarenhas.; MATIDA, Janaina.; ROSA, Alexandre Morais da.; COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda.; LOPES, Aury Jr.; HERDI, Rachel: https://www.conjur.com.br/2021-dez-24/artx-limite-penal-juri-boate-kiss-sirvaalerta.
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