Fatiamento de ações na litigância predatória: R$ 10 bi gastos e lentidão impactam o Judiciário
7 de novembro de 2024, 7h03
O fatiamento de ações, definido por diversos autores como a prática de fragmentar um único litígio em múltiplas ações judiciais, frequentemente focando em parcelas de um contrato ou aspectos específicos de um mesmo direito, tem se tornado uma prática abusiva nos tribunais brasileiros.
Dados do CNJ (Conselho Nacional de Justiça) revelam que, em 2023, o Judiciário brasileiro atingiu um acervo de 83,8 milhões de processos em tramitação, recebendo um volume recorde de 35,3 milhões de novos casos, um aumento de 9,4% em relação a 2022. Parte significativa desse volume pode ser atribuída a práticas como o fatiamento de ações, que inflacionam artificialmente o número de processos.
Cada ação fragmentada exige a realização de audiências, instruções e a elaboração de sentenças, aumentando os custos operacionais do Judiciário. Segundo o CNJ, as despesas totais do Poder Judiciário somaram R$ 1,328 bilhões em 2023, um aumento de 9% em relação ao ano anterior, com boa parte desse custo proveniente da gestão de ações repetitivas e desnecessárias.
O fatiamento de ações não apenas compromete o funcionamento regular do Judiciário, mas também atrasa significativamente as demandas legítimas, prejudicando os cidadãos que necessitam de respostas rápidas e efetivas do sistema judicial.
Esse impacto é visível no Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ-SP), onde foi identificado que a litigância predatória causou um aumento no tempo médio de sentença, que passou de 364 dias, em 2012, para 930 dias em casos envolvendo fatiamento e outras condutas abusivas. Esse atraso generalizado prejudicou demandas reais, especialmente de pessoas que realmente precisavam de jurisdição e que estavam representadas por advogados que atuavam de forma regular.
Além disso, o fenômeno se repete em outros estados. Um estudo realizado pelo Centro de Inteligência do Tribunal de Justiça de Mato Grosso do Sul apurou que, de 64.037 ações sobre empréstimos consignados, 34.471 eram ajuizadas por um mesmo grupo de advogados. Quando analisados 300 processos, verificou-se que, em 100% dos casos, as narrativas eram puramente hipotéticas, e em 80% dos casos, os autores foram condenados por litigância de má-fé.
Reflexões do STF
A ministra Carmen Lúcia, ao tratar do Tema 1.184 de Repercussão Geral, destacou que a propositura de ações sem um interesse processual real representa um problema significativo para a gestão da litigância predatória. Ela enfatizou que “somente pode se valer do caminho que importa onerar o Estado-juiz se outro instrumento para a mesma finalidade inexistir nas mesmas condições”, defendendo que a provocação da função jurisdicional seja feita dentro dos limites legais.
O ministro Edson Fachin, por sua vez, abordou a questão da proporcionalidade e do uso responsável dos recursos judiciais. Ele ressaltou que, além dos recursos financeiros, os recursos humanos e o tempo do Judiciário são limitados e precisam ser geridos de forma adequada. O ministro alertou para a necessidade de “medidas que visem a melhor gestão de tais recursos”, de modo a promover o acesso à justiça de forma célere e eficaz.
Já o ministro Luís Roberto Barroso, no julgamento da ADI nº 3.995/DF, frisou que o abuso do direito de ação afeta diretamente a qualidade da prestação jurisdicional e impõe um custo elevado para toda a sociedade. Ele observou que o excesso de processos compromete a celeridade e a coerência do Judiciário, resultando em uma sensação difusa de que a Justiça não funciona.
Por sim, o ministro Og Fernandes afirma que os advogados devem realizar uma avaliação criteriosa da viabilidade da ação antes de ajuizá-la e informa que devem ser transparentes com seus clientes sobre os possíveis riscos, incluindo o custo de uma eventual sucumbência. A intenção é promover uma litigância mais responsável, em benefício da razoável duração do processo e da eficiência da prestação jurisdicional (relator do REsp nº 1.850.512/SP, Tema Repetitivo nº 1.076 do STJ).
Impacto financeiro
Além de gerar um aumento nos custos operacionais, o fatiamento de ações desvia recursos valiosos que poderiam ser utilizados de forma muito mais produtiva em outros setores essenciais para o bem-estar da sociedade. Segundo a Nota Técnica nº 01/2022 do Tribunal de Justiça de Minas Gerais (TJ-MG), estima-se que 30% das ações distribuídas no Brasil sejam demandas artificiais, com um prejuízo anual superior a R$ 10 bilhões aos cofres públicos.
Com esses valores gastos com a litigância predatória, seria possível construir 2.681 escolas, 214 hospitais e distribuir mais de 17 milhões de cestas básicas, promovendo melhorias significativas em educação, saúde e combate à fome no Brasil.
Ao considerar o impacto financeiro do fatiamento de ações, fica claro que o prejuízo não é apenas jurídico, mas também social. Esses recursos poderiam transformar significativamente a vida de milhões de brasileiros, se fossem utilizados em investimentos essenciais em saúde, educação e assistência social.
O fatiamento de ações representa um dos principais desafios para a eficiência do sistema judiciário brasileiro. Além de gerar custos desnecessários e atrasar demandas legítimas, essa prática contribui para a insegurança jurídica e compromete a confiança da sociedade no Judiciário. Mais do que isso, os recursos desperdiçados com a administração dessas ações poderiam ser aplicados de forma muito mais produtiva em áreas essenciais, como a educação, saúde e combate à fome.
A adoção de medidas para coibir essa prática, conforme sugerido pela nota técnica do TJ-MG e refletido nas palavras dos ministros, é essencial não apenas para restaurar a integridade do Judiciário, mas também para garantir que recursos públicos sejam utilizados de forma eficiente, em prol do bem-estar da sociedade.
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