A administração direta e a transição governamental
7 de novembro de 2024, 9h18
A administração direta constitui a espinha dorsal da execução das funções administrativas primárias do Poder Público. Em princípio, deveria estar imune a problemas de descontinuidade, pois tem matriz constitucional e não legal. Ela não pode ser extinta pelas maiorias políticas ocasionais. Não é viável fulminar órgãos que a Constituição define como essenciais ou integrantes da composição estrutural da própria separação de Poderes.
No Brasil, a conformação da administração direta segue exigências ditadas pelo regime presidencial e pelas escolhas do constituinte sobre a direção de cada Poder ou órgão constitucional autônomo: pode-se criar um número maior ou menor de ministérios e secretarias, órgãos de assessoramento ou diretorias, mas não adotar uma gestão administrativa unipessoal ou subordinada integralmente a órgão externo de outro Poder.
No plano dos fatos, entretanto, a descontinuidade é um problema que perturba gravemente o funcionamento da administração direta. Não é incomum, nas sucessões de governo, sobretudo quando há alternância de poder e vitória de partidos de oposição, que o governante eleito encontre dificuldade em acessar informações sobre a composição da força de trabalho, os contratos de serviço vigentes, os processos judiciais em curso, as dívidas em execução, os precatórios em ordem de pagamento, o acervo mobiliário e o patrimônio imobilizado da pessoa política sob nova direção e as demandas urgentes que esperam resposta. Trata-se do problema da transição governamental, que afeta com especial intensidade os órgãos da administração direta do Poder Executivo.
A transição governamental administrativa, ou simplesmente transição administrativa, pode e deve ser objeto de planejamento antecipado, pois é problema recorrente no Brasil, capaz de afetar a continuidade de políticas públicas e serviços essenciais após alternância de governo. Para mitigar as dificuldades que oferece, defendo que a legislação da organização administrativa em cada unidade federativa ou, no limite, a legislação eleitoral e financeira nacional contemple soluções permanentes para a transição governamental, escapando a soluções casuísticas e estabelecidas ad hoc para cada eleição.
Do órgão temporário de transição administrativa
No direito brasileiro, não há lei nacional permanente voltada a disciplinar a transição governamental.
As leis eleitorais nacionais, nomeadamente a Lei Complementar 64/1990 (Lei de Inelegibilidades), o Código Eleitoral (Lei 4.737/1965) e a lei das eleições (Lei 9.504/1997), assim como leis de natureza financeira, como a Lei de Responsabilidade Fiscal (Lei Complementar 101/2000) e a Lei Complementar 208/2024 (mediante alteração da Lei 4.320/64), vedam progressivamente (e por períodos diversos) comportamentos abusivos e despesas irrazoáveis no último ano de mandato (ou com repercussão no último ano do mandato) para preservar a igualdade eleitoral e evitar o abuso do poder econômico.
Entre as limitações estão despesas desproporcionais com propaganda governamental; criação ou ampliação de renúncias fiscais; aumentos de vencimentos de servidores acima da inflação; operações de crédito por antecipação da receita; realização de despesa sem contar com disponibilidade financeira; cessão de direitos creditórios originados de créditos tributários e não tributários a menos de 90 dias das eleições e, principalmente, a criação de programas sociais novos que importem em distribuir bens e valores diretamente à população no período eleitoral. Mas essas normas não impõem a criação ou instituição de qualquer órgão para estruturar, viabilizar ou facilitar a transição administrativa.
No âmbito restrito da União, a Lei 10.609/2002 e o Decreto 7.221/2010, supre em parte as omissões das leis eleitorais e financeiras nacionais com a previsão de instituição de comissão de transição para o cargo de presidente da República.
A Lei 10.609/2002, entretanto, é ambígua sobre o status desta comissão, por vezes denominada “equipe de transição”. Ora a considera uma “faculdade” (opção) do candidato eleito, ora determina a criação de 50 cargos em comissão, denominados Cargos Especiais de Transição Governamental (CETG), de exercício privativo da equipe de transição, supervisionados por um coordenador, a quem a lei defere a prerrogativa de “requisitar as informações dos órgãos e entidades da Administração Pública federal”. (artigo 2º, §2º, da Lei Federal 10.609/2002). Todos os titulares dos cargos CETG deverão manter sigilo dos dados e informações confidenciais a que tiverem acesso, sob pena de responsabilização (artigo 5º).
A competência de requisição pode ser utilizada para acesso às informações relativas às contas públicas, aos programas e aos projetos do governo federal, com vistas a que comissão de transição possa “inteirar-se do funcionamento dos órgãos e entidades que compõem a administração pública federal e preparar os atos de iniciativa do novo presidente da República, a serem editados imediatamente após a posse”. (artigo 2º, da Lei 10.609/2002)
Os cargos especiais de transição governamental “somente serão providos no último ano de cada mandato presidencial, a partir do segundo dia útil após a data do turno que decidir as eleições presidenciais e deverão estar vagos obrigatoriamente no prazo de até dez dias contados da posse do candidato eleito” (artigo 4º, da Lei 10.609/2002).
A nomeação dos cargos especiais de transição governamental será feita pelo chefe da Casa Civil da Presidência da República, porém todos os nomes serão indicados pelo candidato eleito (artigo 2º, §2º), situação incomum, que torna a hipótese um excelente exemplo escolar de vinculação estrita aplicável a nomeações de cargo público de provimento discricionário! [1] Além disso, o presidente da República poderá nomear o coordenador da equipe de transição para o cargo de ministro extraordinário, nos termos do artigo 37 do Decreto-Lei 200, de 25 de fevereiro de 1967, caso a indicação realizada pelo eleito recaia sobre membro do Poder Legislativo federal.
A lei federal não o afirma expressamente, mas a comissão de transição deve ser considerada órgão temporário sediado na Presidência da República, pois não apenas a designação dos cargos de seus integrantes são de responsabilidade do ministro chefe da Casa Civil da Presidência da República, ou do presidente da República, quando se tratar de nomear coordenador membro do Poder Legislativo, como seu orçamento e suas despesas correrão à conta das dotações orçamentárias da Presidência da República (artigo 7º).
A Casa Civil deve ainda disponibilizar, aos candidatos eleitos para os cargos de presidente e vice-presidente da República, local, infraestrutura e apoio administrativo necessários ao desempenho de suas atividades (artigo 6º).
A comissão de transição não será instalada no caso de reeleição do presidente da República (artigo 9º) e, qual órgão fênix, será reconstituída e reativada no segundo dia útil do anúncio do vencedor da eleição seguinte e desativada até o décimo dia após a nova posse presidencial. [2]
No plano estadual, a Lei mineira 19.434, de 11/01/2011, dispõe sobre a instituição facultativa de comissão de transição por candidato eleito para o cargo de governador do estado ou prefeito municipal.
A lei mimetiza em grande medida o modelo federal, inclusive na nomenclatura, na competência de requisição e nas finalidades, diferenciando-se por não criar cargos comissionados nem autorizar qualquer espécie de remuneração para os integrantes da comissão de transição. Merece crítica, porém, a alusão à instituição do órgão de transição para o plano municipal, matéria afeta à autonomia organizatória dos municípios mineiros e fora da competência do legislador estadual.
No âmbito local, quase sempre por simples decreto do Prefeito, inúmeros municípios têm instituído comissões informais de transição, sem orçamento, estrutura física ou cargos remunerados para provimento após os processos eleitorais, ou comissões de transmissão de governo, compostas estas exclusivamente por integrantes da gestão em último ano de mandato.
Essa medida tem ocorrido não por maturidade institucional, mas para o cumprimento de determinações e orientações de Tribunais de Contas que a consideram necessária para o adequado cumprimento do artigo 42 da Lei Complementar 101/2000 (Lei de Responsabilidade Fiscal). Essa norma estabelece ser vedado ao titular de Poder ou de órgão em qualquer esfera da federação, nos últimos dois quadrimestres do seu mandato, contrair obrigação de despesa que não possa ser cumprida integralmente dentro dele, ou que tenha parcelas a serem pagas no exercício seguinte sem que haja suficiente disponibilidade de caixa para este efeito.
A “comissão de transição” ou a “comissão de transmissão”, conforme o caso, cumpriria o papel de relatar o atendimento dessa exigência, evitando que o gestor derrotado e ainda no cargo oculte e transfira passivos sem lastro financeiro para o sucessor, cautela necessária para uma transição financeira responsável. Para um exemplo eloquente do que vem de ser dito, consulte-se a Resolução nº 1311/2012 do TCM/BA [3]
É importante que os eleitos tenham interesse efetivo nos processos de transição administrativa, sobretudo porque eventuais lacunas de informação na prestação de contas dos antecessores (sobretudo em transferências interfederativas) podem repercutir diretamente nas responsabilidades de seus sucessores, como sintetiza bem a Súmula 230 do Tribunal de Contas da União:
“SÚMULA TCU 230: Compete ao prefeito sucessor apresentar a prestação de contas referente aos recursos federais recebidos por seu antecessor, quando este não o tiver feito e o prazo para adimplemento dessa obrigação vencer ou estiver vencido no período de gestão do próprio mandatário sucessor, ou, na impossibilidade de fazê-lo, adotar as medidas legais visando ao resguardo do patrimônio público.”
Da ampliação do processo de transição administrativa na administração direta
As normas referidas sobre a transição governamental administrativa no plano federal, estadual e municipal, meramente exemplificativas, sugerem que estamos distantes da maturidade institucional necessária para assegurar a continuidade adequada de serviços e programas desenvolvidos pela administração direta durante as sucessões políticas.
Embora importantes, apresentam lacunas que comprometem a efetividade da transição, ainda amplamente dependente da disposição política dos governantes que deixam o cargo e dos que assumem. E são de curta duração, quase inviáveis para ordenar o início eficaz de uma nova gestão perante a complexidade atual da administração pública.
A experiência internacional tem revelado que a transição administrativa não deve ser processo limitado aos dois meses e poucos dias que separam, como regra entre nós, a proclamação dos resultados das disputas eleitorais e a posse dos eleitos.
Em 2010, por exemplo, o Congresso norte-americano editou a Pre-Election Presidential Transition Act (Public Law 111-283), modificando a Lei de Transição Presidencial de 1963 para determinar ao gestor do GSA (General Services Administration) o fornecimento de certos serviços e instalações para a transição presidencial, incluindo espaço para escritórios, equipamentos e o pagamento de certas despesas relacionadas, além do suporte de segurança e logística para candidatos presidenciais e vice-presidenciais qualificados antes da eleição geral. [4]
O período de transição foi ampliado em planejamento e assiste os candidatos a partir do momento em que são oficialmente reconhecidos em convenção e tornam-se elegíveis. Essa alteração ampliou a transição para um período de mais de cem dias.
No relatório que acompanhou a aprovação da lei, os congressistas reconheceram que as atividades de transição anteriores à eleição eram negligenciadas, pois candidatos relutavam em iniciá-las por razões logísticas (distrair o pessoal-chave da campanha) ou por razões políticas (em particular, riscos de imagem, pois atos de transição poderiam criar a impressão de que o candidato postulante assumiu prematuramente a vitória ou o candidato à reeleição assumiu antecipadamente a derrota).
No entanto, consideraram importante para a segurança nacional — especialmente após os atentados de 11 de setembro de 2001 — conceder mais tempo para a preparação da transição, a checagem de segurança das equipes qualificadas dos candidatos, a identificação dos postos-chaves da administração (evitando lacunas de liderança), a fim de garantir o imediato funcionamento dos serviços estratégicos a partir da posse do eleito.
E a legislação passou a determinar que no último ano do mandato, o Presidente incumbente deve oferecer à publicidade relatório resumido das atividades planejadas para a transição, incluindo a informação dos recursos envolvidos, a fim de “educar a imprensa e o público sobre a importância do início de planejamento de transição”. [5]
Talvez entre nós também seja urgente educar a imprensa, os vários órgãos da administração direta, o público, os partidos, os órgãos de controle, sobre a importância da transição governamental. Ela é imprescindível onde falha a memória administrativa estruturada e prevalece o personalismo e a falta de planejamento na condução da administração direta.
É evidente que a transição governamental é facilitada quando ocorre simples “transição de mandato” (reeleição do mesmo dirigente), ou “transição de gestão” (sucessão de gestores de mesma filiação política), sendo mais complexa e tensa quando há “transição de poder” (quando há alternância de gestão e filiação política) [6].
Porém, diante do atual contexto político brasileiro, penso que é urgente, em qualquer caso, ampliar a institucionalidade dos processos de transição governamental através de normas mais detalhadas nas leis nacionais eleitorais e financeiras ou nas leis de organização administrativa de cada entidade federativa.
Embora a cultura política e a resistência à transparência ainda perpetuem processos de descontinuidade administrativa no Brasil, há um crescente reconhecimento da necessidade de institucionalizar a transição governamental. Busca-se indutivamente inibir a improvisação da transição ou a “intransição governamental”, que transfere para a gestão os ressentimentos e os interesses das disputas políticas.
A alternância democrática do poder não deve servir de álibi para a deliberada criação de obstáculos para a tomada de decisões estratégicas na administração direta ou para comprometer a estabilidade de políticas públicas permanentes. A verdadeira essência da democracia não reside na ruptura administrativa, mas na capacidade de promover transformações na gestão pública conjugando continuidade e mudança, memória e inovação, sem comprometer o funcionamento regular dos serviços estatais.
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[1] A hipótese amplia a lista de oito tipos de formas de provimento de cargos públicos no direito brasileiro, que apresentei exemplificativamente no artigo “Devido processo legal das eleições administrativas e o princípio da anualidade”, publicado originalmente no Conjur, em 9/09/2021, https://www.conjur.com.br/2021-set-09/interesse-publico-devido-processo-legal-eleicoes-administrativas-principio-anualidade/ e disponível em https://www.academia.edu/53271409 e no livro FORTINI, Cristiana; MOTTA, Fabrício; FERRAZ, Luciano; MODESTO, Paulo; VALLE, Vanice (org). Interesse Público Multinível. Minas Gerais: Ed. Dialética, 2024, pgs. 231-236.
[2] Em verdade, a alusão a “órgão fênix” é simplesmente metafórica. A Lei Federal 10.609/2002 criou o órgão de transição governamental e os cargos que o integram, com as competências e finalidades estabelecidas, e ocorre apenas a indeterminação ocasional e fática de seus titulares no período anterior e posterior ao assinalado para as transições administrativas. Uma vez realizada a eleição, havendo interesse manifestado pelo eleito em indicar titulares para os cargos de transição governamental, o provimento é obrigatório e o órgão volta à condição efetiva de unidade de atuação da administração pública.
[3] O TCM-BA tem sido bastante ativo na orientação e fiscalização dos processos de transição nos municípios baianos. Editou a Resolução nº 1311/2012, que estabelece procedimentos para a transição de governo nos municípios da Bahia, publicou Cartilha de Transição de Governo, que orienta os gestores municipais, detalhando os procedimentos necessários para uma transição adequada, e realiza fiscalizações ativas, como auditorias para o verificar o cumprimento das normas de transição. Em casos de descumprimento, tem emitido alertas e, em situações mais graves, aplicado multas aos gestores. A comissão de transmissão de governo é exigida pelo Art. 1º, da Resolução 1311/2012: “Art. 1º Os Prefeitos e Presidentes de Câmara que estão encerrando o mandato constituirão, nos órgãos que dirigem, uma Comissão de Transmissão de Governo incumbida de repassar informações e documentos aos representantes da nova administração, de modo a não inibir, prejudicar ou retardar as ações e serviços encetados em prol da comunidade, evitando a descontinuidade administrativa no município. Parágrafo único. A Comissão de que trata este artigo será constituída com antecedência mínima de 30 (trinta) dias da posse dos eleitos e transmissão dos respectivos cargos.” A norma prescreve para o Prefeito eleito a instituição, após a posse, de outra comissão, “com conhecimentos técnicos nas áreas orçamentária, financeira e patrimonial, que terá como atribuição analisar os levantamentos e demonstrativos elaborados pela Comissão de Transmissão de Governo e sobre eles emitir relatório conclusivo; avaliar as informações prestadas pela gestão anterior” (Art. 6º, IV). A íntegra da Resolução pode ser lida pelo link: https://www.tcm.ba.gov.br/tcm/DiretorioPublicacao/Resolucoes/131112/resolucao131112.pdf
[4] Cf. https://www.congress.gov/bill/111th-congress/senate-bill/3196
[5] Relatório do Comitê de Segurança Interna e Assuntos Governamentais, disponível em https://www.congress.gov/congressional-report/111th-congress/senate-report/239 [acesso em 01/09/2024].
[6] A classificação dos três tipos de transição governamental devo à leitura de textos do Prof. Fernando de Souza Coelho, meu colega da Comissão de Reforma do DL 200. Por todos, cf. PEREIRA, Miriam Lucia; COELHO, Fernando de Souza; DUARTE, Francisco Ricardo; NERI, David Fernando de Morais e SANTOS, Henrique Pereira dos. Transição de governo no Brasil: um levantamento dos instrumentos normativos dos processos de alternância de poder (1988-2017). Revista Interface, v. 15, n. 1, Jan-Jun., 2018.
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