problema invisível

Suspensão de segurança é usada para manter violações dos direitos fundamentais

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6 de novembro de 2024, 8h49

Falta de atendimento à saúde, condições precárias de presídios e impactos ambientais negativos são alguns dos problemas combatidos pelo primeiro grau do Judiciário brasileiro, mas perpetuados pela segunda instância, por meio da suspensão de segurança. É o que aponta um relatório lançado no final de setembro pelo Justa, centro de pesquisas que atua no campo da economia política da Justiça.

Magistrado batendo martelo

Poder público pode pedir aos presidentes dos tribunais a suspensão de decisões que impactem seu orçamento

A suspensão de segurança é um mecanismo processual por meio do qual o presidente de um tribunal é acionado para suspender, caso entenda necessário, decisões em ações movidas contra o poder público.

O Justa analisou a aplicação da suspensão de segurança em 16 estados entre 2013 e 2022. A conclusão foi que esse mecanismo vem sendo usado, na prática, para manter violações de direitos fundamentais dos cidadãos. Nesse período, presidentes dos Tribunais de Justiça suspenderam diversas decisões que determinavam, por exemplo, medidas de combate à Covid-19, melhorias em unidades prisionais e ações para evitar o agravamento de problemas no meio ambiente.

Um fundamento recorrente adotado por esses desembargadores é a falta de recursos públicos no orçamento estadual ou municipal para colocar em prática as determinações dos juízes.

Em maio deste ano, o Justa e a Defensoria Pública de São Paulo, em parceria com o escritório TozziniFreire Advogados, encaminharam uma petição à Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) para denunciar o uso abusivo da suspensão de segurança.

Encarceramento

De acordo com o relatório do Justa, entre 2013 e 2020, o Tribunal de Justiça de São Paulo acolheu todos os pedidos de suspensão de decisões que garantiam direito à saúde para a população prisional. Diferentes presidentes do TJ-SP suspenderam determinações de assistência médica em presídios, deslocamento de detentos para atendimento médico e melhorias nas condições de encarceramento em penitenciárias, centros de detenção provisória (CDPs) e unidades da Fundação Casa (onde adolescentes cumprem medidas socioeducativas).

Uma das decisões interrompidas determinava ao governo estadual a instalação, em até seis meses, de equipamentos que possibilitassem banho quente para a população carcerária. O banho frio aumenta o risco de doenças respiratórias.

No mesmo período, a Presidência do TJ do Ceará também inviabilizou direitos das pessoas presas em 100% dos casos em que foi acionada por meio de suspensão de segurança. Em uma dessas ocasiões, foi suspensa uma determinação para interdição da delegacia de Polícia Civil de Camocim (CE), que tinha péssima estrutura para manter pessoas detidas. A justificativa foi a interferência da decisão de primeira instância no planejamento estatal e na destinação de recursos públicos. Mais tarde, o Ministério Público estadual contestou a decisão da Presidência e o Órgão Especial da corte restaurou a determinação de interdição da delegacia. Apesar deste caso específico, o Justa observou que, entre 2013 e 2018, quase metade (48%) das suspensões de segurança não tinha desfecho disponível no site do TJ-CE.

No período até 2020, o mecanismo foi usado contra direitos dos detentos em 79% dos casos que chegaram ao TJ do Paraná. Neste mesmo tribunal, considerando todos os pedidos de suspensão (de quaisquer temas), 83,5% dos casos foram classificados como segredo de Justiça.

O relatório ainda destaca um caso na Bahia: a Presidência do TJ local suspendeu uma decisão que ordenava uma reforma na carceragem do Complexo Policial de Itabuna (BA), destinada a adolescentes. A Polícia Civil mantinha os adolescentes em uma cela única, sem distinção de gênero, sem iluminação nem ventilação adequada.

Saúde

Em 2021, durante a crise de Covid-19, a Presidência do TJ-AM suspendeu uma decisão de primeira instância que obrigava o governo do Amazonas a fornecer, em um intervalo de um a cinco dias, oxigênio medicinal para o município de Autazes (AM), onde o recurso estava em falta. Dez dias depois, a suspensão foi retificada e voltou a valer a determinação de fornecimento de oxigênio, mas sem prazo para cumprimento.

O mesmo tribunal inviabilizou uma determinação que obrigava o governo amazonense a disponibilizar leitos de unidade de terapia intensiva (UTI) e de urgência e emergência para pacientes com Covid-19 em um hospital de Tefé (AM). Mais tarde, os efeitos desta suspensão de segurança foram estendidos para outras 62 decisões, que alcançaram outros 13 municípios. Isso pode ser feito, a pedido do poder público, quando as liminares tratam de temas idênticos.

Também em 2021, o TJ-SP suspendeu uma decisão que determinava o fornecimento de kit intubação para tratamento de Covid-19 em Lençóis Paulista (SP). A suspensão de segurança foi estendida para outras quatro comarcas. Na corte paulista, o Justa identificou um “recorta e cola” de decisões da Presidência. O mesmo texto foi registrado em 70,3% das suspensões de segurança nos casos sobre Covid-19 em 2020. O mecanismo foi usado também em outras cortes contra transferências de pacientes infectados, fornecimento de testes de Covid-19 e disponibilização de equipamentos de proteção individual (EPIs) em hospitais.

O TJ do Pará ainda suspendeu uma decisão que estabelecia ao governo estadual a apresentação de um plano de atendimento médico emergencial (o que incluía o combate à Covid-19) a povos e comunidades tradicionais de reservas extrativistas.

Meio ambiente

Outra determinação suspensa em São Paulo paralisava uma consulta pública para a concessão do Parque Estadual Turístico do Alto Ribeira (Petar), no extremo sul do estado, enquanto o governo estadual não apresentasse estudos de impacto ambiental, social e econômico, com participação da população do território.

Em 2021, indícios de irregularidades no processo de licenciamento ambiental levaram à paralisação, por ordem judicial, dos trabalhos de uma siderúrgica em Ouro Preto (MG). Isso foi suspenso pela Presidência do TJ-MG. A decisão de primeira instância havia registrado a falta de medidas de proteção ao patrimônio histórico-cultural e de estudo de impacto de vizinhança, já que uma comunidade local poderia ficar sem água.

Já no Rio de Janeiro, o TJ do estado suspendeu uma decisão que exigia estudo e relatório de impacto ambiental para a instalação de quatro usinas termelétricas flutuantes na Baía de Sepetiba. A construção de usinas do tipo gera riscos como poluição térmica da água do mar e liberação de metais pesados.

Outros temas

A suspensão de segurança ainda foi usada pelo TJ-PR, a pedido da prefeitura de Curitiba, contra o pagamento de aluguel social, no valor de um salário mínimo mensal, durante dois anos, a uma pessoa sem moradia. A capital paranaense também conseguiu reverter uma ordem de matrícula para crianças em creches próximas às suas casas.

No Maranhão, foi suspensa a instalação de um núcleo de perícia forense e impedida a designação de delegados e policiais civis para determinados municípios. Esse mecanismo foi usado 156 vezes naquele estado entre 2020 e 2022.

A maioria dos estados da Amazônia Legal registrou menos de dez casos por ano. Já o TJ-RJ suspendeu uma ordem de bloqueio de R$ 2 bilhões do governo estadual, que seriam usados em obras de recuperação urbana em Petrópolis (RJ), após chuvas fortes e deslizamentos com saldo superior a 200 mortes em 2022.

Ilegitimidade

A suspensão de segurança surgiu com a Lei 191/1936 e também foi prevista no Código de Processo Civil de 1939. A partir da influência destas normas anteriores, a Lei do Mandado de Segurança, de 2009, trouxe mais detalhes sobre a aplicação desse instituto. A lei mais recente diz que o pedido pode ser feito “a requerimento de pessoa jurídica de direito público interessada ou do Ministério Público”, para evitar “grave lesão à ordem, à saúde, à segurança e à economia públicas”.

A decisão do presidente do tribunal pode ser contestada em até cinco dias e o caso deve ser julgado na sessão seguinte da corte. Em 1997, justamente em um julgamento de agravo contra suspensão de segurança (SS 1.149), o Supremo Tribunal Federal se manifestou pela validade desse mecanismo. Mesmo assim, há quem acredite que a suspensão de segurança atualmente viole a Constituição. É o caso do advogado Cassio Scarpinella Bueno, professor de Direito Processual Civil da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP).

Ele explica que, quando o mecanismo foi criado, não havia a possibilidade de recursos para contestar liminares. Com o passar dos anos, o sistema recursal foi aprimorado e viabilizou o “controle de todas as decisões”. Para Bueno, atualmente não se justifica a existência da suspensão de segurança, pois “o sistema recursal normal já é suficiente para impedir a conservação de um erro eventualmente cometido pelo juiz”.

Na sua visão, há ainda uma violação da isonomia, pois os cidadãos não têm acesso à suspensão de segurança. Ou seja, além do sistema recursal tradicional, o poder público (e apenas ele) tem outra forma de contestar decisões — uma espécie de “atalho”. O pedido ainda é direcionado a um desembargador específico, o que não ocorre com outros recursos. O advogado entende que essa concentração de poder nos presidentes dos tribunais é como colocar “um pouco de administração pública nas mãos do Judiciário”.

Além disso, a primeira instância fica “debilitada” e “perde sua essência, que é poder movimentar a vida, concretizar a tutela, dar um leito para quem o juiz disse que merece”. De acordo com o professor, o impacto no orçamento público não é uma justificativa adequada, pois a discussão é sobre a “essencialidade” de um direito, e não sobre seu valor. “Não é propriamente quanto custa. É viver ou morrer. Se isso custa R$ 10 ou R$ 10 milhões, é outra história”, assinala.

Bueno lembra que a Constituição prevê indenização justa em caso de desapropriação de direitos, o que vem ocorrendo nas suspensões de segurança. Ou seja, em tese, também há um custo envolvido.

Na prática

Segundo o professor, a suspensão de segurança é aplicada sem que a parte contrária seja ouvida. “O particular fica em uma situação de desvantagem e anti-isonômica”, indica.

A advogada Luciana Zaffalon, diretora-executiva do Justa, considera que a forma como esse mecanismo vem sendo aplicado é inconstitucional, pois promove a “efetivação da barbárie”. Para Zaffalon, ele pode ser mantido, desde que seja barrado seu uso para violação de direitos. A advogada defende ainda que os tribunais superiores modulem os efeitos da suspensão de segurança, para definir que ela não pode ser aplicada quando o processo atingir direitos fundamentais.

Ou seja, o mecanismo poderia ser usado, por exemplo, para controlar o gasto público em uma licitação ou mesmo para suspender uma decisão que impeça o acesso à saúde pública, mas nunca contra uma decisão que garanta o direito à saúde. Na visão da advogada, a suspensão de segurança é hoje usada contra decisões que sequer têm impacto considerável no orçamento público. “Fornecimento de máscara para agentes de saúde na pandemia não é um gasto relevante”, exemplifica. “O custo de não usar a máscara é muito maior.”

Em 2023, o então presidente do TJ-SP, desembargador Ricardo Mair Anafe, suspendeu uma decisão que determinava o uso de câmeras nas fardas de todos os policiais militares participantes de operações em retaliação a ataques contra agentes da corporação. Mais tarde, o Órgão Especial confirmou a suspensão. Anafe alegou impacto no orçamento do estado. Mas, segundo levantamento do Justa, os gastos com implantação de câmeras corporais para a PM-SP representaram apenas 0,7% do investimento na corporação em 2022 (R$ 68,7 milhões de um total de R$ 9,8 bilhões).

Ao longo do ano, os valores definidos na Lei Orçamentária Anual (LOA) de cada ente federativo podem ser aumentados, por meio da abertura de créditos adicionais. Em 2022, tais verbas extras para as forças policiais paulistas somaram R$ 885,2 milhões — quase 13 vezes mais do que o total empenhado com as câmeras.

Zaffalon destaca que, embora suspendam decisões de primeira instância devido ao impacto no orçamento público, os tribunais também recebem centenas de milhões de reais em créditos adicionais, voltados para suas folhas de pagamento. 

Outro levantamento do Justa revelou que as instituições de Justiça (tribunais, MPs e Defensorias Públicas) receberam créditos adicionais no valor total de R$ 2,6 bilhões em 2022, dos quais R$ 2,2 bilhões foram para as folhas de pagamento. Os TJs que mais receberam créditos adicionais para suas folhas de pagamento foram justamente alguns dos tribunais destacados no relatório sobre suspensão de segurança: R$ 553 milhões foram para o TJ-SP; R$ 394 milhões, para o TJ-RJ; R$ 343 milhões, para o TJ-BA; e R$ 89 milhões para o TJ-PA.

Simplificando complexidades

A aplicação da suspensão de segurança com o argumento de falta de recursos públicos contraria uma tendência do Direito Processual para a resolução de problemas complexos que envolvem, muitas vezes, violações de direitos: o processo estrutural.

Como mostrou a revista eletrônica Consultor Jurídico, o processo estrutural foca em medidas mais organizadas e consensuais. Um exemplo é a criação de planos a longo prazo, para sanar os problemas com respeito às capacidades orçamentárias do poder público, caso esteja envolvido.

Bueno concorda que o processo estrutural é uma maneira mais adequada do que a suspensão de segurança para lidar com situações de violações de direitos. “A melhor forma de resolver o problema seria pegar casos individuais, colocar tudo no mesmo saco e sentar em uma mesa para todo mundo conversar”, diz o professor. Dentro desta lógica, é possível até mesmo definir um direcionamento do orçamento público para sanar as violações: “Tira um pouco da propaganda e põe mais na saúde.”

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