Opinião

Revogação tácita do art. 322 do CPP: ANPP e aplicação da fiança pelo delegado

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6 de novembro de 2024, 11h26

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O acordo de não persecução penal (ANPP), previsto no artigo 28-A do Código de Processo Penal, introduzido pelo pacote “anticrime” (Lei 13.964/2019), trouxe um impacto considerável na persecução penal de crimes de menor gravidade, oferecendo ao investigado, em determinadas condições, a possibilidade de um acordo com o Ministério Público para evitar o processo penal.

A introdução do ANPP permite novas interpretações sobre algumas disposições do Código de Processo Penal (CPP), incluindo o artigo 322, que define as situações em que o delegado de polícia pode arbitrar fiança.

Neste contexto, o presente artigo examina uma hipótese jurídica: a revogação tácita do artigo 322 do CPP em crimes que permitem o ANPP. Com base no princípio da homogeneidade, que busca evitar medidas cautelares mais severas que o resultado esperado do processo, propõe-se que a limitação de concessão de fiança pelo delegado pode ser flexibilizada. Assim, mesmo em crimes com pena máxima superior a quatro anos, o delegado poderia arbitrar fiança, desde que o crime seja passível de ANPP.

O acordo representa um avanço em termos de celeridade e eficiência na justiça penal, aplicando-se a crimes sem violência ou grave ameaça, com pena mínima inferior a quatro anos, e desde que o investigado não seja reincidente e confesse a infração. Esse instituto, ao possibilitar que o investigado evite o processo penal através do cumprimento de certas condições, confere a ele um direito subjetivo ao ANPP, quando preenchidos os requisitos legais.

Em que pese a jurisprudência dos tribunais superiores ser pelo entendimento que o acordo não é um direito subjetivo do investigado, discordamos desse entendimento. O ANPP deriva do chamado sistema multiportas da Justiça, onde, em determinados casos, há a aplicação da justiça restaurativa, tal como os institutos despenalizados da Lei 9.099/95, que são direitos subjetivos do imputado conforme entendimento desses mesmos tribunais. Aury Lopes Jr., por exemplo, entende que, preenchidos os requisitos legais, se trata de direito público subjetivo do imputado, um direito processual que não lhe pode ser negado. [1]

A leitura do artigo 322 do CPP, entretanto, cria uma limitação rígida na atuação do delegado de polícia, permitindo que ele conceda fiança apenas em crimes cuja pena máxima não ultrapasse quatro anos. Em crimes com pena superior a esse limite, apenas o juiz poderia conceder a fiança. Essa disposição, no entanto, entra em aparente conflito com o ANPP, que, em tese, alterou parâmetros de pena, instituindo o parâmetro da pena mínima de quatro anos para aplicação de medidas menos gravosas do que a prisão.

Princípio da homogeneidade e  proporcionalidade das medidas cautelares

O princípio da homogeneidade, um dos pilares da proporcionalidade no direito penal, estabelece que medidas cautelares aplicadas durante a investigação ou processo devem ter uma relação de proporcionalidade com a pena que se espera ao final do processo. Isso quer dizer que, se o resultado provável do processo é a concessão do ANPP ou seja, a evitação da pena privativa de liberdade , torna-se desproporcional aplicar medidas cautelares mais severas, como a prisão em flagrante, espécie de prisão cautelar.

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Por esse raciocínio, nos casos de crimes onde o ANPP seria aplicável, a imposição de fiança ou de outras medidas restritivas deve ser analisada com flexibilidade, permitindo que o delegado de Polícia conceda fiança mesmo em crimes com pena máxima superior a quatro anos, nos casos em que caberia o ANPP. Dessa forma, evita-se o constrangimento de uma medida cautelar mais gravosa, como, p.ex, a prisão em flagrante, do que seria eventualmente imposto ao final do processo.

Hipótese da revogação tácita do artigo 322 do CPP

A revogação tácita ocorre quando uma norma posterior, sem expressamente revogar a anterior, estabelece novos padrões de aplicação que contradizem ou tornam obsoleta a norma anterior. Nesse caso, o ANPP e com base no princípio da homogeneidade, ao atuarem diretamente na persecução penal, teriam revogado tacitamente o artigo 322 do CPP naquilo que ele limita o poder do delegado para conceder fiança. Em outras palavras, se o investigado possui direito subjetivo ao acordo, impedir o delegado de conceder fiança em crimes onde o ANPP é aplicável poderia ser entendido como desproporcional.

Esse entendimento, embora inovador, atende aos princípios constitucionais de proporcionalidade e eficiência, além de promover uma interpretação mais adequada à realidade processual contemporânea, onde medidas cautelares devem refletir a gravidade e os desdobramentos finais do processo.

Conclusão

A tese defendida neste artigo aponta para uma interpretação moderna e sistemática do Código de Processo Penal à luz do ANPP e do princípio da homogeneidade. Diante da introdução de novos instrumentos processuais, como o acordo, o artigo 322 do CPP deve ser interpretado de modo a permitir maior atuação do delegado na concessão de fiança. Assim, evita-se a imposição de medidas mais gravosas e desproporcionais, alinhando a aplicação da justiça penal aos objetivos de celeridade e eficiência trazidos pela reforma legislativa.

Essa interpretação, se adotada, poderá não apenas otimizar o papel do delegado na fase pré-processual, mas também harmonizar as práticas da persecução penal com os princípios constitucionais de proporcionalidade e eficiência.

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Referências bibliográficas

Retirado da página internet, em 29/10/2024: https://www.conjur.com.br/2020-mar-06/limite-penal-questoes-polemicas-acordo-nao- persecucao-penal/

Código de Processo Penal, disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del3689.htm

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